quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A gata Micas...

    Filha, sobrinha e neta do Luas, (sim, estamos no reino da natureza onde as fronteiras…) o gato que, depois de dez anos de ascetismo (falo de humanidades, claro) pôs no mundo 17 descendentes – o Luas, para quem não  saiba (a TV felizmente não conta tudo) foi o gato que me inspirou a personagem “Cruas” no livro “A Escada” e a quem, por “serviços prestados à Literatura” condecorei com uma Ordem de Mérito Animal numa cerimónia na Escola Padre António Vieira, em Lisboa , em 1999  mas, dizia,  parente múltipla do Luas, a Micas faleceu ontem. 
 A Micas…
Nasceu frágil, a Micas, e por isso tinha dificuldade em segurar-se na teta da mãe. A Joana porém, excelente progenitora, não a enjeitou e nós alimentámos a Micas a biberon. Todavia… Sim, eu, que como vacas, coelhos, devoro cabritos estive para eutanasiar, como dizemos da morte infligida a quem gostamos ou… não comemos - a Micas. Então ela não caía muito e não era deficiente, em suma? E há lá paciência para uma gata que vem ao mundo inválida, sobretudo se o dinheiro não abunda e na casa já existem sete ou oito bichos?
A verdade é que, se a galinha se asfixia (ou asfixiava!) na cozinha, o perú se embebedava, e logo matava, os gatos… bom, eu nunca matei um gato às minhas mãos e não sei se seria capaz… Talvez num de repente, com um machado, cortando-lhe cerce o pescoço? Mas depois? A ideia de que o golpe poderia não bastar e o bicho ficasse a mexer, esperneando de sofrimento? Não! Nunca! Não quero! Como vacas e coelhos e quase todos os dias frango mas matar eu…
Eu sou hipocritamente sensível!
Assim, por esta e aquela razão – falta de tempo para o assassínio, afinal de contas! – a Micas – já então teria ganho este nome, porque nem nos esforçámos em  dar-lhe graça de gente -  baptizar quem se mata só amplia o nosso crime – a Micas, afinal, foi ficando pela casa e… viveu nove anos.
Faleceu ontem.
Sim, com a Micas, vendo-a resolver à sua maneira os seus problemas de desequilíbrio (sabiamente sempre evitou as alturas) aprendi algo que não mais esquecerei: a deficiência é apenas uma… deficiência. Claro que não sou nazi e nunca pensei em soluções finais mas um animal… Bem, em relação a um animal, confesso que estive para matar a Micas pela sua deficiência… E afinal, afinal foi tão belo tê-la nove anos cá em casa, tão doce, tão meiga, tão capaz, à sua maneira, de fazer tudo, tão nada deficiente, afinal!
Micas, perdoa!
Perdão, em meu nome e no da minha humanidade!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010



Paulema






Tinha quinze anos, passava as madrugadas a olhar as baratas no soalho do quarto, as horas no relógio da parede e não gostava de nada.
Nada da minha sorte - por morte dos pais criava-me uma tia beata que nem para si tinha juízo - nada da minha vida de estudante do secundário, nada, enfim, de nada, e A Náusea, de um tal Sartre, era o meu livro de cabeceira! Até já me imaginara morto! A ideia de obrigar o meu melhor amigo - o Luís - a uma cerimónia fúnebre satisfazia-me. Não íamos ao café, a seguir ao jantar, e não me abandonava ele logo?
- Vou-me deitar.
- Já?
- A noite fez-se para dormir.
E eu, só, com as baratas e as horas.
Um dia conheci Firmino que, bem mais velho, passou a convidar-me para fins-de-semana na sua casa em Sintra. Connosco Filó, a empregada, e uma cadela, a quem ele chamava "filha". Dedicava ao meu venerável companheiro o afecto que um adolescente, sem progenitor, dedica a alguém que lho evoca, quando, num fim-de-semana em que a empregada fora de visita à terra e a "filha" dormia, Firmino quis meter-se à força na minha cama! Mal o convenci a regressar à sua, abandonei-lhe a casa para só parar na de um primo, duzentos kilómetros adiante.  Pelo caminho entrei num barbeiro para a primeira barba e, enquanto ele ma fazia, prometi-me ao espelho: "Quinze anos! Tens quinze anos para atingir um outro lado das coisas, construir uma vida que gostes. Senão matas-te."
Mas seria capaz?
Teria, caso perdesse a partida, a coragem de fechar a porta?
Receoso por não cumprir a aposta, uma noite em que estava de novo com as baratas, as horas, e a tia em viagem,  numa das suas intermináveis visitas aos lugares santos, peguei  numa lâmina e fendi os pulsos.
Ensaiei o suícidio.
Depois, a  caminho do hospital exultava: afinal, tudo era possível porque de tudo me veria livre!
No fundo, talvez seja um cobarde.
Os quinze anos terminam agora.















Iniciava uma caminhada e queria ser o único responsável pelos meus actos. O deus familiar, a quem a tia sacrificava, era um fantoche ao qual ela oferecia velas, promessas ou viagens peregrinas, da mesma forma que se adoça a boca do animal que se domestica. Ora, eu exigia um deus indiferente à chantagem e a certeza de que só eu sofreria a minha morte embriagava-me de uma orgulhosa independência.
Na travessia que iniciava, a solidão foi a minha primeira conquista.











Queria melhorar a vida, torná-la risonha e clara, em vez de monótona e triste. Mas como?
À noite, depois do jantar, ir com com o Luis à “Brasileira” do Chiado tomar café  mas cada um regressava logo a casa. Então, de madrugada, já deitado mas cansado de esperar pelo sono,  levantava-me e  deixava de novo a casa. Subia a Avenida da Liberdade, virava na  Pereira de Melo e, finalmente, parava no Saldanha, no café Monumental. Neste, finda a sessão no teatro ao lado, reuniam-se artistas e fans, vestindo, com palavras e corpos, a negra noite de fantasia. Pelo meu lado eu procurava naquele meio o deslumbramento que os dias não me tinham. Mas, aí, o meu desejo de luz esbarrava na cegueira dos que, na  minha figura adolescente, apenas viam um apetecível sexo. E se o ambiente católico e puritano em que fora educado não me permitia grandes liberalidades para comigo, também era verdade que a minha juventude a tudo corroía e, neste balanço, entre desejos e angústias, eu passava a noite. O cansaço, senão mesmo uma outra espécie de fastio, obrigava-me então a  regressar a casa e, nesta,  já extenuado, adormecia.
De manhã, a empregada, com uma uma toalha húmida nos olhos afungentava-me o primeiro sono e, finalmente levantado, lá fazia o necessário para chegar a horas à escola. 
Faltar às aulas só era permitido em caso de doença e eu... eu era a perfeição em pessoa...














O liceu Gil Vicente ficava na Graça.
Na rua dos Fanqueiros eu tomava o eléctrico, o 28 e, um quarto de hora depois, entrava no vetusto edifício, onde uma sua parte fora outrora um convento: a campainha soava para a primeira aula e começava um novo dia . A minha vida, caótica e interiormente desfasada era, na sua fachada, de uma irrepreensível precisão, sendo eu o piloto automático que a tudo cumpria sem a mais pequena falha. O eléctrico passava na paragem às oito e um quarto, eu estava sempre lá à sua espera e, quando o toque soava na escola, eu entrava na sala de aula para ouvir a primeira lição. Mas enquanto o professor falava, bocejava eu de sono, depois limpava as lágrimas que o bocejo me faziam cair, mais as lentes dos óculos entretanto molhadas,  e, quanto tudo estava finalmente pronto, novo bocejo surgia e p movimento voltava ao início. Este ciclo repetia-se indefenidamente até que, tendo sorvido, ao longo da manhã e depois do dia,   um número astronómico de cafés, acordava de uma vez por todas. É claro que, no final da jornada, as mãos me tremiam como se foram de alguém  atingido pelo mal de Parkinson, porém as coisas eram assim mesmo. E uma outra bica, desta feita a que tomava com o Luís, n’ “A Brasileira” , depois do jantar, inaugurava então a noite, sendo o sinal de nova partida.
Até quando?














Que fazer à vida?
Que direcção tomar?
O curso de Direito que, aos quatro anos, na sala da tia, jurava ás suas visitas querer tirar:  “Que quer o menino ser, quando for grande?” – “Advogado.” respondia o petiz , enlaçado e de sapatos de verniz, estava já fora de questão, sem que eu mesmo percebesse a razão do meu repúdio. Mas se, aos quatro anos queria ser jurista e, aos dez, primeiro-ministro, imitando o ditador da altura, em plena explosão adolescente, no plano académico, só já me comprometia a uma coisa: acabar o sétimo ano do liceu. Neste sentido, e para poder, com à vontade, cagar em tudo, aliando ao meu descontentamento um soberano desprendimento, fazia por ser o melhor aluno da turma, senão da escola: como aluno era intocável e mesmo modelo:
Ou seja, o Dr. Jekill ia às aulas, enquanto Mr. Hyde vivia as suas noites.
 












Quanto mais o Luis, mal tomada a bica n’ “A Brasileira, depois do jantar, persistia no seu sensato regresso casa, mais eu o invejava e maior era
a angústia, e também a asfixia que a noite me trazia. Ah, se eu chegasse a casa e na cama adormecesse até ao acordar do dia...
Da minha idade, Luis  sabia sempre a resposta a tudo – eu conhecia a dos compêndios mas a minha pouca confiança na sua eficiência, levava a que me servissem apenas para os exames – dormia, como ele próprio apregoava, um sono de justo e o mundo, além do seu bairro, não lhe dizia respeito. Aliás, o Luís em breve encontraria uma namorada e, mesmo os nossos serões no café, acabariam tragados pela necessidade do seu namororo. When a man loves a women -  dizia uma canção em voga. Enquanto Luís preenchia,  um a um, todos os itens do cidadão cumpridor e feliz, eu,  afogado nas minhas insónias, rodeado  pelas efígies negras das baratas no soalho e ouvindo a insolencia das horas no relógio da parede, dava simplesmente em doido!
Como não invejá-lo?  
Porque era eu tão diferente?
Porque me sentia tão só?
Porque...?
Condenado a mim mesmo, ao meu inferno, continuava as investigações.
No Monumental, onde continuava a parar todas as noites,  aturdia-me nas lantejoulas, confundindo-as com estrelas. Mas a sua luz, ainda que falsa, parecendo-me já um sinal do outro lado, da vida que ambicionava, dava-me pelo menos alento para prosseguir. Eu estava a caminho, perfilhava a minha vida. Naturalmente, cego pelo meu próprio espelho, incapaz de gerir os efeitos nos outros do meu reflexo, era eu a sua primeira vítima. Queriam-me apenas para sexo? Mas não havia em mim outros interesses? Frustrado por não vê-los reconhecidos  - mas poderão os gladiadores acarinhar os animais? – e açulado ao mesmo tempo pelo meu próprio desejo, vingava-me então no corpo. Eu tornar-me-ia num outro e as experiências começaram. Até onde resistiria?
- O Sr. Firmino voltou a telefonar -  informou em casa a empregada. – Pede que lhe ligue.
Em vez de mentir, como fazia desde a noite em que lhe desembestara da casa e da cama, mandando sempre dizer ao telefone que partira em viagem, dessa vez liguei-lhe. Firmino era fisicamente desagradável e nunca me atrairia. Mas Narciso passara a odiar o lago e, licenciando o corpo para o que ele entendesse, observá-lo-ia à lupa. Não recebia dinheiro mas era já o meu próprio proxeneta.
Pedi, pois, desculpas pela fuga e dispuz-me a novo fim de semana.
Na segunda-feira seguinte, no regresso de Sintra, antes de entrar em casa fui pela segunda vez ao barbeiro. Mas sentado na cadeira  encarei já o espelho com um sorriso distante: no lado de lá havia de facto um estranho. A travessia para a qual me oferecera quinze anos levar-me-ia ao seu encontro? Ignorava-o e só uma coisa me comprazia:  o ódio.
A tudo. A começar por mim mesmo.
- Como quer o cabelo? – perguntou o fígaro.
- Curtinho. À alemão – respondi, certo de que o modelo teutónico, no seu militarismo exarcebado, ainda há pouco sob o comando de Hitler, era o que melhor me convinha.
De mal comigo, o corpo, o meu belo templo, era-me o antro da tortura.

















Quem escreve isto? Eu? O Outro? E que importa? A nossa vida será impelida por outra força que não o caos? “Não quero morrer mas explodir” – dizia naquele tempo e a frase, que na altura interpretava à letra, ganha afinal outro sentido. A diferença é que continuo vivo e os estilhaços espalham-se por tantas direcções que a reunião se me tornou impossível.
Não sei onde estou.
Talvez nem exista e procure aqui, nesta tua leitura, a presença que me falta, a corporeidade que me roubaram ou não fui capaz de conquistar. Porque tudo se conquista, disso nao guardo a menor dúvida, e talvez tenha sido essa a falha.
Nossa?
Ou minha?
Mas se tudo se mistura no cabo das contas.. Não importa. A noite continua e não pararei até que finde. Há um outro lado, ou quero que haja, pois este é irrespirável e sem esperança a folha não se alimenta. Onde estou? Onde estamos? Tu aí, eu aqui e, todavia... Porque não vi diante quando o caminho lá estava e só faltava fazê-lo?
Cego.
Cego por tantas formas. E esta escrita, este raspar do aparo na folha tenta isso: tirar a venda. E, no entanto: alcançarei mais que conjugações ou verbos?
Condenação do código que não me larga e, por fim, é. Mas essa a esperança. Que a linguagem nos una.
União, precisa-se.


















A minha tia, cada dia mais convencida da decadência dos costumes e da necessidade de obras pias, para esconjurar o demónio, deu em ver Deus com tal frequência que ela própria achou por bem preocupar-se com o assunto. Sobretudo porque o Diabo também lhe aparecia em sonhos e, se Deus a enchia de graça, uma noite  na companhia do Demo, por mais gozada que fosse, punha-a em pânico. O "bem" e o "mal" são aspectos do mesmo, constituem-no e, nessa medida, inevitáveis. Mas ela não o sabia, e eu, à altura, também não lho podia explicar, pois andava às voltas com outros problemas se não, afinal, os mesmos. Mas a solução que a tia encontrou para o seu desvairo  foi a de marcar consultar num psiquiatra: sonhar com o Diabo, depois de ver Deus, além de adulterino, era humilhante.
A minha tia cria-se sensata, a desmesura não lhe ia nos hábitos. E como andava sempre por fora, ou a ver o papa ou noutros lugares santos, decidiu também levar-me ao consultório, aproveitando a ocasião para estar comigo. 
- O meu sobrinho faça-me companhia na ida ao médico. – Pediu ela, e fiz-lhe a vontade.
A tia Felizberta, mana do meu pai, tomara conta de mim pelos meus oito anos e, não foram as suas constantes peregrinações, talvez me tivesse dedicado mais à sua pessoa. Mas, com ela sempre ausente, era nos livros e junto dos professores que colhia as regras que me guiavam na vida. Sob o tampo de vidro da minha secretária havia um recorte de jornal com as máximas que teriam norteado a vida de um  tal Artur Artis e lia-as diariamente, da mesma forma, talvez, que a tia o breviário. O problema é que a época mudava tão depressa que uma regra com dez anos de vida poderia parecer antiga de um milénio.
Caos.

















O consultório ficava na Avenida da Liberdade, e o psi fora indicado à minha tia pelo seu médico de longa data, pessoa de toda a confiança, o qual possuía, entre os seus pacientes, o próprio ditador. A tia Felizberta, nada e criada em Santa Comba Dão, onde Salazar também nascera, dava-se com uma irmã do ditador, e esta visitava-a sempre que vinha a Lisboa.
- Isto é um horror! O meu irmão destesta Lisboa e compreendo-o. – Queixava-se a velha mana do ditador para a qual a vida na urbe se comparava a um sacrifício digno de altar. – Isto aqui são só tentações! Há lá coisas boas numa cidade?!
Talvez por isso, por viver em plena Gomorra, minha tia peregrinasse por tanto lugar santo. De qualquer modo, a Santa Comba Dão é que não mais voltara e a outra, sorrateiramente, não deixava de lho lançar em cara: “Lá em cima é que é, na nossa terrinha é que se está bem. Eu cá em baixo é mesmo para vir ao médico, ou visitar o mano, senão...”
- E eu, minha querida, já só me desloco a lugares santos! – retrucava com um enigmático sorriso a tia Felizberta.
















 No consultório, forrado a damascos e poltronas, a minha tia enfronhou-se na leitura de uma piedosa revista, enquanto eu ficava sem perceber porque me pedira que a acompanhasse. Nao fora para entretanto falarmos? Regressada há menos de uma semana de Lourdes, jantáramos juntos uma única vez e, no resto do tempo, ela não abandonara o quarto, queixando-se de enxaquecas. “Só me sinto bem nos lugares santos” – justificava. A visita ao psi seria, pois, importante e Felizberta preparava-se para a consulta, na fatalidade de quem já só recorre aos bens terrenos para melhor merecer os celestiais.
A assistente chamou-a e minha tia dirigiu-se para o gabinete do médico, com a mesmo devoção que um crente atravessa a nave da igreja para receber a hóstia.
- Tu aguarda aqui. – Avisou-me. 
O consultório era exclusivo do psiquiatra e dispuz-me a observar os restantes pacientes aguardando a sua vez. Havia grossos bigodes, fartas barbas e máscaras artisticamente riscadas a lápis de cor. Mas que lhes acontecera? Haviam-se extraviado? Feito apostas que não podiam cumprir? Sentiam-se incapazes, como eu algum tempo atrás, de tomar uma decisão, por receio de descobrirem que escolhiam a errada? Senti-me orgulhoso: Deus não me visitava, o Diabo também se abstinha e as insónias tinham entrado na rotina. Por último, ocupava-as com alguma felicidade, pois descobrira que os teatros de revista faziam uma segunda sessão à meia-noite. Então, comprava um bilhete, sentava-me na plateia e regressava a casa já capaz de passar pelo sono, tendo com frequencia visto o mesmo espectáculo várias vezes. Mas, de manhã, a empregada e o pano molhado nos olhos funcionavam e as notas, na escola, saíam sem sobressaltos.
A minha tia reapareceu.
Trazia no rosto o sorriso confiante de quem confirma que tudo é Deus e pediu-me, no seu tom delicado, se não me importava de acompanhá-la ao gabinete, para me apresentar o médico. Li-lhe o orgulho pelo seu salvador e o desejo de  partilhar comigo a felicidade da sua revelação.
No fundo do corredor, ladeado por imagens da história de Portugal, sobretudo do Estado Novo, a minha tia bateu devagarinho a uma porta entreaberta. 
Uma voz poderosa disse: “Faz favor de entrar!” e o tom, naquela circunstancia, pareceu-me que só podia vir de um super-homem.
A porta descerrou-se.
Numa secretária iluminada por um candeeiro de mesa que o deixava ligeiramente na penumbra, lá estava o herói, o Grande Médico.
- Eis o meu sobrinho. – disse a minha tia.
O prodígio mandou-nos sentar e a minha parente, apontando-me um dedo enluvado, pronunciou o que tantas vezes eu mesmo já suspeitara mas nao imaginava ouvi-lo da sua própria boca:
- Sr. Dr., o meu sobrinho não é normal.
Depois, no sorriso comprometido de quem sabe que traíu mas possui um alibi para a traição, encarou-me como se dissessse "Julgas que não dou por nada? Eu ao menos ainda vejo Deus!"
O homem mediu a minha reacção. A seguir pediu autorização para ficar a sós comigo. A tia acedeu e vi-a caminhar na direcção da porta, como quem cumpriu a missão que sabe desagradável mas sem alternativa.
No rosto escavado do médico, o nariz dominava a pique duas escarpas que não pareciam idênticas, como se o desequilíbrio lhe ameaçasse o semblante. Mais tarde, perante quadros de Van Gogh, sentiria a mesma ameaça de caos, como se a qualquer momento algo de muito profundo pudesse avassalar tudo, não deixando nada sobre nada. Em nenhum dos pacientes na sala de espera descobrita tão grande tumulto.
- A sua tia encontrou-lhe uns papéis onde diz que quer morrer...
Lembrei o desabafo onde imaginara o meu próprio funeral. Teria sido isso a lançar a suspeita sobre a minha conduta? Ou fora outra coisa ainda? O ensaio do suícidio tinha sido discreto e as ligaduras que, durante algum tempo usara, haviam-se confundido com as que me apertavam os pulsos nos treinos de ténis.
- Ah sim... - Retorqui... – Isso são histórias que escrevo. Essa saíu na primeira pessoa... - Atirei como primeira pedra no combate que deveria provar a minha sanidade mental. Mas a minha luta era honesta? Continuava de facto normal? Ou dera de todo em doido? A aposta dos quinze anos conduzia-me já ao manicómio? A felicidade seria uma quimera que enlouque os que a procuram? O alheamento de mim próprio, de modo a tornar-me carne do meu próprio laboratório, era um projecto louco? Mas, em redor, no Portugal inteiro, a propaganda politica não preconizava a criação do homem novo? E não era o que, na minha modesta fábrica, eu fazia?
O médico considerou a resposta.
- Tem por hábito escrever? - Perguntou, e intuí-lhe uma  curiosidade benevolente, ao mesmo  tempo que uma certa inquietação. Como se a  arte me pudesse salvar ou... destruir. 
- Sim – Disse eu.
A escrita organizava-me o caos e, desde os oito anos que escrevia longos diários. Eles tinham-me ajudado a esquecer a morte dos pais, assim como na adaptação aos hábitos da tia.
(E agora que faço?)
O psi olhava-me fixamente. Então, para tornar mais crível o relato, sintetizei-lhe a história, de resto banal, onde entrava o “suicídio”: um fulano organizava o seu funeral com vista a enganar a companhia de seguros...
Novo silêncio
Lá fora, na avenida, o tráfego fazia um pano de fundo calmo e aquela conversa entre um homem e um adolescente poder-se-ia realizar em qualquer parte do mundo: o mais velho avaliava da conduta do mais novo e este aguardava o veredicto. Teria de levar a cabo, mais cedo do que alguma vez previra, o corte definitivo dos pulsos? O mundo parecia-me louco mas, por enquanto,  usufruía a meu-bel prazer da sua demência e momentos havia em que já me divertia, sobretudo quando analisava alguns dos efeitos das minhas experiências. Firmino, por exemplo, para obter um encontro mais prolongado, e logo com mais hipóteses, assediava-me com um cruzeiro na Grécia. Eu respondia que sim, não porque a viagem me interessasse mas pelo desejo de experimentar o que sente um prostituto. Em nome do saber dispunha-me a tudo.
O homem tocou uma campainha, falou para a assistente, que acorreu solícita,  e a minha tia foi chamada de novo ao gabinete. No entretanto eu tinha concluído  duas coisas: uma era que, se escapasse ileso da consulta, devia melhorar a representação do "rapaz normal" que queria parecer, e a outra é que urgia deixar a casa da tia. Não queria arriscar um segundo exame.
- O seu sobrinho está bem, minha senhora. É normal de todo! - concluiu o médico com um grande sorriso, ao mesmo tempo que me piscava um olho. Senti um calafrio. Mas o homem apontou-me o dedo e acrescentou:  - É bem possivel que tenhamos aqui um homem de letras!
Respirei fundo.
A minha salvação fora a literatura?
A arte evita o manicómio?
Por isso aqui estou?
























Como quem dá uma no cravo e outra na ferradura, a minha tia, depois da visita ao psi, quis partir de novo em peregrinação. Mas mercê porventura do ecumenismo da época, ou da gravidade das visitas do Diabo, ela já visitava os lugares santos doutras religiões, assumindo, aliás, que a ida ao psi só fora possível graças a essa abertura sintetizada na máxima: “Lugar santo é sempre lugar santo!” Em consequência, o menu das suas viagens alargou-se e um dia, acompanhando-a propositadamente ao aeroporto, para lhe falar, expliquei que gostaria de viver em comunidade com outros jovens.
A época, próspera para o modelo de vida ocidental, exigia que a adolescente ou o adolescente burguês abandonasse a teia familiar para viver com os  seus pares, trabalhar, experimentar-se, enfim, na vida. Aproveitando a “moda”, comuniquei, pois, à minha tia o desejo de também sair de casa.
- Viver em comunidade? – Franziu ela o sobrolho esquecida de que Cristo fora exemplo de uma tal vida.
- Sim, como os apóstolos com Cristo.
- Ah, sim? E quem é lá nesse grupo o Jesus?
O meu quotidiano continuava tão só como o de um cão vadio e o teor dos convites que grangeava de madrugada tinham mais a ver com um contrato do género “vem-te e vai-te!” do que propriamente com o lema juvenil em voga "Peace and Love".
No meio da confusão, no entanto, depois de me chegar a envolver com cinquenta corpos num só mês, decidira-me – até para ganhar um compasso de espera, vendo o que realmente queria – pelo ascetismo, embora me divertisse a atiçar as feras ao meu  cheiro. Já com alguma prática no desembaraçar-me dos golpes, raramente me mordiam, a não ser que estivesse, ou disposto, ou distraído. Mas se a dentada fosse de alguem idêntico, logo orava ao divino, mais ou menos nestes termos: "Oh meu deus, não me deixes ser paneleiro!" Em conformidade com uma visão estreita e reprodutiva do amor, nada, religião, escola ou família me preparara para amar alguém do mesmo sexo e o conflito, à manhã seguinte, era tanto mais grave quanto maior tivesse sido o desejo pelo parceiro. O ideal  "hyppie" aliviava a ressaca mas as flores não abundavam no Portugal salazarento, e oferecê-las à polícia de choque que atirava a matar, ou apostar num ramalhete de papoilas para depôr o ditador, seria insano. Se dormisse com outro macho, à manhã seguinte havia algo de comum entre mim e a minha tia: ambos rezávamos para que o diabo nos não tramasse. Mas ela sabia a quem se encomendava enquanto eu, no melhor dos casos, e citando outro livro, que entretanto já lia, dirigia-me a um “deus desconhecido”.
- Nesta comunidade somos todos Cristos...  – Respondi à minha tia mas logo acrescentando, ao ver-lhe o olhar abismado – Bom, cada um à vez.
Felizmente chamavam-na para o avião e, entre dois beijos, ela condescendeu:
- Muito bem, sobrinho, viva lá com os seus correlegionários nessa tal comunidade, que parece ser jesuíta, mas com uma condição: não larga nunca os estudos!
Tinha noventa anos e achei-a a mulher mais fabulosa do mundo. Naquela altura ia para a India, assistir a uma das suas festas religiosas.




















Nada é como  desejaríamos ou nada sucedeu segundo a graça das coisas. Mas a escrita tem a sua própria força e as palavras pedem outras. Por fim, o desejo impõe-se...
Eu a minha tia nunca nos demos bem.
Por um lado ela era rígida e autoritária e, por outro, a  minha adolescente insegurança fazia-me reagir à menor pressão. Mas sim, no meio da sua enorme desatenção, ela cedeu a que lhe abandonasse a casa e eu... Eu passaria a comer sozinho, mais lobo e carente ainda. Mas por esta via não chego a lado algum e sobretudo dói. Afinal isto há-de chamar-se Paulema, a nossa história, e ainda não entraste nela. Por isso  soa mais dolorosa? E daí que fuja para a fantasia, imaginando uma tia afável e carinhosa? Ou sou eu que já então não percebia o que se passava e me recuso ainda a ver o que sucedeu? Mas como contar a nossa história, se não souber primeiro a minha? 
Tento manter-me lúcido e levar a caneta pelo carril da verdade. Deixei logo a casa da tia ou foi depois? E ela andava nas tais peregrinações ou estas são o nome que dou à sua distracção? Pois eu precisava tanto mais de amor quanto ela não sabia dar-mo. Sim, queria que fosse advogado. E sempre lho havia prometido. Porque mudaram as coisas?
A verdade é que tudo estava em mudança.
Como sempre, não?




















No intuito de levar a cabo o projecto de abandonar o lar famiiar, comecei a responder a anúncios para trabalho em part-time. Embora a tia me oferecesse uma mesada, queria também ganhar o meu dinheiro, saber  o preço das coisas.
Ao cabo de algum tempo surgiu a hipótese de ser assistente num estúdio fotográfico.
O "Photo-Eterna" ficava numa rua elegante da baixa lisboeta, a do Ouro, e  tinha à porta uma tabuleta em estilo arte nova. Na  montra, exibia uma colecção de crianças, famílias e mancebos, a maioria  no dia de casamento. O meu trabalho consistia em endireitar o queixo de matronas ou tocar rocas para os bebés não chorarem, enquanto o Sr. Patrício, o patrão, homem de cerca de sessenta anos e aspecto cuidado, lhes explodia o magnésio frente aos olhos. Tudo decente, tudo nas regras e eu, cujas notas na escola continuavam boas, além de garantido  pelo certificado de sanidade mental do psiquiatra, tive ainda licença da tia para concluir o secundário no turno da noite. A questão das insónias resolvia-se e o dia ficava livre. O trabalho no Photo Eterna era à tarde.
A minha salvação do status de doido pelo conto de uma história aumentara-me o apreço pelos livros e, depois do A um Deus Desconhecido, de Steinbeck, saltara para o Amor de Perdição, do Camilo. De um texto para o outro o desejo era apenas o de me libertar do tempo e, de facto, esquecera os quinze anos da minha inicial aposta.
Em plena travessia.
Ou mar alto.























Uma tarde, no estúdio, o patrão veio com um convite.
- Reúno um grupo de jovens para certas fotos... fotos especiais...  Queres participar?
- Fotos especiais?...
- Sim. Nus. Mas os modelos aparecem com os olhos tapados. Ninguém te reconhecerá. Trata-se de um trabalho limpo.
Nos dias seguintes continuei a tocar rocas e a fazer momices para que os fedelhos não largassem em choro  estragando as fotos. Mas matutava na proposta. Exibir-me nu não seria apenas uma outra experiência? Quanto ao problema da identificação, resolvido em todo o caso pelo  traço negro sobre os olhos, era-me indiferente: demorava a decidir-me por uma coisa mas quando o fazia, entregava-me de cabeça. Porém exibir o que até ali só me trouxera complicações - o meu "perfeito" corpo – não era uma ironia? Ou seria antes uma vingança?
No barbeiro, da vez seguinte que lá fui, nem já reparei no espelho à minha frente. Nas paredes havia uns cartazes do Estado Novo, de raiz futurista, e através do vidro entretive-me a olhá-los.
Também eu me orgulhava da minha máquina.























O ordenado de ajudante de estúdio passou a vir acrescido de uma boa maquia e deixei a casa da tia que umas tantas pilulas e mais umas viagens peregrinas tinham reconduzido ao estado de só ver o lado bom das coisas.
Na Rua da Imprensa Nacional aluguei um apartamento e, surpresa das surpesas, tornei-me caseiro! Como se a exibição a que me sujeitava no estúdio me tornasse eremita.
Na verdade o meu percurso isolava-me do grosso da manada, não encontrava iguais e, passando a frequentar restaurantes, sentia-me um estranho condenado a comer sozinho. Algumas vezes ainda convidaria o Luis mas a sua presença tornara-se já longínqua e, por último, ele próprio falava em deixar os estudos para viver na quinta dos pais da namorada, no Norte.
- Vou trabalhar a terra – dizia.
Perdi-o de vista.
No entretanto compensava-me, enchendo páginas e páginas de uma escrita bem caligrafada – o meu bafo dos dias, uma companhia, a conversa com o Outro. Mas era infeliz e, como qualquer adolescente com pena de si mesmo, chorava frequentemente. Todavia, levava a cabo as tarefas do dia a dia com tanta frieza quanta a eficácia e, metido no meu novo apartamento, afastei-me ainda mais dos poucos com quem me relacionava.
Alguns heróis de filmes negros pareciam-se-me.
Depois das aulas passave pelo “Monumental, o tal café, ao Saldanha,  onde os boémios começavam a sua noite e, na nova escola, as conversas com os colegas, além de raras, entediavam. Os que eram da da minha idade procuravam namoro quando eu, interiormente, já me tornara asceta, e os mais velhos, correndo como formigas entre o trabalho, o estudo e a casa, não tinham tempo para outra coisa.
No entanto entre estes últimos havia um grupo que se reunia para escutar músicas e canções que o Estado proibia e um dia, talvez porque me vissem sempre sozinho, convidaram-me. Mas, convencidos de que, tarde ou cedo, a PIDE os prenderia, entregavam-se também a exercícios de resistência á tortura. Porventura, além da música, teriam  outras actividades igualmente proibidas que os induzia àquele comportamento mas, naturalmente, não mas confessavam. E eu, testemunha muda, assistia então, entre duas músicas de Correia de Oliveira, a simulacros de interrogatórios e à enormidade daquele dislate.
- Vá! Confessa tudo!
- Não. Não digo nada!
- Olha que levas mais!
As sessões realizavam-se ao fim-de-semana, na vivenda de um do grupo, cujos pais partiam para o campo.
Cada encontro englobava vários jogos, á semelhança dos “rounds” nos combates de boxe. Um sorteio definia as funções. Havia um “inspector” – ou “inspectora” e dois ou três “pides” além do preso ou presa.  A função de médico era cativa de um estudante de medicina. Competia-lhe velar pelo estado da “vítima”, mantê-la num nível onde a dor, embora eficaz, não implicasse desfalecimento. Outro sorteio definia o tipo de tortura para cada “round”: a “chinesa” – consistia em picar o preso com sucessivos alfinetes mas podia chegar ao arranque de uma unha – o mais velho do grupo passava por herói porque apesar de ficar sem uma, nunca tinha “confessado” – o mergulho da cabeça numa tina de água e mesmo o choque eléctrico. O preso, antes do intrrogatório, escrevia num pedaço de papel, guardado à vista de todos, a frase que a polícia lhe deveria “arrancar” e o jogo consistia em convencer os torturadores de que dizia a verdade – igual à frase escrita algures – ou manter-se, apesar de tudo, no patamar inviolável do “não sei de nada”. O “herói” perdera a unha porque a frase que escrevera fora precisamente “Não sei de nada”? De qualquer modo o jogo acabava em regra com o “preso” ou a “presa” em mau estado. Na tortura do sono, uma das especialidades da PIDE, o grupo era pouco prático: as sessões passavam-se entre o sábado e o domingo e, no máximo, permitiam “oferecer” ao preso uma directa. Assim, para compensar a “deficiência” nas “investigações” o grupo programava um estágio dedicado ao tema “sono” para uma férias escolares, algures num descampado. 
Na verdade, achava-os todos doidos, embora sentisse, quando a madrugada ia alta, o “preso” ou “presa” gemia e os “algozes” riam a bandeiras despregadas, que havia algo mais que loucura naquilo tudo, qualquer coisa de profundamente doentio e que mesmo repugnava. Mas tratava-se de um exorcismo e o exorcista deve saber a linguagem do Diabo, tratá-lo por tu. De qualquer modo, os meus estranhos colegas terão notado também o meu distanciamento face aos seus jogos e, por fim, deixaram de me convidar. A sua frequência dar-me-ia no entanto a perceber que vivia sob uma ditadura. Ou seja, sob duas: a de Salazar, sobre todos, e a minha, sobre o meu próprio corpo. Desta, porém, continuava inconsciente e, logo, da relação entre ambas.






















A vida dupla no Photo-Eterna prosseguia sem  rebuço e, ao cabo de mais uma sessão de nu, Patricio propôs uma nova modalidade: fotos de sexo em grupo.
- Com quem? - Foi a minha  questão, pois o hábito já me distanciara suficientemente do corpo para lhe permitir tudo.
- Com outros da tua idade.
Patricio deu tempo para reflectir.
A proposta de Patrício enquadrava-se num crescendo de comprometimento com o mercado sexual mas eu não o percebia e via apenas cada coisa por si: as fotos isoladas, o sexo em conjunto...


























Uma tarde Patrício fechou o estúdio mais cedo e avisou que receberíamos visitas. Daí a pouco apareceram a Ema, a Sílvia e o Lúcio.
- Vocês ainda não se conhecem mas trabalham todos no mesmo. – Disse Patrício, em jeito de apresentação.
As sessões em que pousava nu decorriam apenas na presença de Patrício, que me fotografava, e olhei cheio de curiosidade os meus colegas, jovens como eu. Talvez tivesse mais coisas em comum com eles do que com os condiscípulos do secundário. Patrício fez-nos sentar nos sofás da sala de espera, lá onde as famílias melhoravam os penteados, enquanto não passavam à sala dos retratos, e logo abriu uma garrafa de vinho. Depois, outras se seguiram enquanto ele desfiava peripécias que  tinha vivido na guerra de Espanha. Combatera do lado de Franco e escutavamo-lo emocionados, vivendo com ele a fuga aos republicanos que ameaçavam fuzilá-lo. Era um pouco como um avô que contasse aos netos coisas do seu tempo e estes o ouvissem embevecidos. Entretanto ele enchia-nos os copos e incitava-nos a esvaziá-los. Mas, no meio dos risos e dos ahs! de espanto algo na atomosfera falava de ameaças como se uma carta viciada pudesse a todo o momento aparecer, pondo em cheque a performance do bom jogador. Mas ninguém parecia interesado em descobri-la e o fim de tarde correu fluido e fácil,com Patrício a encher os copos e a boca de aventuras.
- Agora que se conhecem, troquem  telefones e encontrem-se – Sugeriu o patrão à despedida.
Nem uma palavra sobre os motivos da reunião.


























Quanto mais a carne sofreu viva a ferida da vida mais difícil se torna contá-la. Assim escrevo, reescrevo e emendo as frases e acho  sempre que não dizem, que não consigo pôr em letras o que foi sangue, cuspo e, sobretudo, dor. Porque se o meio termo das coisas é definível com palavras de senso comum, que toda a gente usa, o monstruoso precisa de vocábulos novos ou de reunir outros que, usado e mesmo gastos, possam no seu conjunto explodir como dinamite. E eu, que vivi mais do que escrevi, que fiz dos quinze anos que ora terminam o meu caderno e a minha escola, sinto perra a caneta. E no entanto... No entanto devo este relato a algo que mo exige como se uma paga, um tributo ainda ao minotauro que nos tirou a vida.























A  táctica de Patrício estava correcta: quando eu e os meus companheiros de ofício nos reunimos no estúdio para a primeira sessão porno, já nos conheciamos das festas que no entretanto haviamos frequentado.
Lúcio tinha quatorze anos, era moçambicano e, devido à bala perdida que o atingira numa perna coxeava ligeiramente. Um pequeno senão num corpo esbelto. Um capitão trouxera-o no regresso da guerra mas o homem, que já vinha doente, acabara por  morrer e a família repudiara o miúdo.  Desprezado, Lucio veio viver para a rua e há dois anos que deambulava por sua própria conta. Conhecera Patrício num dia em que pedia boleia na Marginal e entretanto tivera vários empregos entre os quais um na Casa Africana, a celebre loja de modas na baixa pombalina, cujos sacos das compras exibiam um preto a carregá-las. Durante algum tempo, Lúcio foi, pois, porteiro do estabelecimento e seu ex-libris. Com um misto de divertimento e desprezo gostava de contar a primeira vez em que se prostituíra:
- Nessa altura vendia jornais e um homem perguntou-me o preço. Então, na pensão para onde me levou, o recepcionista, como eu não tinha bilhete de identidade, apontou-me o dedo e perguntou ao tipo:
- Onde é que foi arranjar "isso"?
"Isso" - Estão a ver...?
Lúcio não mais esquecera o tratamento.
Silvia, aos quinze anos, fora posta fora da casa da avó.
- Na minha familia aos quinze anos mandam-nos à vida. Já a  mãe da minha avó fez o mesmo à minha avó.
Sem abrigo, um advogado pusera-a por conta.
-  Mas ele era casado e a mulher descobriu. A seguir fui criada  de um coronel na reforma.  Mas batia-me e vim para a rua. No “serviço público” não há patrão. - A cicatriz sob o queixo recordava-lhe um mau encontro e mostrava-a como quem exibe uma condecoração de guerra. - Foi um tipo que me fez mal. Mas levou um pontapé nos colhões!
E Ema.
Por Ema apaixonei-me e tudo mudou. Ou assim o julguei.






















O mundo feria-me mas, lambendo as cicratrizes, eu crescia. Um mês antes e ser-me-ia impossível imaginar os meus novos companheiros. Um mês depois Ema, Lúcio e Sílvia eram os seres mais próximos que até ali encontrara. A nossa cumplicidade fazia-se de desespero e talvez fosse eu quem, mesmo assim, pudessse ver mais adiante. Lúcio acalentava a esperança de uma operação que, igualando-lhe as pernas - "o problema é o preço..." - lhe permitisse o ingresso numa equipa de futebol, Sílvia achava que um dia encontraria na rua o seu “principe encantado” e Ema...
Ema, a mais velha do grupo, fizera há pouco os dezassete anos e há quatro que trabalhava no "Principe Negro", um cabaré à rua da Glória. Convidou-me para vê-la dançar e percebi que o fazia da mesma forma que eu vivia: sacudindo o corpo com um frio desprezo.  Sob a sua aparência frágil estava também disposta a tudo. Mas, se eu era o viajante que se deitaria fora com a bagagem, quando o passeio azedassse, Lúcio o às de futebol da perna escangalhada e Sílvia, a prostituta que no esgoto encontraria o sapo que viraria príncipe,   a todos  unia  um mesmo objectivo: gastarmo-nos até à exaustão. O preço seria naturalmente a morte mas a guerra colonial prolongava-se há alguns anos, os canhões continuavam insaciáveis e o valor da vida era, para todo o país português, cada vez mais baixo.
Morrer estava na ordem do dia.
































- Apaixonei-me por ti. Ema. Não consigo esquecer-te. Ajuda-me! Quero ficar para sempre ao teu lado.
 Procurava pôr em pratica a minha capacidade de frieza, o meu distanciamento, apelava à racionalidade e aos argumentos mais objectivos para deixar de te querer: ela tem outro, talvez muitos, ela nem se lembra de ti, ela... Mas nada resultava. A cada tentativa para me afastar mais te aproximava e, como qualquer insano, só desejava mais amarras. O fracasso da minha revolta contra tão grande dependência, eu que, no nojo de ser de quem não gostava, tinha lutado por ser de ninguém, humilhava-me. No entanto o luto pelo que fora mitigava-se  na esperança de que me dissesses "Sim, também te amo".
Sentávamo-nos num café, o Martinho da Arcada,  e o empregado trouxe o absinto com que nos intoxicávamos. Mergulhei na cor da bebida como se nos teus olhos.
´- És muito belo - Disseste e, pela primeira vez, soube a  carícia o  que, na voz dos que me queriam só em parte, me tornara parte também.
- Amas-me? – Quis saber.
- Espera. Não tenhas pressa.
- Mas... - Não sei que diria. Da tua boca dependia a minha reunião e os meus destroços olhavam-na, rezando cada um para si: que ela diga sim, que ela diga sim...
- Não quero amar. O amor tira-nos a independência. Quem ama, escraviza-se. Desculpa se te magôo...
Tive vontade de destruir tudo, tornar o mundo num montão de restos idênticos aos que me ameaçavam.
- Mas eu amo-te. - E citei-te a Carta aos Coríntios que a minha tia, no intervalo das suas ausências, costumava ler antes das refeições: "o amor perdoa tudo, esquece tudo, sabe tudo".
- Eu nem amo o próximo...
- Só quero que me ames a mim!
O empregado tornou a encher os copos e pedi ao alcóol forças para vencer a tua frieza. Mas como eu próprio a conhecia!
- Ouve-me. Até te conhecer era outro. Nada me dizia e sentia-me incólume e incorruptível, embora nenhuma das palavras me tivessem significado. Só queria a experiência e ver-me no efeito. Confundia as coisas, entregava-me por cálculo e nunca pela entrega. Agora a cortina caiu, estou em tudo e tudo me é. Foste-me a passagem, a ponte. Seja eu a tua. Nada receies. Amo-te, eu amo-te.
- Não consigo amar. Não insistas.
- Porquê? Achas que...
- Ouve o que te vou contar e não falamos mais disto. Um dia fui com a minha mãe a casa de uma sua amiga que também tinha uma filha da minha idade. Brincávamos no jardim e a certa altura ela puxou-me pela mão e disse:
- Sei uma coisa. Queres ver? - Passámos uma arrecadação e fez-me espreitar pela fechadura de uma porta. Do outro lado um homem fodia a minha mãe  e a minha amiga murmurou-me ao ouvido: - A tua mãe é uma puta. - Bati-lhe mas ela tinha razão.  A sua mãe era proxeneta e a minha atendia clientes em casa dela. A partir daí, sempre que a minha mãe dizia dos sacrifícios que levava a cabo  para me criar, só desejava uma coisa: crescer para lhos pagar. Aos treze anos, Patrício, um seu cliente, apanhou-me só e vendi-lhe a virgindade. Nunca amei, percebes? Está fora de questão. Um comerciante não sabe a beneficiência. Mas sou feliz. Tenho o que quero.
- Eu ensino-te o amor!
Ema riu.
- Façamos uma aposta... – Sugeri.
Debrucei-me sobre a mesa e beijei-te. No entretanto veria o que propôr-te, como prolongar aquele momento. Mas Salazar proibia os beijos em público e o empregado aproximou-se e avisou:
- Desculpem mas não podem fazer isso aqui. O patrão acha  mal.
Obedecemos e desvendei a aposta:
- Amo-te e manténs-te distante. A ver quem ganha.
Nos teus olhos li a curiosidade pelo jogo que nunca se jogou e, encorajado, disse-te ao ouvido:
- Vamos aos lavabos. Quero beijar-te à vontade.
Num cubículo, encostados contra a parede, possuímo-nos. O teu corpo redimiu-me das experiências a que tanto obrigara o meu e, na rua, na alegria dos homens libertos, perguntei-te:
- Gostaste?
- És um excelente amante. Mas não te enganes. Os deuses mandam e os apaixonados servem.
Ouvi e acatei: eras - e és - o meu Senhor.








































A minha tia adoeceu e, num fim de tarde chuvoso, recebida a  extrema-unção, partiu  definitivamente para um lugar santo. Deixando o apartamento da rua da Imprensa, voltei à sua casa que me cabia já em herança.
Ema reuniu-se-me.
No estúdio as sessões de porno tinham o frio brilho do profissionalismo e todos faziamos gala em nada sentirmos, parecendo  o mais possível envolvidos. Ema era mestra na simulação, Lúcio e Silvia faziam por segui-la e eu participava cada vez mais distanciado porque, vítima da paixão, já me repugnava aquele teatro. Decidira despedir-me quando Patrício surgiu com um convite.
- Uns clientes das fotos dão uma festa e gostariam de convidar-vos. É gente fina. - Esfregou o polegar no indicador à frente dos olhos, e acrescentou: - E claro, pagam bem.
Nunca me prostituíra - a ida no cruzeiro grego com Firmino não se realizara e, em todo o caso, ela não envolvia dinheiro -  e lembrei a história da primeira vez de Lúcio. Como seria estar com alguém  que nos acaricia apenas porque nos aluga? Quem mais se rebaixa? O comprador ou o cliente? Ambos, para cumprir os respectivos papéis, abandonam o diálogo essencial, o do ser para ser, para se encontrarem num outro, o da mais-valia: pago e por isso recebo - Diz o cliente -  dou e por isso sou pago - Explica o vendedor. Mas no tempo deste negócio ambos se ignoram, embriagados pela troca de produtos. Não à moda aristocrática, a do meu avô, que na sua mansão possuía trinta criados e os conhecia a todos, do mais antigo ao recém-nascido, tendo andado ao colo do primeiro e apadrinhado o baptismo do último, que praticamente nada pagava pelo trabalho que deles recebia mas lhes dava casa, comida, dias de festa e convívio, como se fossem da família, e, por fim, o eram, pois como tal os defendia: os criados do meu avô não tinham preço mas trocavam serviços, numa entrega mútua de vidas: de um lado o suor, do outro a protecção de um sangue. O meu avô explorava trinta homens e mulheres sem direitos mas eles eram a sua gente a quem, por feitos e obras, devia honrar para que se orgulhassem de pertencer-lhe.
A puta, essa, entrega o corpo a  cair de pôdre mas, ao cliente, desde que ela sorria e mantenha as pernas na posição contratada, tanto faz: é a relação burguesa, a objectivização do mundo e a sua transformação em moeda de troca, a ignorância do dentro para melhor dominar o fora, a destruição dos conteúdos e a salvação pela forma.
Em ambas os modos, finalmente, o desencontro e a imperfeição humana: o paraíso talvez não seja para agora.
O meu desejo de perceber cada vez melhor Ema - que continuava a relacionar-se comigo amável mas friamente - levou-me a querer passar pela experiência de ser também uma coisa, perceber que relação estabelece com o cliente, ou sobretudo consigo, o que leva às ultimas consequências a objectivação do próprio corpo. A incapacidade de Ema em amar talvez resultasse desse afastamento de si, da distância que tivera que colocar entre ela e os sentimentos para melhor se vender. Naturalmente, à altura não a compreendia mas, amando-a, quis passar pela sua experiência.






























Quantas vezes escrevo e reescrevo isto? Dez, vinte? Uma centena? A lembrança esfuma-se à medida da sua repassagem de folha para folha e o que resta nem sei donde provém: da própria escrita, do acto de fazer letra ou da memória? Literatura? A nossa história...
No dia aprazado - terça? Quarta? Um dia tão anónimo como o de hoje e no entanto...
Páro.
Recomeço.
A lassidão toma-me e apetece baixar os braços, ficar mudo, pairar no intervalo das palavras e que elas, afinal, não digam. Porque a verdade...































Patricio conduziu-nos de carro - uma viatura luxuosa, com asas de peixe como então se usava - pela marginal. Ema sentava-se entre mim e Lucio e, à frente, Silvia e Domingos, um tipo apresentado por Patrício como seu sócio. Este falava pouco mas parecia importante no negócio, dando a ideia de ser o único entre todos quem, afinal, sabia onde nos dirigíamos. Durante algum tempo mantivemo-nos em silencio até que Patrício, carregando num botão, fez surgir um tabuleiro com copos e uma garrafa de champagne. O ambiente ficou menos tenso, e Sílvia, que costumava rir por tudo e por nada, retomou a sua expressão contente.  Lúcio voltou a contar do sonho de jogar futebol e Ema, a meu lado, pareceu também menos distante. Se ninguém soubesse da nossa história, diria que éramos um comum casal de namorados. Todavia a distancia  de Ema em relação a tudo continuava a impor-se e, mesmo nos momentos altos da nossa convivencia , eu ficava  confinado ao espaço do outro, o do intruso. Ema não permitia a entrada no seu íntimo, nem  tanto por um desejo consciente de que assim fosse, mas porque nunca experimentara viver doutra forma. A sua tensão era constante e nem a fazer amor se abandonava. O seu espírito, que exigia o comando do corpo, não lhe dava repouso e, neste exercício, era quase perfeita. Dirigia-a o interesse e, mesmo o convite para morar comigo, não fora aceite pelo prazer de uma companhia mas por uma questão de utilidade: ficava perto do “Príncipe Negro”, o tal cabaré onde dançava, eu, pelo meu lado, permitia-lhe uma vida independente e tudo, ao cabo de contas, se apresentava funcional. Aliás, funcionar era um termo que ficava bem a Ema. Funcionária de si, Ema era a peça adequada numa engrenagem que servia um único fim: ganhar dinheiro na dança, alugar o corpo quando calhava e mais nada. Mas isto que parecia pouco, afinal estragava-a. Talvez por isso, por uma necessidade de recuperação inconsciente, dormia muito e dias havia em que,  findo o show no cabaré, logo regressava à cama. Na realidade, percebo-o agora, Ema fugia a um mundo que detestava. A necessidade de tomar conta de si desde muito cedo, a ânsia de pagar a dívida à mãe, o sacrifício que aquela lhe atirava em cara, tudo isso lhe desfizera a infancia. E fingir-se adulta, quando ainda era criança, tornara-a dupla. No fundo, Ema sabia que a sensibilidade a ameaçava e que, abrindo-lhe a mais estreita escotilha, tudo desabaria para surgir uma pessoa carente, só e desesperada. Até lá, no entanto, a imagem era a de alguém auto-suficiente, sorrindo das muitas batalhas levadas a cabo. E porque, de facto, as tinha ganho, havia-se feito a pele dura: uma couraça protegia-a já de si mesma. Em consequência, Ema  imaginava-se a partir da sua imagem no espelho: mais além não via, nem lhe interessava. Fazíamos amor, e ela agradecia-mo com um beijo que no fundo dizia: "Sim, foi bom mas nada se passou. Tudo continua idêntico."
Ema não sentia por medo de si mesma.
No Estoril o carro envedou por uma ruela estreita, entrou pelo portão aberto de um jardim e, ao fundo, parou junto de um palacete. A sua arquitectura lembrava os contos da mil e uma noites: pequenas torres, abóbodas, vitrais mas nenhuma vida. Domingos indicou com um dedo a porta principal do edifício, alcandorada numa escadaria ladeada por duas cabeças de leão.
- Entrem por ali. Lá dentro esperam-vos.

























A noite caíra, estavamos nervosos e com Ema, á frente, ou não fosse ela o nosso modelo, empurrámos a porta indicada por Domingos. Entrámos num vasto vestíbulo de chão em mármore e paredes de madeira esculpidas a losangos, com trevos de quatro folhas, tendo ao centro um pequeno lago com repuxos. No meio da água, a estátua de um efebo nu, oferecia-nos um cacho de uvas. A seus pés, uma pantera adormecida identificava-o como um jovem Diónisos  mas a nossa ignorancia não nos permitia adivinhá-lo e muito menos perceber que  o conjunto,  à entrada da casa, era um convite para passar além da forma, dissolvendo-a no fundo que a todos subjaz: o caos.  Uma majestosa escada, forrada a vermelho-sangue e encimada por uma cúpula  de vitrais com figuras de pássaros, erguia-se até um segundo andar. A quebrar o silêncio, apenas o barulho da água no lago. Aquela alçava-se vitoriosa dos repuxos mas logo caía aos pés do jovem deus,  num movimento que embora ascensional reconhecia afinal a sua inutilidade: não seria melhor, e até mais natural, aceitar o convite e as uvas? Toma e embriaga-te. O resto que importa?...
 Sílvia teve um novo ataque de riso e, nesta altura, uma voz vinda de cima,  comentou:
- É disso mesmo que precisamos: companhias alegres e bem dispostas! Subam se fazem o favor. É aqui! –  Era um homem aparentando cerca de sessenta anos e falava do patamar no primeiro andar. Elegantemente vestido, beijou-nos nas faces quando o alcançámos.  – Sigam-me! – Conduzidos por um corredor cheio de retratos - senhores barbudos, cavaleiros de espada, um  bispo e senhoras de missal na mão - a todos, comandados já por Sílvia, que à nossa frente,mas atrás do anfitrião continuava aos risos, faziamos caretas. Então aquele abriu uma porta de par em par e entrámos num salão onde havia mais dois homens e uma mulher: os primeiros sentados em sofás e a última, loura e vestida de negro até aos pés, junto a um piano. No  tecto abobadado a azul e ouro uma orquestra de anjos tocava clarins
- Ei-los! Melhores do que nas fotos! – Disse o fulano que nos fora buscar e logo a mulher veio ao nosso encontro.
- Magníficos! – Exclamou ela.  Tomou a mão de Lúcio e levou-o para junto do piano: - Vem cá minha pérola! Anda tocar comigo!  Entretanto também um dos homens sentados no sofá se levantara e dirigira a Sílvia. Chamou-lhe Lolita e fê-la sentar junto de si.  Aparicava-a como a uma boneca de tamanho natural e Sílvia ria no seu modo infantil.  O outro indivíduo usava monóculo e, enlaçando-me,  ofereceu-me a sua taça de vinho.
- Posso tratar-te por Valentino? Asseguro-te que és mais belo que o original.
- Respondi que sim mas a minha atenção estava em Ema. O homem que nos fora buscar à escada também a abraçava e chamara-lhe “Marilyn”. Lembrei o que ela me sussurrara no carro:
- Não te preocupes comigo. Aprendi no berço.
Então, a mulher ao piano tocou um acorde mais alto para chamar a atenção e, tirando a cabeleira, mostrou um calva luzidia: era um homem! Os amigos fizeram um ”Ah!” de falso espanto e o travestti propôs:
- Apresentemo-nos! – Rodou sobre si próprio, como uma bailarino de flamenco e concluiu, acompanhando as palavras por uma nova música: - Nós... Nós somos apenas os “Quatro Cavaleiros do Apocalipse!”
Qualquer dos individuos podia ser nosso avô e o que, até ali mais me chocara, fora a percepção de qualquer deles me conhecia: além de prostituto, tornara-me  num modelo porno e, pela primeira vez, o realizava.
- Façamos uma saúde! - Propôs alguém.
Os copos foram sucessivamente cheios, o travestti cantou uma área em italiano e por fim, quando já só restavamos eu e o Monóculo num lado da sala e Ema e o dela no outro, o meu par convidou-me a segui-lo. Lúcio, Silvia e os respectivos clientes tinham entretanto desaparecido.
O fulano encaminhou-me para fora do salão e, voltando ambos ao patamar da escada, subimo-la. De cima olhei o lago, em baixo, com o efebo e as uvas. O homem comentou:
- É a estátua do deus do nada. Está à entrada para lembrar que lhe pertencemos... – Depois empurrou uma porta e surgiu um quarto. A cama era coroada por um gigantesco dossel e numa cómoda havia um candelabro  de sete braços. Ele acendeu-lhe as velas e, na meia luz explicou: - O sagrado vê-se na sombra – Depois, num tom que era de ordem ou de exigente súplica, disse: - Despe-te! – e eu obedeci.
Havia qualquer coisa na atmosfera como se estivessemos ali para tudo menos para uma venda. Ou que as coisas se faziam de tal forna que esquecera já a crueza com que Patrício me contratara.
O fulano pôs um disco e uma voz feminina entoou nova área.. Iluminando-me com o candelabro, o homem comentou:
- És um deus!
E, comigo já desnudo, mandou que me deitasse na cama.
- De barriga para baixo – Pediu.
E foi o que menos esperava, destruindo num só segundo tudo quanto a luxuosa ambiencia até ali conseguira, o encanto, a voz delicada e frágil da soprano, o cenário de mil e uma noites a que já me entregava.
 - Faz-me para a boca!
Pensei que  não percebera.
- Fazer?...
- Sim. Merda. Dá-me a tua merda!
- Como?
- Merda! – Ouviste bem. – E num tom que denotava  a contrariedade por ter de se repetir, explicitou: - Dá-me a tua merda. Quero prová-la! Vá! Quero-a!
Continuava de barriga para baixo e senti-lhe o rosto nas nádegas, o calor da respiração e a expectativa. O disco continuava a tocar mas eu deixara de ouvi-lo se é que já não me irritava. Afinal eu nunca tinha gostado de ópera! Entretanto, num unico plano, conjugando presente e passado como dizem que sucede aos prestes a morrer, surgiam-me os vários episódios que me tinham trazido até ali: a chatice de uma vida de estudante sem perspectivas, a aposta dos quinze anos, o ensaio do suicídio, o psiquiatra , a saída de casa, as sessões porno, Ema... E a ela, que sucederia? Quando saira do salão ficara la com o outro... Entretanto, por detrás, o Monóculo insistia:
- Vá! Faz! Faz por te apetecer... Preciso da tua merda! – E o tom ja não era ambíguo mas premente, uma ordem pura de cliente: - Faz!
Tentei acalmar-me. Algo em mim, talvez a minha melhor parte, me dizia que vivia um momento único, comparável, noutro plano, ao “onde arranjou isso?” que Lúcio nunca mais esquecera e que também eu, afinal, lembraria aquele momento para sempre, podendo contá-lo a quem quer que fosse... Contá-lo? O esforço de racionalização esbarrou em qualquer coisa e de novo me senti bloqueado. Então lembrei Firmino a dizer-me da vez em que o recusara: "Não vives cosmicamente. És um preconceituado. Quem não é capaz de tudo é porque é limitado." E,  entretanto, por detrás, de boca encostada ao meu rabo,  o homem  exigia a sua  mercadoria:
- Vá! Força! Deixa-a sair. Eu como-a toda.
Não fora eu quem quisera a experiência-todas-as-experiências, analizar-me em todos os resultados, descobrir-me no inimaginavel, porventura o inhumano? Então, na disciplina de quem cumpre de facto um contrato, varrendo no esforço raízes, memórias, falas e princípios, obriguei-me a defecar. Pela primeira vez, desde que deixara de fazer em fraldas, a minha merda saiu sem que um bacio ou sanita a aguardasse mas tendo como destinatário o buraco de uma boca! – Oh, é óptima! Como sabe bem! Que pura! Isso, dá-ma toda! Todinha! Oh que bem que ela sai!
O ritual desaparecera ou dera lugar a outro, no qual a minha participação, embora fundamental, deixara de me dizer respeito: entre mim e mim de novo, e mais clara que nunca, erguera-se uma separação, um muro entre quem fazia e o que fazia. Nojo! Sem levantar demasiado a cabeça, para nao me desviar da posição e lhe falhar a boca, olhei para trás: ele tinha o rosto untado de merda, a boca cheia dela e com as mãos buscava-lhe ainda mais, tudo por entre um cheiro nauseabundo e pesado. Entretanto, exclamava:
- Oh sim, sinto! Sinto! Estou mesmo a sentir! – Mas a sofreguidão com que engolia fez com que se engasgasse e num ataque de tosse expeliu parte da merda que já tinha na boca, sujando tudo em redor. O corpo convulsionou-se-me num ataque de vómitos e mais merda ainda se espalhou em redor. Tudo tresandava numa orgia de trampa, enquanto ele, já recomposto, continuava a exigir: - Mais! Quero mais! Dá-me o resto!
Explodi.
Cego, ou vendo tudo desfocado e vermelho, peguei na cabeça do meu cliente e bati vezes sem conta com ela na beira da cama, até não poder mais, até me saciar também. Depois, peguei no candelabro e atirei-o para cima daquilo tudo. Só então peguei na minha roupa e abandonei o quarto.
No salão, Ema, como se uma Pieta bêbada e nua, cantarolava uma canção de embalar ao homem dela  – o que nos recebera na escada – entretanto adormecido no seu regaço. Eu devia ter um aspecto tresloucado porque ela olhou-me asssustada:
- Que foi?
- Vá! Veste-te! – Ordenei por minha vez. – Vamos embora!
- Mas... ? – Percebi que queria saber a razão da minha ordem e repeti num tom que não admitia réplica: - Não é altura para perguntas. Temos de sair! O vestido branco de Ema, propositadamente oferecido, como todos os fatos que vestiramos, para a festa, estava numa  cadeira e dei-lho. - Veste-te! – Repeti.
Ema pousou com uma delicadeza que me pareceu desnecessária o homem no chão e obedeceu. Ele continuou a dormir e pela primeira vez vi Ema cambalear de bêbada. Amparei-a e abandonámos o salão, alcançando rápidos a escada. Não encontravamos ninguém mas também não o desejávamos. No res-do-chão, cruzando a estátua, senti então medo como se ela, deixando a sua paralisia, nos pudesse reter ou fizesse igualmente de pedra. Mas alcançámos a porta para o exterior e o bafo de uma noite quente e boa reconfortou-me. No jardim cães ladraram e sem os ver, ou deles fazer caso, atingimos o portão de saída. Ema perguntou:
- Para onde vamos?
- Para casa – Respondi, e a resposta pareceu-me óbvia, como se de casa nunca deveramos sair. Já na rua, cruzou um táxi e chamei-o. O carro parou.  O condutor, um homem também jovem, trazia a música em altos berros e baixou-a para nos ouvir. Depois, dita a direcção, perguntou:
- Podemos ouvir rádio, chefe? Este posto dá boa música!
- Sim – Concordei. - Pode voltar a pô-la bem alta!
Ema encostada ao meu ombro adormeceu e, já na Marginal, bombeiros, em grande alarido, cruzaram a nossa viatura. Por momento o barulho das sirenes cobriu a voz de Steve Wonder que porém logo voltou: I’ m free!
   






































- Se mataste o tipo teremos problemas. Se não... Enfim, passará por excesso de festa - tentava tranquilizar-me Ema. Talvez ela tivesse razão mas eu atormentava-me. Batera com  força?  Ou fora só um toque? E onde? De encontro ao colchão ou à parte dura da cama? Embora tivessem passado várias horas sobre o acontecimento, ninguém atendia nos telefones dos nossos colegas ou no de Patrício. No entretanto firmara-se-me a convicção de que o candelabro que, no auge da fúria, lançara ao ar no quarto estava ligado com o carro de bombeiros que se cruzara connosco na marginal: eu teria lançado fogo ao palacete! E já queria lá voltar para certificar-me do estrago. Mas Ema, sempre de cabeça fria, retinha-me:
- Deixa o tempo passar. De manhã telefona-se para o estúdio ou talvez os jornais tragam alguma coisa. Não é assim que fazem os "gansters"' para saberem do que fizeram? - Ela sorria mas eu não achava piada alguma e uma questão sobretudo preocupava-me: porque não me tinha dominado? A suspeita da tia acerca da minha anormalidade corroborava-se? Era, inclusive, perigoso? O pedido do homem não fora apenas um pretexto, uma voz a dizer  "Destrói!" que há muito eu desejava, da mesma forma que um toxicómano anseia pela sua dose? No meu gesto, mais do que o nojo, não houvera sobretudo o prazer de que vinga uma obediência de séculos, a opressão herdada com os bens de família, a exaltação do caos e a ressureição da vida? Não fora eu, afinal,  um dos Cavaleiros do Apocalipse? O telefone tocou.
- Patrício? - perguntei para o outro lado
- Sim, sou eu. Fizeste-a boa!
- Como?
- Preparem-se para ser presos! - Por momentos fiquei parado de auscultador na mão, pois do outro lado tinham desligado.
- O que foi?
- Patricio... Disse que nos vêm prender...
- Falava a sério?
- Acho que sim.
Matara? Lembrei as palavras da minha hipotética vitima. "Gosto de merda... Faz-me sentir! Preciso de sentir!..."
- Ele queixava-se de não... - balbuciei.
- De não...?
Subitamente parecia-me descobrir no caso do meu ex-cliente um aliado para a minha causa junto de Ema e explicitei:
- Isso que pretendes, o não ter paixões, se calhar necessitamos delas. Para... praticar os sentimentos.
- Queres que a sensibilidade nos domine? Ela engana.
- Não sei. A dor se calhar faz parte disto. Não nascemos deuses. Temos limites.
- A cada um os seus. Mas que ninguém diga o que não posso. Não me cortem as asas!
- Um dia o homem voou até ao Sol e queimou-se...
- Há quedas que não envergonham. - Concluiu Ema, ao mesmo tempo que desembrulhava uma pastilha e ma enfiava na boca. - Toma e dorme! É o que precisas! 
Sonhei orgias onde os corpos pesavam como chumbo e, manhãzinha cedo, fui o primeiro a acordar. O Sol batia na janela e, através das persianas, projectava na parede fronteira as estrias daquelas como se foram grades. Lembrei o aviso de Patrício mas, em acordo com a propaganda do calmante que Ema me dera, a qual  propunha "adormeça bem e desperte melhor!" sentia-me com boa disposição, optimista mesmo. Não voltaria ao estúdio e acabaria de vez com a porno. A resolução tornava-me leve como se tivesse terminado um trabalho dificil ou um ciclo de vida. E se o meu romance com Ema não correspondia ao ideal das histórias cor-de-rosa, nas quais os protagonistas se entregam em vida e marcam reencontro no Além, possuía, pelo menos, a consistencia das coisas reais. A vida parecia de novo possível. Talvez devesse a minha felicidade ao despertar sob efeito do fármaco mas ela parecia-me autêntica.
Na disposição de quem vagueia o olhar pelas coisas sem se dar ainda à fábrica do dia, percebi  na estante frente à cama o "Crime e Castigo" do Dostoievski. Fui buscar  o livro e regressei ao leito. Ema despertou e viu o que lia.
- Sentes-te em pecado, meu querido?
Levantou-se e fechou-se na casa de banho. Sob o barulho do chuveiro falava alto para que a ouvisse:
- O sentimento da culpa conduz ao castigo.  A maioria é o seu próprio carrasco. Tem o que merece.
Elevei também a voz:
- Queres dizer que a total disponibilidade pressupõe a ausência de escrúpulos?
Ema abandonou a casa de banho. As nossas vozes retomaram o volume normal.
- Todos são chamados mas poucos respondem... – Disse ela, voltando-se a meter na cama. Agarrei-a.
- Deixa-te de teorias! Já me amas, minha fora-da-lei?
Ema libertou-se.
- Vai comprar o jornal - Ordenou. - Anseio por saber o teu crime. - E com um sorriso de entendida, concluíu - De qualquer forma nunca chegamos ao fim sem cometer algum. Depois,  enroscou-se de novo nos lençõis e eu, atiçado pelo desafio, vesti-me  e saí.
Na rua parei frente a uma banca de jornais. A maioria das primeiras páginas, anunciando para aquela noite o "Festival da Eurovisão", perguntavam se, daquela vez, Portugal obteria o prémio máximo. O adjectivo fez-me vir à memória as palavras do "Monóculo": "És um deus! És um deus!" Mas que deus fora? Uma divindade pequenina e susceptível, um deus que vomitava de nojo! Mal impressionado com a descoberta - o efeito do suporífero passava e voltava à deprimente realidade? – comprei o jornal. Sem sequer abri-lo, regressei a casa. Na primeira página, pelo menos, não vinha nada.
Ema ainda dormia. Meio destapada, com o cabelo platinado, a expressão serena e a boca sempre vermelha parecia a imagem arranjada de um filme.  A minha esperança em seduzi-la continuava intacta e, tarde ou cedo o meu cerco ganhá-la-ia. Ela acordou e espreguiçou-se.
- Olá, meu criminoso! Então, qual é o teu crime?.
Sentou-se na cama, coloquei-me a seu lado e, juntos, abrimos finalmente o jornal. Com a cabeça no meu ombro Ema  seguia o passar das páginas mas nada nos dizia respeito.
- Patrício quis-nos meter medo – Disse a minha companheira no meio de um bocejo. E eu ia a concordar quando, na secção das "últimas notícias", demos com o retrato do "Monóculo" em fato de gala e uma legenda por baixo: "Incêndio em casa de ministro". 
Fiquei sem palavras.
Ema, verificando que a sua crença não fora defraudada, olhava-me gulosa: o meu crime valia a pena! Então, resignado ao feito e já consciente do meu direito a um prémio, abracei-a. E fingindo que a estrangulava, exigia: 
- Vá! Confessa que perdeste a aposta! Diz que me amas!
Rolavamos pela cama quando bateram à porta. Sem nos darem tempo a abri-la, quatro homens de metralhadoras em punho, irromperam pelo quarto.
- Polícia Internacional de Defesa do Estado. Estão presos! - Disse um.
Puxaram-me para um lado, Ema foi levada para outro e ao ver que nos separavam, gritei-lhe:
- Vá! Diz que me amas! Diz!
- Eu... - Ia ela a responder mas um pide, pensando porventura que falaríamos por código, tapou-lhe a boca. E logo outros dois me arrastaram para fora do apartamento. Empurrado pela escada abaixo, cheguei à rua onde me meteram num volkswagen. 
O carro não tinha nenhuma sigla da polícia.


































A verdade. Nada mais que a verdade. Tento atraí-la mas ela escapa-me como areia por entre os dedos. Será o preço que pago? Eu não cohecia Raskolnikov. Em casa só havia livros religiosos e o primeiro que li fora daquela série, a biografia de um condeado à morte contada por ele próprio,  comprei-o num alfarrabista. Chorei ao lê-lo, sobretudo nas partes em que a mãe, cancerosa, o visitava na cadeia... Balelas, fait-divers, coisas diferentes daquelas em que a vda se me enrodilhou?
Crime e castigo...
Perto de casa havia uma livraria e olhava os livros, os não religiosos, como um mundo proibido e que deveria valer a pena. Mas a tia so gastava o dinheiro em obras pias.
E todavia não.
Ao correr da pena, no soltar da palavra, sai-me o que não foi e o meu intento de verdade perde-se na minha incapacidade de me travão a mão. Como naquela noite em que o nojo foi maior que a grandeza ou...
Palavras... Palavras... Palavras...
Devo regressar à folha, pois fora dela sinto-me pior.
Naquela manhã tudo mudou e nada mais foi o mesmo. Não o sabíamos, é claro...
A verdade... Ater-me à verdade. Não inventar uma só linha ou mesmo palavra. Mas o real...
Lá vamos!
Ó-ó... Dorme, meu bem... dorme...
Era uma vez...




































O carro parou na Rua António Maria Cardoso, junto à sede da Pide, o sítio em cuja estada se exercitavam os meus colegas no jogo da tortura. E todavia não fizera o exercício, o trabalho de casa. Usaria a célebre frase do  “não sei de nada”? Mas aguentaria? E afinal o que é que eu sabia? Perigosamente parecia-me que de facto não sabia mesmo de nada, isto é, que era a única coisa que poderia de facto afirmar. A realidade assustou-me e dois indivíduos vieram-me  buscar à entrada, levando-me por uma ala cheia de portas. Além delas o barulho de máquinas, a azáfama das grandes empresas. No outro extremo do corredor, surgia um grupo de três homens: o do meio vinha em bruços, suportado pelos restantes. Quando nos cruzámos os meus acompanhantes perguntaram aos colegas:
- Isso vai!
- Então não há-de ir? – Respondeu um dos interpelados e senti que o grupo continuava arrastando-se nas nossas costas. Entao um dos meus guardas abriu uma porta e fui empurrado para um cubículo interior. Fecharam-me por fora.
Era uma divisão de paredes altas, sem janela e desprovida de mobiliário. A  luz  passava por um vidro pintado de amarelo sujo, que encimava uma porta fechada. Bocados de tinta tinham-se despegado mas a sua grande altura impedia-me de espreitar o outro lado. Entretanto, no corredor, gente ía e vinha. Senti-me abandonado e percebi que a manhã ia passando sem me me dissessem nada. Que esperariam? Porque não me interrogavam? A certa altura houve uma pausa na azáfama do edifício e intui que seria já a hora do almoço. Eu também tinha fome. Sentado a um canto, no chão, incomodava-me sobretudo nada saber de Ema. Porque também a prendiam? Não fora eu o incendiário? Ou o assassino? Porém o jornal nada dizia da sorte do ministro e isso fazia supor que o incendio não causara vítimas. Mas seria verdade? Que certeza poderia ter? E no entanto, assassino ou não, eu nao sentia arrependimento. Nada. Nao sentia nada. Ou apenas receio pelo que Ema estaria a passar, quando ela não era culpada de coisa alguma. Apeteceu-me bater na porta e gritar isso mesmo: Ema nao fez nada! Fui eu quem fez  tudo eu! Eu... Mas fizera o quê? Pegara fogo a uma casa, sem dúvida, e isso merecia castigo... Ou estava ali porque era um assassino? A azáfama do lado de fora da porta voltou: a oficina devia regressar ao serviço. Pensei no individuo que vira em bruços. Onde estaria agora? Que lhe teriam feito para chegar àquele estado? A “chinesa”? A “tina de água”? Os “alfinetes”? Mas tudo isso me pareceu já pueril, um mero jogo de crianças. Agora era a sério e não sabia como preparar-me. Afinal apenas lançara fogo a uma casa e por detras disso nao havia segredo nenhum... A não ser... A não ser que pensassem que o meu crime fora premeditado... Afinal o homem era um ministro... A hipótese fez-me tremer. Estava metido numa boa! E Ema comigo, arrastada no processo! Quando nos reveríamos? Nunca mais? A ideia pareceu-me absurda. Afinal éramos jovens, a idade levaria de certeza a melhor sobre os nossos algozes. E os outros, a Silvia e o Lúcio? Que lhes teria sucedido? Presos também? A festa tornara-se de facto um apocalipse?  E fora eu o deus, o senhor do castigo? Afinal de contas... Sim, talvez não tivesse morto mas fora só por acaso: na realidade eu agira como um assassino. E agora ali estava. Bem-feito, portanto.  Este pensamento trouxe-me alguma calma, a reconcliação com o meu estado: cometera um crime, devia pagá-lo. Mas a sensação durou pouco, e logo a inquietação me retomou. De repente dei conta de que o barulho das máquinas do lado de fora da porta voltara a amainar. E que vozes diziam “até amanhã”. Sim, a jornada de trabalho terminava, e com ele o meu primeiro dia de prisão. Mas dormiria ali? Onde a cama? A tarimba? Não fora o que vira nos filmes de serie B? Então a porta abriu-se e surgiram dois novos homens, sempre vestidos à civil. Aliás, desde que fora preso ainda não vira ninguém fardado. A polícia política não possuía uniforme ou servia-se do usado pelo homem e mulher comuns a fim de melhor se diluír na sociedade e caçar com mais eficácia as suas presas. Eu e Ema tinhamos-lhes caído na teia. Mas que saberiam de nós? E se contasse que o ministro comia merda? Por momentos a ideia pareceu-me um trunfo mas logo percebi que de nada me serviria. Pelo contrario, seria mesmo conveniente esquecê-la...
Um dos fulanos entrou na cela enquanto o outro se encostou à ombreira da porta.
- Vamos dar um passeio - Disse o primeiro, e no tom onde o mais importante seria tudo excepto a minha resposta, quis saber: - Gostas de passear?
Estava sentado no chão e ergui-me para lhe responder.  Mas, mal o fiz, ele socou-me e tornei ao chão. Pareceu-me que desmaiava mas sustive-me.
- Levanta-te! - Ordenou o tipo. Depois, num tom já dócil, como se falasse a uma criança, explicou - Uma pergunta é como uma carta: tem sempre resposta. Não sabes disso? E voltou ao registo anterior: - Gostas ou não de passear?
Desde manhã tinha tido tempo para pensar. O efeito eufórico do calmante da véspera há muito que desaparecera e estava a sós com a realidade. Tentei soerguer-me mas o fulano, abandonando o tom afavel, deu-me um pontapé na cara. Senti-a quente, levei a mão onde sentira o embate e retirei-a suja de sangue. Nesse momento o tipo que ficara sob a ombreira da porta comentou:
- Lá se vai sujar o chão!
O meu agressor tirou um lenço do bolso das calças e estendeu-mo. Depois, como se lembrado ao que ambos tinham vindo fazer, disse: -  Bom! Deixa lá! Não foi por mal!  Limpa-te e vamos embora.  Mas  logo voltou ao registo violento: - Mexe-te!
Levantei-me, sem que dessa vez recebesse soco algum mas a cabeça andava-me à roda e fui contra uma parede.
- Temos de ajudá-lo – Ouvi que diziam e, cada um de seu lado, puseram-se a levantar-me.
No longo corredor cheio de portas, conduzido em bruços, eu era o indivíduo que de manhãzinha, pela entrada, cruzara.




























Num pátio interior iluminado por um holofote aguardava-nos um carro, sempre sem qualquer sigla policial. Um homem estava ao volante e outro, vindo não sei donde,  sentou-se a seu lado. Eu fui metido no banco detrás, entre os meus dois guardas. O veículo desandou, um portão abriu-se e saímos para a rua. Nesta não se via ninguém e no tablier do carro um relógio deu sinal das vinte e duas horas.
- Está tudo a ver o festival! – comentou o fulano ao lado do condutor, e logo abriu a rádio.
Tal como os jornais da manhã anunciavam aquela era a noite do concurso da eurovisão e Portugal concorria com um cançoneta. O festival contava seis anos, o país concorria desde há cinco e nunca ganhara ou ficara nos primeiros. A decepção pátria, alimentada pelas parangonas dos jormais que, na mediocridade das notícias possiveis de publicar, faziam do certame um evento excepcional, fora sempre grande. Portugal, afastado da vida parlamentar normal nos restantes países europeus, com excepção da vizinha Espanha, sujeita também à ditadura de Franco, marginalizado pela sua péssima posição em todos os indices relativos ao bem-estar do cidadão comum, via no concurso das canções europeias uma hipótese de desforra. Ah, se a cantar, ao menos, ganhasse um primeiro lugar! Infelizmente, fazendo eco às restantes classificações, a canção portuguesa ficava sempre nas últimas posições, senão mesmo na derradeira. Mas naquela noite talvez o júri reconhecesse finalmente o valor luso e Portugal acertasse no alvo.
Naquele ano o festival realizava-se nos paises baixos, na Holanda, porque esta ganhara a última edição do certame. E o interesse do pide na transmissão radiofónica do evento traduzia-se, não só nas ruas desertas de gente que o carro ia atravessando como, em contapartida, no aglomerado de famílias sentadas nos cafés olhando a televisão. Muitos poucas podiam dar-se ao luxo de terem  um aparelho em casa.
Na telefonia o correspondente português no país baixo relançou, em tom eufórico, a pergunta que os jornais da manhã ja estampavam nas parangonas: “Portugal ganhará?”, dando de imediato entrada è entrevista com os responsáveis pela cançoneta nacional: o autor da música e texto e o  intérprete. A primeira pergunta foi para o cantor:
- Que sente por representar Portugal?
- Orgulho por defender a pátria – Disse de imediato a vedeta, logo seguida pela resposta do autor da canção:
- Honra por defender o país, os valores que fazem a nossa tradição. Os portugueses são um povo que extirpou de si o ódio, um povo pacífico que dá lições de tolerancia ao mundo, um povo que...
O sangue tinha estancado e apesar de ver ainda mal, percebi que seguiamos na direcção de Benfica, provavelmente a caminho da mata de Monsanto. A  minha cultura cinematografica, alimentada  à base de filmes de serie B,  dizia-me que, chegado ao bosque, o carro pararia para me fazerem sair e, depois de me levarem a caminhar um pouco, para que não sujasse a viatura, encher-me-iam de furos. Lera, como fazem os "gangsters" no dia seguinte ao do seu crime, o anúncio da minha obra no jornal e preparava-me para morrer "em passeio" como era hábito entre tal gente. A vida pareceu-me assaz parca: meia duzia de sensações e, em seguida, o nada. Afinal não havia chegado a  lado algum. Não teria sido melhor que não me metesse em aventuras, contentando-me com o quotidiano que me destinavam? Aliás, o estribilho da canção portuguesa que naquele momento a rádio já transmitia, propunha isso mesmo: O lar é o nosso mundo/Sem ele somos nada/Tu, eu e os nossos filhonhos/O resto que importa?/Lá-lá-lá-lá...
E Ema?
Parei o  pensamento porque lembrá-la, doía. Mas tinha a certeza que já me amava, embora ainda não o assumisse, agindo antes como a presa que, sabendo-se sem salvação, pactua com o caçador, na esperança de lhe escapar na primeira oportunidade. No entanto o meu ardil não deixaria de cavar nela hábitos, de levar Ema a conhecer-se doutra maneira. E no entanto... No entanto tudo fora inutil! Manietado entre os meus agressores, até o suicídio, a minha derradeira esperança, se tornara numa solução impossível.
Restava a dor.
Perdido nos meus “ultimos pensamentos” nem reparei que o carro, depois de dar de facto entrada na mata de Monsanto, abandonara-a  já, deixando ver adiante, no cimo de uma colina, um edificio branco, iluminado pela luz  crua de projectores. Um dos pides, porém, despertar-me-ia para a visão ao referir-se ao edificio, por “cá chias”.
Nem nas sessões de torturas dos estudantes eu ouvira o nome da célebre prisão para onde me levavam, pronunciado daquela maneira.

































De manhã fui acordado pelo que me pareceu um apito de árbitro, como se de facto estivesse num campo de futebol. Mas cheio de amargura reconheci a realidade: era o único ocupante da cela onde na noite anterior fora encerrado. Um beliche de duas camas, um armário, uma mesa feita a partir de um parapeito de pedra que saía da parede e uma sanita. A janela gradeada dava para uma parede que quase se lhe encostava e havia também uma cadeira.  Fora ouviu-se o ruído de portas que abriam e fechavam e a do meu catre também se escancarou, rangendo igualemente nos gonzos. Um homem de elegante fato cizento, entrou e, vendo-me deitado, avisou:
- Quando de manhã vier para a inspecção quero encontrá-lo em sentido ao lado da  cama. – Meio atabalhoado respondi com um “sim, senhor” mas, entretanto, já o fulano, empertigamente, dera meia volta, saindo porta fora. O barulho das sucessivas portas a abrirem e fecharem regressou ao corredor.  Daí a pouco um guarda reapareceu:
- Vai ao médico – Anunciou. Fez-me sinal de que o seguisse e percorremos o corredor, de facto ladeado de portas de ambos os lados, cada uma assinalada por um número. A minha era a vinte e oito e o consultório ficava no topo da enorme galeria. Entrei e sentado a uma secretária estava um homem vestido à civil. Mandou que me colocasse numa balança, pesou-me, tirou-me a altura e, sem me fazer qualquer pergunta, comentou:
- Tudo normal – e o guarda, que entretanto assistia, percebeu  que a consulta terminara.
O médico não tinha dado qualquer sinal de me ter visto antes mas eu reconhecera-o: era o psiquiatra a que a tia me havia levado.
.Desta vez não precisaria de lhe contar qualquer história.

























O tempo não apaga a violencia de que em tempo se foi vítima. Pelo contrário, a sua consciencia agudiza-se como se a passagem dos anos oferecesse à memória a certeza da injustiça que se sofreu, o julgamento definitivo de que a dor poderia evitar-se. A cicatriz do mal, que entretanto só é visivel para a vítima, reabre-se então e, embora não sangre nem doa, inunda-nos de uma mágoa que diz sempre o mesmo: sofreste em vão, nada daquilo era necessário. E o que na altura em que o verdugo exercia o seu poder se suportava com o estoicismo de uma estranha necessidade, que nos dispunha à entrega heróica da vida, aparece, à medida que o tempo passa, contaminado pela lepra da arbitrariedade. Vítima e carrasco tornam-se então fantoches de uma circunstancia da qual porém ambos escapam, dando à história uma justificação: foi assim porque quis – dirá um – enquanto outro fará apelo ao mero cumprimento de ordens.
Depois de dois meses sem ver ninguém, salvo os carcereiros e o barbeiro ao qual, dia sim, dia não, com uma meticulosidade de relojoeiro, me levavam, perguntei a este último, rompendo o pesado silêncio que, de todas as vezes, nos envolvia: eu pensando em Ema, ele na sua vida.
- Afinal quanto tempo se pode estar aqui? – Mas a pergunta soar-lhe-ia estranha, senão de todo anormal - deveria eu há muito saber a resposta? – pois  que,  com um sorriso mais frio que a lâmina com que me cortava, parou a tarefa e exclamou
- Oh, aqui? Cá tudo é possível! – E desatou a rir aos solavancos, como se tivesse contado a anedota melhor do mundo, enquanto a navalha volteava alegremente no ar.
- Cá? Ora cá...!
Lembrei o comentário do pide, no carro, ao avistar o edíficio da prisão: 
- Cá xias...





























De noite via Ema.
Corríamos um para o outro mas, quando nos íamos a abraçar, um apito, um muro de Jericó, separava-nos e, ao contrário do outro, nunca se desfazia: era o toque estrídulo do despertar,  seguido pelo barulho das portas no corredor abrindo e fechando, mais o  homem do fato elegante logo na cela e eu, de pé, ao lado do beliche, em sentido. 
O maravilhoso sonho, a sua cruel interrupção repetiam-se todas as manhãs. 
Por fim, para não te perder, recusava-me a adormecer. Porém, na vigilia, acossavam-me  vozes.
Dizia uma
- Esqueceram-te! Nunca mais te lembraram nem têm razões para fazê-lo. Quem dá pela tua falta? O estúdio? Mas se foi Patrício quem deu a tua morada à PIDE! Estás só e vão fazer de ti o que quizerem. E com Ema na mesma situação! Ah, ah! Foi o fim. O fim, percebes? Nunca mais tornarás a casa, à vida em conjunto. E Ema quer-te. Conseguiste que ela te amasse mas... para quê? Não seria melhor nem a teres conhecido? Não sofres agora ainda mais com as saudades? Claro, podes chamar o carcereiro e prometer-lhe que nunca contarás nada do sucedido, que nunca falarás do "Monóculo" mas isso... denunciar-te-à. Sim, o ministro mandou-te prender e nem quer que te interroguem! Preso e incomunicável! Arranjaste-a boa!
A seguir vinha outra voz:
- Não. Não é verdade o que dizes. Tu vais sair. A prisão não pode durar toda a vida. O ministro um dia há-de morrer. Podia ser teu avô! E depois da sua morte perguntar-se-ão por que estás preso. Vá: prepara-te para a longa espera! Vinte anos! Isso! Vinte anos! Mais do que vinte anos nunca será! E o importante é que não te deixes ir abaixo!  Entretém-te! Não tens  papel nem lápis mas podes desenhar em imaginação ou andar de um lado para o outro para manteres a forma.  Cinco passos para lá e outros tantos para cá. Ao fim de uma hora terás andado um kilómetro, quem sabe se dois. Mas não desistas! Queres voltar a ver Ema, não é verdade? Então..."
Esta voz dava lugar a uma terceira.
- Não penses! O melhor é não pensares! Deixa-te ir! O que eles querem é que te preocupes, que te tortures, que sejas o teu próprio carrasco. Reduz a actividade. Não te podes deitar senão à noite mas é-te permitido sentar. Tenta a Yoga. Vá, não penses!
E outra fala substituía ainda a anterior:
- Mas tu quiseste matá-lo, não foi? Então cumpre! Isso, cumpre! Vá lá, tiveste sorte e o fulano não morreu! Mas o que importa é a intenção, portanto cumpre! Não passas de um assassino! Sim, reconhece que o és. Se te dá outra fúria? Não vês que és perigoso? Como poderá a sociedade confiar  em ti? Ter a certeza de que não agrides? Não. O melhor é estares preso. Ao menos enclausurado, todos estarão em segurança e viverão tranquilos.
- Estou mas é a ficar doido! - Dizia-me por fim  de viva voz, fazendo valer uma última:
- Ora, aquilo era uma festa, portanto é natural que se tenham cometido excessos! E eu não matei! Eles não se diziam os Cavaleiros do Apocalipse? Então... Mas porque não me libertam? Porque não dizem nada? Esqueceram-me? Nem o nome ainda me perguntaram! E se se enganaram? Se era a outro que procuravam e não a mim?...
As vozes reapareciam, repetiam-se uma e mais outra vez, como nas sessões contínuas de cinema até que, de extenuado, adormecia, para de novo sonhar com Ema. Na altura do encontro caía então o apito, as portas abriam, fechavam, os gonzos ganiam e eu, tendo-me levantado como um automato, acordava finalmente para receber em sentido o homem do fato cinzento.
Uma manhã o carcereiro avisou:
- A seguir ao almoço tem direito a recreio.
Não foi como se dissessem "Está livre! Pode ir embora!" mas quase! Fazia seis meses que me prendiam e finalmente lembravam-me, iria ver outros e, quem sabe se não também Ema, lá no pátio das mulheres! Ou, pelo menos, conversaria sobre tudo aquilo! A minha ansiosa imaginação, o mal em que eu próprio me  tornara, chegava ao fim e a solidão, pelo menos pelo espaço de algum tempo, tornar-se-ia doce companhia.
Antevendo os momentos de convivencia no pátio da prisão fui feliz. O  carcereiro tinha dito que eu passava a ter "direito a recreio" e isso talvez significasse que dali em diante a minha situação melhoria,  dar-me-iam, enfim, atenção. Talvez  tivessem até concluído pela inutilidade do meu isolamento. Enquanto esperava que me viessem buscar para me conduzirem ao pátio  cuidei do meu aspecto o melhor que pude.  Não queria  apresentar-me desmazelado, dar aso a que dissessem - ou relatassem a Ema - mas continuaria ela presa?... - que me estava a ir abaixo, que a prisão ganhava sobre a minha resistencia! Com as costas da mão escovei então as calças e os dedos serviram-me de pente. E quando o almoço veio, comi-o pela primeira vez com apetite. Depois, a cada novo barulho no corredor, parecia que abriam a porta da cela para me virem buscar. Finalmente o carcereiro apareceu
- Preparado para o recreio? – Perguntou e a questão soou-me inútil como se eu pudesse estar preparado para outra coisa! Recreio...
Segui o fulano pelo longo corredor, na direcção oposta à do  consultório do psiquiatra até desembocarmos num patamar. Deste saia uma escada e subimos dois pisos. A seguir percorremos uma  galeria funda, de tectos baixos, parando frente a uma porta. A minha excitação não podia ser maior. Finalmente ia acontecer, a minha solidão chegava ao fim.
- Venho buscá-lo daqui a um quarto de hora - Disse o guarda e deixou-me, fechando-me por fora.
O sol entrava a rodos numa cela idêntica à que pouco antes abandonara, mas sem tecto,  e a minha elegante sombra, gelada no cimento, cumprimentou-me
O recreio era só.
































Dias mais tarde o carcereiro fez outro aviso:
- Prepare-se que vai à investigação.
Desconhecia o que deveria fazer para me "preparar" mas voltei a escovar as calças com a mão e a pentear o cabelo com os dedos.
A porta abriu-se e um outro guarda  veio buscar-me.
Descemos a escadaria que, em sentido contrário, conduzia às celas do recreio e entrámos num pátio afogado entre paredes altas. No cimo um céu azul, como a tampa brilhante de um taparuere. Um resto de viatura, uma coisa sem  capota nem portas, aguardava-nos, com o motor a fungar. Tomei lugar entre dois homens e um terceiro, ao volante, pôs aquilo em andamento. Com a magia de um castelo de Drákula a parede à nossa frente fendeu-se, dando lugar a um túnel. O tecto brilhante de humidade assombrava-se nos reflexos oscilantes de uma lâmpada algures. Fazia uma forte corrente de ar e um morcego atravessou o espaço. Que haveria do lado de lá? Afinal, galgada uma curva do caminho, surgiu a luz do dia e um segundo pátio. Neste fizeram-me sair do carro e, entregue a novos carcereiros, penetrámos em mais um corredor. Frente a uma porta, uma deles abriu-a e empurrou-me, logo a trancando sobre mim. Olhei em volta: estava num descampado, fora da prisão. Tinha sido libertado.
Nunca soube porque me prendiam ou alguma vez os jornais citaram o meu nome. Foi tudo um sonho?
Aqui tudo é possível – Avisara o barbeiro.




Odense.






















Não saber onde mas tomar o autocarro número dois todas as manhãs, comparecer nas aulas, aprender o presente do indicativo do "estou feliz e contente com a mudança". Se a loucura é branca, porque o branco resulta da anulação de todas as cores, de todas as sensibilidades, numa amálgama indistinta do ser e estar, então a paisagem enlouqueceu e a neve o seu manto louco. Nos caminhos, nos pátios, nos jardins, onde fosse.
Não.
Não quero começar assim.
Segunda tentativa:
Em Odense havia muita gente à espera, não dessa vez, quero dizer, mas da outra, a da chegada à pequenina ilha de Fyn, na Dinamarca, lá onde nos aguardavam, à porta do Hotel Axelhus, como se nos conhecessem de antemão, a mim, a Ema e aos outros, fossem  todas nossas familiares e as houvessemos deixado, nós, os ingratos, os  pródigos, os finalmente reaparecidos, vindos, então, de camioneta, a carga de refugiados do dia.
A viagem, desde Lisboa, tinha durado cerca de um mês e sentia um grande enjôo, uma vontade irresistivel de fazer nada, de ficar quieto, em silêncio, num canto, sem pronunciar palavra ou saber de coisa alguma. Precisava de nada.
Mas elas lá estavam, as assistentes, e cada um de nós fora destinado à sua. Mas ainda não o sabíamos e ali estavamos, desembarcados à porta do Hotel Axelhus, numa rua orgulhosa dos seus saldos todo o ano e onde não faltavam, nas lojas da especialidade, os caixões rodeados de terra fingida e cobertos de flores artificiais. No entretanto elas, as assistentes, aguardavam-nos a descida da camioneta - ou do camião de carga. Eramos os deslocados, os tirados de um sítio e postos noutro, como quem muda objectos da prateleira de baixo para a de cima, ou vice-versa. No caso, a mudança tinha sido de país para país, pois algures foramos proibidos. E - diriam elas não tardaria -  íamos receber isto e mais aquilo, tudo objectos importantes,  alem de um livrinho de bolso - o guia da cidade - com a foto da casa do Andersen, o d' "o rei vai nu!".  Não viveu ele em Odense? Sim, tudo ali, tudo ao dispôr, como se ressuscitados  num mundo de cartões de crédito, mil  facilidades à nossa espera: não podiamos voltar lá onde haviamos nascido mas que  importava? Embevecidas com a nossa estraneadade, mas profissionais, as assistentes socias de serviço naquela manhã á descarga dos refugiados do dia, tentavam minorar-lhes o cansaço, a insegurança, a dúvida e, sobretudo, a revolta. Mas não o conseguiam.
Eu tinha-me tornado num louco que a nada reconhece, um zero enfeitado de pessoa, um não saber o quê nem o como, ou mesmo qual a pergunta. As coisas haviam mudado tanto que nenhum depois se relacionava com o antes e, se lá atrás, me propusera  uma travessia para chegar a um outro lado, a caminhada havia sido de tal ordem,  que o propósito se diluíra em pequeninas curvas, bocadinhos minúsculos de vida, momentos cheios de existencia, mas sem sentido, glória ou grandeza. Era a estrada? Não. Era um pântano. Perdido o norte, o rumo, o qualquer coisa que faz uma pessoa sentir que vai adiante e não anda às voltas a si própria, entontecida de cansaço, vazio e sentimento de inútil.
- Instalar-se-ão neste hotel enquanto não vos arranjarmos alojamento. Façam o favor de entrarem para o salão. Há um beberete de boas-vindas - Anunciou Fru Bende, uma mulher de aspecto seco, há quinze anos no serviço do "Apoio a Refugiados". E tanto os assistira  que Fru Bende tinha casado um deles.
- Amas-me?
- Amo.
- Para sempre.
- Para sempre!
Afinal a coisa nem durou dois meses e nem tanto pelo amor se acabar: sim, isso seria ainda uma forma das coisas chegarem a um termo, digamos, normal, ou aceitável por parte da mulher que, jovem e inexperiente, acreditara nas juras do estrangeiro. Não. Dimitri, refugiado do leste e com quase nenhuns direitos no pais de acolhimento, assim que obteve aqueles a que tinha direito pelo casamento com uma natural do pais, logo abandonou a esposa. E ela, de nome Bende, feia e desengonçada, proibiu para sempre os espelhos em casa.  Entregue ao trabalho,  a assitente Bende foi subindo compassadamente de posto. Durante muito tempo, a cada nova leva de refugiados que devia atender, sofria ainda o amor em que um dia  acreditara. Mas a chaga, sob os anos e com o hábito, incrustrou-se naquela parte das coisas que, de tão dolorosas, se tornam um dia míticas. Aconteceram? Foram verdade? Só que o passado nunca esquece e a eficiencia, o meticuloso galgar das hierarquias, concederam à outrora doce e crente Bende, a justa fama de  mulher fria. Dirigindo-se ao empregado que, no salão, distribuía as bebidas, a "Chefe Gelo", como lhe chamavam, disse: 
- Deixe-me por momentos ser eu a servir as bebidas... – E pegou no tgabuleiros que as continham começando a cirandar por entre os recém-chegados
Quanto mais cedo a “Gelo” percebesse que tipo de gente as suas subordinadas, a maioria inocentes estagiárias, com uma longa carreira pela frente,  iriam encontrar ao dia seguinte nas salas de atendimento do “Apoio a Regufiados”, a associação onde todas trabalhavam,  mais depressa se evitariam escolhos e demoras.
A manha é a inteligência dos necessitados. 


































Os que vinham do Leste - russos, checos ou polacos - ostentavam nas lapelas dos casacos, ou pregados nas camisolas, símbolos do ocidente: bandeirinhas dos Estados Unidos, miniaturas da estátua da liberdade, minúsculas cópias de um "dollar". Apesar do cansaço sentiam-se contentes porque realizavam um sonho: radicarem-se no mundo livre. E, em acordo com as promessas das rádios escutadas clandestinamente nos países de origem, esperavam comprar, pelo menos, uma avioneta ao fim de três meses de salário! Dizer que se sentiam esfuziantes era pouco. Nunca mais - tinha sido o preço  da saída  - poderiam voltar às respectivas pátrias; mas quem chora uma prisão? No brilho do olhar, na excitação das vozes, na descoberta dos mil pormenores de que só tinham ouvido falar - as atrentes decoraçõs das montras, os grandes carros nas ruas, os gigantescos supermercados onde finalmente escolheriam tudo entre milhentas possibilidades, tudo isso  os encantavam, para não falar do singelo prazer de saborearem, ao cabo de tantos anos de secura, uma verdadeira coca-cola! Enfim, o consumo,  a nova vida,  a posse de uma conta bancária,  a certeza de que só trabalhariam se quisessem! Ah, o Ocidente! O mundo livre! A liberdade! Quantos deles não tinham ficado, para realizarem aquele sonho, cravejados de balas numa fronteira ou "apenas" retidos num "gulag" perdido no gelo por toda a vida!
Fru Bende, depois de cirandar um pouco pela sala a distribuir umas tantas bebidas e trocar algumas palavras com este ou aquele recém-chegado, pousou a bandeja e pediu a atenção de todos: era a altura de dar formalmente as boas-vindas e a “Gelo” pigarreou para clarear a voz:
- Chamo-me Bende Krostrup e chefio a organização "Apoio a Refugiados" e desejamos a todos boas-vindas! Estão aqui para começar uma nova vida, longe dos problemas que para trás deixaram e o nosso papel, o de vossas assistentes, consistirá em apoiar-vos em qualquer dificuldade que tenham. Queremos que se sintam tão bem como se aqui tivessem nascido. No mapa da cidade que receberam vem indicado a localização da nossa associação, onde se devem dirigir já amanhã, para receberem as primeiras instruções sobre o que têm a fazer para iniciarem o vosso viver nesta doravante também vossa cidade.  Posso adiantar que receberão uma bolsa para frequentarem um curso de dinamarquês e que as aulas começarão ainda esta semana. Depois, naturalmente, ficarão aptos para obter um emprego. O mundo livre saúda-vos. Muito obrigado.
Houve alguns aplausos, as assistentes retiraram-se, o beberete esmoreceu  e, pouco a pouco, os novos hóspedes recolheram  aos quartos. O nosso aposento, o meu e o de Ema, situava-se no terceiro andar e tinha as paredes pintadas num azul claro. Como condenados antes da execução, entregámo-nos na sofreguidão do desespero. Durante muito tempo seria assim.




































Andreas e Rully moravam na vivenda número vinte e sete, a mesma que o "Apoio a Refugiados" nos destinaria, a mim e a Ema,  no bairro residencial de Lindvedparken. Aí, a organização possuía várias casas e todas se distinguiam pelo pouco arranjo dos jardins, pelas paredes exteriores sujas, assim como pela ausência de ornamentos que às demais não faltavam
- Tratar disto para quê? - Indagava Stanis igualmente nosso vizinho, mas da vivenda em frente - A qualquer momento posso regressar ao meu país! Ainda ontem recebi noticias de que se prepara lá um golpe!
A esperança numa rápida reviravolta da situação política que os levara a deixar a pátria, tornava-se pretexto para os refugiados não tratarem das casas que lhes tinham sido emprestadas. Assim, e apesar dos anos decorridos desde que chegados, o primeiro da Polónia e o segundo de um país africano, onde as revoluções se sucediam, atirando para o exílio, ora uns, ora outros dos seus habitantes, Andreas e Rully, os nossos companheiros da nova habitação,  nunca tinham tratado do pequeno jardim que a rodeava. Se a qualquer momento poderiam partir! Na verdade residiam há sete anos em Lindvedparken e há cinco que se tinham tornado amantes.   






























Se para Stanis a sexualidade era apenas mais um aspecto discordante da leitura do real que, lá na sua terra, o partido que detinha o poder fazia, um factor mais a confirmar a razão dos restantes, como que uma espécie de revolta do corpo para que não restassem dúvidas  onde a ditadura se exercia, já para Rully, fugido de um autoritarismo africano, o caso era diferente. Rully até concordaria com o regimen de que afinal se excluíra, se não fosse a cor do seu desejo. Ou seja,  a sexualidade havia-o colocado na situação das mulheres do sec. XIX que, pelo simples facto de serem fêmeas, não acediam a certos cargos.  O cidadão Rully, vocacionado para assumir as maiores responsabilidades no seu país, vira-se delas, afinal, separado. Admirador dos valores do ocidente, do seu racionalismo, humilhava-o  que o desejo, em si, ganhasse à vontade. Porque não me domino? Porque não sou forte? Sou mesmo um animal? Um escravo do sexo? Em última instância, acusava a sua negritude - que cria, sabe-se lá porquê! - mais perto da natureza - pela violencia com que o instinto o agarrava. A união com Stanis não era, pois, pacífica e havia alturas em que o odiava.  O companheiro era então a encarnação do Mal, do Diabo, da força que ele, Rully,  não soubera vencer e a que, talvez sem levar às últimas consequencias a luta - por fraqueza? Por cobardia? - se submetera, arruinando o futuro, a vida "correcta" que o partido, em nome das massas, exigia aos seus funcionários.
Para Stanis o desejo tinha razão, para Rully ele era pecado. 
Noutros momentos, porém, a carne e a vontade do africano reconciliavam-se e o valor do amigo surgia-lhe enorme, senão sobrevalorizado. Entre os dois extremos, o desprezo e a idolatria pelo amante, Rully não conhecia paragem e, ultimamente, apaziguava-se escrevendo um ensaio.
- Gostaria de ler-vos partes do meu trabalho. Talvez hoje à noite?
Dissemos que sim.
As aulas de dinamarquês funcionavam no edíficio de uma escola onde, pela manhã, crianças aprendiam o b-a-bá e, à tarde, depois do almoço, vinha a nossa vez de soletrá-lo. Muitos refugiados do Leste chegavam ao ocidente na idade da reforma, ou porque o processo de saída levara anos a concluir-se ou porque lhes permitiam a  mudança, devido precisamente à avançada idade. Alguns, tomados pelo espanto, pela subita desconexão entre o sonho e a realidade, entre as expectativas criadas  e a cinzenta vida de exilado, não raro, por causa de uma palavra mais dificil, ou de um significado menos acessível da nova língua a que deviam submeter-se, caíam em choro. Então tudo desabava, as vidas pairavam sós, inúteis, vazias, e, no entanto, urgia gerir a mudança, adaptar-se à viagem sem regresso marcado.
- Sr. Anton, o que se passa? Porque chora? - Perguntava o professor, um jovem dinamarquês que, com as aulas da sua língua natal, aumentava uma magra bolsa de estudo. Porem o desconhecimento, a inexperiência, senão mesmo a idade, impediam-lhe a percepção dos problemas dos seus alunos mais idosos.
- Sabe...  - Lamentava-se Nikita que tinha trocado o posto de chefia numa fábrica nos arredores de Moscovo  pelo lugar de operário subalternizado no "mundo livre" - A gente vem com uma ideia e afinal...
A avioneta que qualquer refugiado ao cabo de três meses de salários adquiriria não tinha afinal passado de um sonho e a realidade, com o seu séquito de solidão, saudade e, porventura, arrependimento, irrompia, indiferente a qualquer desejo e projecto. Assim Maria, a bela checa Maria, uma tarde não foi à escola porque ficou em casa a enforcar-se e quando, à aula seguinte, se soube do êxito da sua iniciativa, soou  ainda mais estranha a lição do dia: "A Senhora Popova - contava o livro - está radiante com a mudança e convidou os amigos para uma festa na sua nova casa".
Na nossa, à noite, Rully ler-nos-ia parte do seu ensaio.
- "A solução para África... - Dizia ele.
Stanis e Rully pensavam que Ema e eu tinhamos sido militantes em Portugal e nós não os desmentiamos. Para quê? Naquela noite ouviríamos Rully perorar até de madrugada sobre um tal paraíso africano mas a apatia e, sobretudo, o desencontro, a que não era alheio o alcóol que Ema e eu passaramos a ingerir, tornavam-nos a atenção, ao que quer que fosse, impossivel.
Em breve desistiríamos da bolsa para aprender dinamaquês - que nos interessava aquilo se tudo havia desabado? - e, por nossa conta e risco, arrastámo-nos para Copenhaga.



















































Alojados em Christanniahavn, a comunidade dos hippies, na qual não pagavamos alojamento, obrigavámo-nos todas as manhas à busca de um emprego. A oportunidade surgiu numa feira de porno que se erguia às portas da cidade. Num quiosque, ainda sem tecto, um letreiro dizia: "Assistentes precisam-se".
- Em que consiste o trabalho? - Perguntámos a um indivíduo que, de mãos nas ancas, apreciava o andamento das obras.
- Têm lata para fazerem sexo à vista de todos?
O homem desconhecia o nosso passado, o meu e o de Ema, mas ali estava algo que não o desdizia. E, sobretudo naquela altura, precisavamos de uma ligação com o lá atrás, o tempo antes da manhã que, como uma gilhotina, nos dividira a vida num antes e depois. Mas interpretando-nos talvez o olhar por uma reprovação, o indivíduo começou aos berros:
- Que raio! - Exclamava - Isto é uma feira do sexo, não é um bordel! Vem nos jornais de todo o mundo, a primeira da história da humanidade! A emancipação do prazer! Do corpo! Não é a idade média mas agora, a nossa vida, as nossas coisas, as sensações, o gozo pela existência, aquilo que faz a diferença do estarmos vivos, o sentir, percebem? - Fez uma pausa, como se também ele se quisesse imbuir do que dizia. No entretanto, em redor, pela frente, pelos lados, por detrás, dezenas de robustos trabalhadores furavam, martelavam, punham massa, alçavam andaimes e construções, pregavam cartazes, anúncios, convites, ensaiavam sons, lançavam ordens, tudo como se, no Olimpo, Zeus, sob o signo de Eros, desse por aberta a caça ao prazer sensóreo e os concorrentes, suando na Terra, exaltassem o corpo, a pele, os pequenos orifícios que, convenientemente preenchidos, provocam copiosos deleites. O "fellatio", o "cullingunus", o "minette", a sodomia, enfim, o coito, exibiam-se em  mil e uma posições, milhares de imagens, um desfile das infinitas maravilhas a que a raça recorre para suportar a vida e a miséria, a única razão, no fundo, para que as mães ainda acedam em dar à luz, ou não afoguem os filhos à nascença. Pois dos sacrifícios levados a cabo sem a compensação do corpo que nos recebe, e afaga? Do morrer numa batalha sem a memória do abraço que algures nos chama? Ou da semana a correr como doidos se a meta não for uma cama? Onde a grandeza que nos leva mais além sem a entrega e a voz, que em convulsões, murmura: "oh sim... Alaga-me no teu ser até à diluição do meu, deste pavoroso eu que me devora e exausta, deixa que me submerja em ti e perca, sê-me, aniquila-me e renasçamos  um, sem a separação que condena, a fronteira que afasta, e cerca, e extingue, oh sim, une-me e anula-me, oh sublime desmaio em teu seio, vem! - Aceitam?
O trabalho não tinha nada de especial. Exibiamo-nos num quarto de paredes de vidro, uma campânula que para nós, seus ocupantes, era opaca mas transparente para quantos, do lado de fora, a rodeavam. Um néon indicava: "Encontros Intimos" e lá dentro um colchão. O espectáculo começava com a nossa entrada no recinto. Não havia um programa específico mas do exterior chegava-nos a excitação dos espectadores:
- Vá! Enterra-lho agora! Chupa-lho! Lambe-lhe o cu! Força para cima! - Quando não era um coro cadenciado a bater o compasso com as mãos ou os pés nas paredes da caixa:
- Vem-te! Vem-te! Vem...
Numa altura em que o desespero ainda não se esvaíra em hábito, reviviamos as sessões de Lisboa, no "Photo-Eterna", lá onde foramos inconscientes e felizes.
Antes da queda.





































Estava fora da prisão havia uma semana. Ema saíra antes. Mas quem nos ouvisse contar do encarceramento poderia dizer que mentiamos: não possuíamos uma só prova do sucedido.
O "Photo-Eterna" havia fechado, Patrício tinha desaparecido, o Monóculo já não era ministro e os proprietários da casa onde moravam Lucio e Sílvia diziam que eles  estavam no Estrangeiro. Mas, pela nossa experiencia, podiamos imaginar tudo e, nas ruas, olhando o movimento do dia-a-dia, perguntava-me se os transeuntes saberiam que, naquele momento, e na sua própria cidade, a Lisboa dos brandos costumes, havia prisões onde, como o barbeiro em Caxias avisara, tudo era possível
Todavia, se os cinemas continuavam a exibir filmes, os cafés  a encherem-se, os eléctricos a andarem de um lado para o outro e os teatros a abrirem  as portas todas as noites para nova sessão, para mim a realidade tinha-se rasgado mostrando um sala de tortura. O carimbo a indicar "visado pela comissão de censura", que sempre vira aposto nas primeiras páginas dos jornais, deixou-me então de ser indiferente, perdendo o tom rotineiro.
Ema, depois de liberta regressara à dança no “Principe Negro” e, mal saí, foi lá que a procurei, trazendo-a, da casa de uma amiga onde se alojara,  de novo para  a nossa casa. Mas a nossa paz foi curta: ainda não saíra há uma semana da prisão e já recebia uma convocatória do serviço militar para me apresentar na tropa.
Desde os meus doze anos - quando rebentara a luta pela independência em Angola - eu sabia que, em Portugal, ir à tropa significava  ir à guerra em África. De resto, pela altura dos primeiros embarques para a frente de batalha, um tio paterno levara-me um dia ao porto ver o "adeus aos rapazes" como ele chamava à partida dos soldados para as colónias. 
A gare maritima apinhava-se  de gente, a maioria camponezes que tinham, muitas vezes pela primeira vez, vindo  à capital para se despedirem dos filhos, e estes entravam no vapor trôpegos e insones, depois de passarem a noite antes da partida de bar em bar, de cabaré em cabaré, visitando a capital no desespero de não a voltarem a ver nunca.
Noite de arromba.
Na hora da largada, o barco soltava então o ronco da fera que se prepara para enfrentar o mar e as mulheres desatavam aos gritos, acompanhadas pelo choro das crianças de colo, trazidas para verem os pais partirem. Sob o Sol e a emoção muitas desmaiavam enquanto os homens, porque assim devia ser, se auto-dominavam, vendo os familiares cada vez mais distantes, reduzidos a um ponto pequenino no horizonte, perdidos na vastidão do nada.  A banda militar tocava uma fanfarra triunfal e o meu tio, que não perdia nunca a  oportunidade de me instruir, erguia ao ar a sua bengala com o  "S" de Salazar incrustrado no castão de prata e, na voz do velho combatente que fora ao lado de Franco, dizia:
- "Patético" é o adjectivo que se aplica ao que vês.




























As grandes decisões, as que levamos tempo a pôr em prática porque implicam atitudes que, assumidas, impossibilitam o fingir de conta que não as adoptámos, causam-nos, depois de levadas a cabo, uma sensação de alívio e tranquilidade. A indecisão, a perturbação entre o sim e o não, a dúvida, extinguem-se, e ficamos a sós com o decidido; antes, a luta entre as várias opções, como se atacados por uma matilha onde nenhum animal sobreleva aos demais; depois, sozinhos com uma única besta, medimos-lhe então a capacidade, as manhas, a raça  das suas pulgas.
A decisão de ignorar a convocatória para a guerra tornou-se-me clara pois, pela primeira vez, o serviço da pátria me surgia como uma pena, uma forma ainda de me separarem de Ema. Mas quereria ela partir comigo?  Apesar do que tinhamos passado ainda não lhe ouvira dizer amo-te. Mostrei-lhe o postal que exigia a minha presença no quartel e perguntei:
- Fugimos os dois?
- Para onde?
- Para o paraíso.
Mas a verdade é que não sabia nem o caminho ou onde ficava e, além de chamado para a guerra, não possuia passaporte.  Como passar então a fronteira? Como atravessar a Espanha de Franco, sem que a sua guarda civil me voltasse a pôr em Portugal, entregando-me a Salazar?.
























Nome: Miguel Gomes, nascido em: 12/7/46   
pai: incógnito
cucu Mãe: Ivone Filomena Gomes
Profissão: bailarino.
Ultima morada: Rua das Gaitas, 32 Lisboa
Observações:
Exibe-se em cabarés vestido de mulher.
Fugiu do internato da Casa Pia aos doze anos.
Viveu em Bruxelas e Paris onde se relacionou com exilados oposicionistas.

Olhavamos o bocado de papel sebento pendurado na parede do camarim e Miguel explicou:
É a cópia da minha matrícula na Pide e neste país todos temos uma. Até o Salazar para dar o  exemplo! Esta foi um namorado que ma trouxe. Claro, deixei-o. Mas não foi fácil. Ele era da policia politica  e ameaçava prender-me se o abandonasse. Foi cá um "affaire"! Ainda me telefona!  Por vezes aparece por aí, a ver o espectáculo. Tremo quando o descubro  na sala. De qualquer modo ainda durou cinco anos.  E eu sem saber nada. Coitado, apaixonou-se em serviço! Foi ele quem me aconselhou o "artigo dos paneleiros" para me livrar da tropa. "Se tens coragem..." - Disse. E não havia de ter? A verdade é como a cortiça: vem sempre ao de cima. - Riu um riso dessengonçado. Tinha acabado um número e vestia-se para outro - Eles não nos querem na guerra por medo de que beijemos o inimigo! - Atirou o vestido comprido de lantejoulas vermelhas para cima de uma cadeira - Isto aqui é um nojo! Nem temos costureira! - Miguel - ou "Micaela" como o anúncio do show de travesttis anunciava - possuia um corpo escultural e depilado, o  peito cheio de silicone e o sexo masculino avolumando sob a cueca. Disfarçou-o melhor na roupa. - Ainda  cá está mas é por pouco tempo. Vou voltar a Bruxelas. É lá que me vão operar. Um especialista muito bom. Trabalho há três anos para conseguir pagar a cirurgia. Vai ser agora. - Vestiu umas meias de rede negra com arabescos. - Por enquanto não sou uma coisa nem outra. Nem carne nem peixe. Isto é: cá dentro - apontou a cabeça - sou mulher. - mas por fora... Enfim... Apertou uma cinta de ligas e prendeu as meias - O espírito nasce das águas não é verdade? Ema, que fora em tempos colega de Miguel num mesmo show, lembrou-lhe porque ali estavamos:
- Um dia disseste-me que o teu padrasto era de Elvas, de junto da fronteira. Eu e ele - apontou-me - queremos fugir, ir embora de Portugal...
- Meu padrasto... Ah sim, o Rodrigo! Nunca mais soube dele. Se calhar já nem lá está.  Mas se forem a Elvas e o virem não lhe digam disto aqui... Quero dizer.... contem que me encontraram em qualquer lado. Ele não sabe... Miguel fez uma pausa e retomou depois de uma conclusão que tirara para si mesmo mas da qual não nos pôs ao corrente: nem vale a pena.  Depois contou: Rodrigo viveu com a minha mãe durante muito tempo... até à morte dela. - Miguel tirou uma mini-saia do cabide.  Contorcia-se para vesti-la. - Eles discutiam muito. Ele tinha outra e ela chateava-o todo o tempo: zum... zum... zum... zum... Baixinho, devagar, como um motor com silenciador mas que trabalha à mesma e massacra, massacra muito. - Viu-se ao espelho - Onde está o corpete? - Ema chegou-lho.
Sentado num banco eu observava. De qualquer modo desde que decidira partir, olhava a  tudo com outra atenção. Sabia lá quando voltaria!
O corpete de Miguel, dourado, contrastava com o veludo negro da mini-saia. Falava como se tivessemos vindo  para ouvi-lo e não para que nos ajudasse a fugir do país, a passar a fronteira sem passaporte. Convocado para a tropa nunca me permitiriam obtê-lo. Teria de ir "a salto" como diziam os emigrantes. Só que não sabia como se fazia, nem quais os caminhos. Talvez o Miguel saiba - havia lembrado Ema - Ele sempre disse mal da situação...
- Sim, o meu padrasto é de Elvas e ainda lá vivia há algum tempo. Mas como contei, ele e a mãe discutiam constantemente. E sabem porquê? - Ema apertou-lhe o corpete nas costas - Obrigado, querida. Pois, eles discutiam porque sabiam que eu os obrigava a fazerem as pazes. Quando já não conseguia ouvi-los, ia buscar uma régua  -  tinha aí uns onze anos - e fazia-os calarem-se. “Se não se calam, levam palmatoadas!” -  Era o meu número! Então eles achavam piada e paravam de discutir. Para mim era a paz na cabeça por algum tempo, um intervalo nas vozes que se me tinham entranhado, nas zangas que interiorizara. Mas o intervalo para eles servia ao retempero das forças, ao estudo das novas estocadas, dos melhores efeitos, sobretudo para a minha mãe que não lhe perdoava a existência da amante, da "outra". E eu, com a cabeça cheia até mais não poder de falas, de berros, pois ouvia-os na sua verdadeira dimensão e não na das vozes baixas, dos ditos  aparentemente pacíficos com que se diziam as piores coisas, os votos mais desamparados, os insultos mais eficazes, que faziam mal por si mesmos e não pelo volume em que eram pronunciados... Eles falavam num registo educado, mas as suas falas entranhavam-se-me, doíam-me, talvez mais a mim do que a eles que lhes tinham a autoria, o hábito, e mesmo o gozo, sabendo de antemão que se podiam lançar à vontade naquilo, porque lá estava o miúdo, o pacificador para reuni-los, para levá-los às pazes, e a recomeçarem uma vez mais. Vozes que ensurdeciam, diziam e desdiziam, que batalhavam  a ver qual delas vencia, qual pronunciava a palavra que mais ferisse, no sítio exacto, onde fizesse mais sangue, tudo, tudo jogado em voz baixa e terrível, e comigo como observador, para entrar na altura exacta, para calá-los... E eu, o palhaço, intervinha, quando já não podia mais ouvi-los, ia buscar de novo a régua à  pasta da escola e ameaçava-os: "ou fazem as pazes ou levam palmatoadas"! Eles riam e... desarmavam... Mas um dia, um dia...
Sentado frente ao espelho Miguel tinha parado de arranjar-se. Hipnotizado pela sua imagem, ou pela evocação, ou ainda representando para si próprio, olhava-se. Absortos, escutavamo-lo. Num ritmo mais lento, como se revisse cada momento do que contava, cada passo da peça, prosseguiu:
- Um dia recusei-me. Eles atiraram-se para mais uma discussão, mais um torneio mas abandonei-os,  deixei-os ir até onde eles queriam. Tinha acabado de fazer os doze anos e achei que chegava. Que a minha vida me pertencia e não estava mais para aturá-los. Bah, talvez nunca tivesse chegado a essa conclusão se eles me poupassem às suas disputas. Mas a casa era pequena, faziam dela o inferno e obrigavam-me  a servir-los à forja! Queria lá  passar a vida a reconciliá-los, a ser o bobo de serviço.  Fui para a casa de banho, puz a torneira a correr para fazer barulho - nem para abafar as vozes deles, que eram calmas embora terríveis, mas as minhas, as que me altercavam na cabeça, espelhos sonoros das deles, das que ouvia todos os dias, todas as horas, sempre que o Rodrigo chegava a casa vindo da “outra”, dia após dia, ano após ano, desde que me lembrava - e fechei-me. Fechei-me e, como não sabia o que fazer, lembrei-me de uma coisa que ouvira na escola e... comecei a tocar-me. Estava a vir-me, a minha primeira vez!, quando a voz aflita do Rodrigo, do lado de fora, me chamou:
- Estás ai? A tua mãe...
A minha mãe no auge de mais uma discussáo tinha ameaçado lançar-se pela janela e... eu... - Miguel deu uma gargalhada e, finalmente, olhou-nos: tinha os olhos rasos de lÁgrimas e a expressão fechada. - Desculpem... nem sei porque comecei a falar disto... Limpou-se a um lenço. Havia um silencio incómodo. Ja nem dava para falarmos da fronteira. Eu sabia por Ema que a mãe de Miguel se suicidara mas pela primeira vez percebia as circunstãncias. Gotas de suor  borravam a maquillage de Micaela, a mulher em que o nosso interlocutor se tinha transformado.
- Desculpem, não sei porque contei isto. - Querem a direcção do Rodrigo, não é? - Pegou num bocado de papel e rabiscou uma direcção. Tomem. Se ele lá estiver ajuda-vos. É um bom homem. - Ema guardou o papel com a marca dos dedos suados de Miguel. Este abriu-nos a porta do camarim e, em modo de despedida disse: - Pois foi. Naquele dia decidi acabar com os shows. - Uma mulher surgiu com um chapéu de penas exageradamente grande e entregou-o ao travestti.
- É agora  o teu número, Micaela - avisou.

























Levavamos cada um a sua muxila e dir-se-ía que iamos de férias. Na verdade partiamos angustiados. Não só ignoravamos para onde nos dirigiamos  - França? Bélgica? Holanda? - como nem sequer  tinhamos a certeza de sair do país.
A consciencia de que, feita uma coisa, nada igualará o antes, torna o tempo da sua execução tão denso como se os ponteiros, no quadrante do relógio, tivessem de rasgar sebes entre cada minuto. Agir tem então a ver com um esforço que nos esgota e faz operários do tempo. A fábrica do mundo.
- Por favor dois bilhetes para Elvas. - Pedi num "guichet" em Santa Apolónia. Eram as seis e meia da tarde e o combóio partiria daí a meia hora.
- Ida e volta? - Quis saber o homem.
- Não. Só para lá. - Respondi com um nó na garganta.
Era feriado e de manhã tinha-se comemorado o dia da Raça. Muitos camponeses,  usufruindo do transporte gratuito que Salazar facultara para a cerimónia, tinham vindo à capital assistir ao desfile militar, assim como à condecoração dos heróis da guerra, na Praça do Império. Àquela hora regressavam a casa e, no combóio cheio, sentámo-nos junto de um campesino que ouvia no rádio a retransmissão da cerimónia. "Diante deste espectáculo - dizia Salazar - a que, mercê de Deus, me é dado assistir, Portugal unido e fraterno na exaltação patriótica dos seus maiores, diante de tudo isto que é belo, grande e único, temos não só o direito de merecer os mortos, mas também o dever de nos orgulhar dos vivos" - Houve uma interferência e o camponez, diluído nas palavras do ditador, apurou a sintonia: - "Quer hajam de bater-se, quer não, as gerações presentes serão gerações sacrificadas! Sim - esganiçava-se a voz do ditador - Gerações sacrificadas! - E concluía: - Fazemos a ascensão dolorosa de um calvário mas ele levar-nos-à a uma nova ordem, ao novo ser!"
Soou um apito e a máquina pôs-se em movimento. A retransmissão interrompeu-se e o camponês, sem resultado, tentou nova ligação. Talvez para se compensar olhou-nos, a nós  e ao casal com um filho pequeno a seu lado, e, tirando do bolso do casaco uma caixa, abriu-a. Lá dentro, uma medalha ornamentada com duas fitas, uma verde e a outra vermelha. Numa voz que não se sustinha devido à comoção, disse:
- O meu rapaz ganhou-a. É a medalha da Grande Fidelidade. Olhou a condecoração e murmurou: -  Morreu ao salvar o batalhão de uma emboscada. - E como se lhe fosse impossível ou continuar a mostrar a insígnia, ou nem fossemos dignos de vê-la, fechou apressadamente a embalagem, metendo-a de novo no bolso. - Gostava de ouvir outra vez o nome do meu filho. - Justificou para si próprio, colando o ouvido ao receptor. Embora mais distante, a voz de Salazar reapareceu: "Só os cobardes não defendem a terra onde nasceram, os de baixos sentimentos, os que pensam a seu respeito o mesmo que pensa qualquer réptil que a macula com a baba peçonhenta..." - Mas o combóio tomou velocidade e a transmissão perdeu-se ou talvez o camponez a ouvisse e não nós. Com a cabeça encostada à telefonia e a mão na algibeira do casaco, onde guardava a caixa com a medalha, o homem adormeceu.
Na carruagem-restaurante encomendámos o jantar, a nossa última ceia portuguesa. Se outra houvesse significava que não conseguiramos fugir. Mas até ali haviamos sido cuidadosos. Informados dos hábitos da Pide de vigiar os movimentos dos que pensava um dia prender, ou dos que tinham estado presos,  tomáramos vários táxis até à estação.  Talvez, da mesa ao lado, um Judas, apontando-nos o dedo, gritasse: "Ali vão dois répteis! Matem-nos! " mas, embora sem vocação para mártires, e mesmo com um feroz desejo de esplendor, nada podiamos fazer.
No entretanto a viagem já me provocava, olhando do lado de lá das vidraças a noite que sobrevoava tudo, um verdadeiro sofrimento, uma mágoa que aumentava com o rodado do combóio. Quanto mais terra ele galgava, mais asfixiava, mais ficava fora de mim. Com que direito me diziam "Vai e não volta?!" "A pátria tem de ser salva!" - Gritara o caudilho no desfile da manhã. Mas que interessava a sua glória se ela me perdia? O afastamento cavava-me um túmulo e, ao contrário dos que,  tendo morrido de bem consigo, jazem em paz, a mim, em nome da glória da nação, enterravam-me vivo. E, como não aceitava o sacrifício, a consciência era-me uma coroa de espinhos. Maldito o deus que me expulsava, pois eu fugia desprovido doutra carga que não a própria fuga e a mudança fazia-se no desespero de saber-me a caminho de terra alguma.
Acabada a ceia voltámos ao compartimento. O camponês tinha descido num apeadeiro no meio da escuridão e tudo pareceu mais vazio, mais vão ainda.
Sós e cegos guiados pelo nada.































- Olha que salto!
- Experimenta.
- Nao passas de um assassino.
- Contigo não há perigo. É tudo teatro.
- Queres que fale a sério?
- Gostaria que te calasses e me deixasses fazer as palavras cruzadas. Sinónimo de...
- Merecias que me matasse. Pesar-te-ia a consciência para sempre.
- Não teria sido eu o culpado. Todos somos livres.
- Dizes isso porque achas que finjo... Mas olha que estou farta...  farta, compreendes? Farta!...
E, antes que Rodrigo esboçasse um gesto, Ivone pulou para o parapeito da janela e concretizou a ameaça. Ouviu-se um grito agudo e o sopapo seco do corpo seis andares abaixo, no asfalto. Rodrigo, siderado no sofá onde até há escassos segundos ele e a mãe do Miguel se sentavam, manteve-se imóvel por algum tempo. Por fim, a medo, obrigando-se ao irrecusável, dirigiu-se à janela e espreitou:  Ivone jazia no meio da rua e um pequeno grupo rodeava-a. Alguns transeuntes olhavam para cima, na tentativa de descobrirem donde tinha caído aquilo. Viram o rosto espantado do homem e apontaram-lhe o dedo:
- Dali! Foi dali!
Com o suicidio de Ivone a vida de Rodrigo mudou. Da sua nova fase constava a estadia em Elvas. Naquele domingo, ainda manhã cedo, bateram-lhe à porta
- Da parte do Miguel.
Por instantes o dono da casa imaginou que o filho de Ivone lhe falava e reviu-o, criança ainda, de régua na mão, a exigir que ele e a mãe se calassem. E voltou a ter a impressão, se não a certeza de que, se naquele fim de tarde o garoto tivesse aparecido, Ivone ainda viveria.
Abriu a porta e não reconheceu nenhum dos jovens que o procuravam.
- Façam o favor de entrar - Convidou.
O "hall" comunicava com uma sala maior e o despojamento da casa, a quase inexistência de mobiliário, como se o principal elemento decorativo fossem as paredes, chamava de imediato a atenção.  Dir-se-ia que Rodrigo  decidira guardar apenas o indispensável mas que tinha utilizado um critério tão severo na escolha que mais parecia pôr à prova a sua capacidade de resistência. Como se, acabado de mudar, o grosso das suas coisas viesse ainda a caminho ou, prestes a transferir-se, tivesse já enviado para o novo destino os haveres.  Todavia, num segundo olhar, o despojamento completava-se no aspecto sofisticado do anfitrião, no seu bigode de pontas enroladas e fino aro de prata no mínino direito. O eremita teria abandonado o mundo mas a sua separação fora tão radical que continuava a seu lado, ambos coexistindo na paz de se saberem e não na de se anularem.
- O Miguel está bem? Que é feito dele? Deve estar um homem. Não o vejo desde... – Rodrigo Ia a dizer "desde que ele fugiu do internato" mas interrompeu-se. Que saberia aquela gente do seu passado e, afinal, que quereriam? Pelo traje ligeiro e muxilas era evidente que os dois jovens iam de viagem e teve a intuição de que o enteado se lembrara dele para ajudá-los a continuarem-na. O rapaz na sua frente estava em idade do serviço militar e devia ser esse o problema: quereria ir para o Estrangeiro não teria documentos para atravessar a fronteira. E de certeza que... Observou melhor as visitas. Ultimamente tinham rebentado bombas um pouco por todo o país, reivindicadas por uma organização que se identificava como anti-fascista. Os jornais nada  contavam mas Rodrigo sabia-o por conhecidos de confiança que trabalhavam no posto fronteiriço. Seriam os  jovens na sua frente bombistas? Mas que tinha ele, reformado e pacato cidadão, a perder? Em Elvas toda a gente sabia  o atalho que, evitando a guarda da fronteira, conduzia a Badajoz e era normal as gentes da cidade levarem a  um conhecido do lado de lá um pacote de café e  virem de volta com uma caixa de chocolates. Tudo sem documentos, nem pedido de passaporte. Porém ajudar gente que fugia à polícia...
O anfitrião mirou ainda melhor as visitas.  A expressão era-lhes dura e decidida ou talves fosse a idade em que os encontrava que o fizesse, a ele, Rodrigo, sonhar horizontes que aos outros nem importavam. Emendou:
- Não vejo o Miguel desde que vim para Elvas.
Na verdade não via o enteado  desde que ele tinha desaparecido do orfanato, onde o metera depois da morte de Ivone. Um domingo fora visitá-lo e o Director perguntara:
- O rapaz já voltou? 
- Voltou?
- Então não sabe que o Miguel fugiu? - Rodrigo não sabia e o Director percebeu que da secretaria se tinham esquecido de avisar o padrasto da fuga do miúdo. Mas eles eram tantos a irem embora que a coisa já parecia normal. E depois, a competência dos funcionários! O Director desculpou-se: - Que quer? A gente manda fazer uma coisa e eles baralham tudo! - No fundo, um garoto que na idade do Miguel fugia do internato significava um lugar a mais para os que esperavam entrada. Porque havia tanta criança abandonada? Que época! - Pensei que o tivessem avisado. O Miguel desapareceu há quinze dias. Dizem que foi para o estrangeiro... - O Director calou-se. Não convinha dizer que o miúdo tinha sido, por alguns fins-de-semana,  o favorito de Mr. Smith,  o "americano", como a garotada lhe chamava,  e que não era a primeira vez que um miúdo levado a passeio pelo "yankee" desaparecia...  Mas que fazer? Mr. Smith era o maior beneficiário do asilo, o seu mais líquido contribuinte, e todos os anos escorregavam do seu livro de cheque uns bons milhares de dólares para a instituição. É claro que entravam pela porta do cavalo porque também saiam pela do burro, isto é, sem que ninguém desse por nada. Mas o importante era que a coisa funcionasse, ou sejam Mr. Smith apreciava carne fresca e tinha no internato a sua despensa. Porém nem tudo eram rosas: Smith, pessoa educada, no seu intimo sofria com a sua preferência e tentava  resistir-lhe. Sem resultado. Ao cabo de algum tempo la ia bater à porta do asilo, saber se não haveria algum pupilo que lhe servisse de "cicerone" na visita que, mais uma vez, fazia à cidade. Mr. Smith gostava de Lisboa e vinha a passeio pela Europa todos os dois meses, o tempo máximo que conseguia abster-se do seu nefando consumo. E escolhia Lisboa porque, sob Salazar, era fácil comprar os produtos da sua escolha. No internato já tinham aflorado a hipótese de lhe descerrarem uma lápide comemorativa das suas benesses mas Mr. Smith repelira a ideia. O carinho dos rapazitos chegava-lhe como agradecimento. Miguel era meigo, carente, bem encarado - havia lá muitos, cuja miséria deformara - e Mr. Smith apreciava-lhe a inteligencia e a capacidade de escuta. Naquela caso tinha a certeza que não influíra em nada. Desde o primeiro encontro que Miguel havia demonstrado um gosto claro pelas suas carícias. Amor perfeito. De uma vez, pelo menos... - Não se preocupe - concluíu o Director para o surpreso Rodrigo  - O Miguel é um rapaz, vai fazer treze anos  e de certeza que começou a vida algures. - O ex-padrasto de Miguel ouviu e calou.  Que poderia fazer? Queixar-se a quem, se o dono da instituição era o próprio Estado? E ele mesmo,  não começara a lutar pela vida ainda mais cedo? Aos dez anos não deixara a sua terra e não viera para a capital servir como caixeiro de uma loja? Não lavava, de pano enrolado na vassoura, o passeio frente ao estabelecimento onde, a basalto negro no meio do calcáreo, se inscrevia o glorioso nome dos armazéns "Boda & Boda"? Naquele tempo considerava-se normal, senão louvável, que os pobres pusessem os filhos a render, mal eles aprendessem as primeiras letras! Ora Rodrigo não foi excepção:  finda a quarta classe, lá na terra, tinha descido à capital para servir, e um tio, há muitos na cidade, é que o orientara.
Quando a criança se emprega o trabalho é-lhe a tortura e o passatempo. Ora brinca, ora se entrega ao que lhe mandam, e neste balanço se educa e torna adulto. Muitas vezes o caixeirinho Rodrigo esquecia a hora do almoço e ia para o Terreiro do Paço jogar à bola com outros como ele, também em pausa de refeição. Ou então, se por exemplo chovia,  escapulia-se para a cave e aí brincava sozinho. A descoberta do seu primeiro orgasmo também seria no “Boda e Boda”, na casa de banho da cave, na iminência do salutar esperma e da voz do chefe chamando: "Rodrigo,  há recados por fazer!". Uma tão grande comunhão com o trabalho levou a que, ao atingir a maioridade, o suor de Rodrigo cheirasse  a organzas, popelines, tafetás, a "Boda & Boda", em suma, confundindo-se, na memória dos clientes, o nome  do estabelecimento e o do seu mais antigo empregado: ir aos "Boda..." era encontrar Rodrigo e encontrar Rodrigo era ter visitado os "Boda".
As lojas vizinhas fizeram obras e remodelaram as intalações.  "A Carvoaria Açoriana"  passou a  "Casa Açores" e o que, em tempos, tinha sido o café Coliseu renasceu "Coliseu's", em acordo com uma onda mais snob que percorreu o país. Mas os "Boda..." nunca alteraram coisíssima nenhuma e os fregueses mais antigos, cujos antepassados lá compravam a fazenda para os fatos, podiam encomendar da mesma flanela que o avô teria usado ou, as senhoras, a renda idêntica à que as respectivas bisavós empregariam para compôrem os punhos. Graças aos "Boda" uma familia conservadora ufanava-se de vestir o mesmo tecido  há duzentos anos ou, outra, chamar a si a exclusividade de certa cor. Os Alfeites, por exemplo, desde sempre que tinham em monopólio para o uso masculino, um tal azul escuro e as senhoras da família o acesso a um certo damasco.  Nos salões eram as "damascos".
Rodrigo não casou. Mas anos e anos de permanência na pensão da Dona Vitória, onde o tio  a quem o pai o tinha confiado também morava - haviam-no feito íntimo da criada, a Nelma, ela própria servindo na cozinha desde cachopa. Nelma e Rodrigo entabularam, pois, um convívio que, anos mais tarde, perceberam socialmente desnivelado: ele tornara-se no elegante caixeiro da casa de modas mais conceituada da cidade e ela  permanecia fiel aos aventais. Quando a burguesa Ivone se apaixonou pelo homem de bom aspecto que lhe mostrava os tecidos nos "Boda", estava, assim, longe de imaginar que o seu galã, sempre bem vestido, sempre barbeado e melhor perfumado, tinha um caso com uma "sopeira".
- Porque não a largas? - Perguntou ao partilhar pela primeira vez a  cama com o amante, e este lhe confessou o assunto.
- Há-de acontecer.
Assim não foi.
Se Ivone progrediu no coração de Rodrigo, este não deixou de manter num seu nicho, e bem guardada, a relação com a cozinheira. Nelma que não tinha a elegância nem o saber burguês da rival e, com os anos, havia engordado, parecendo, para quem nunca havia sido alta, que o tempo mais a a atarracara, acabou por manter o seu espaço: Rodrigo não a deixou.
- Há um segredo entre ti e essa mulher. Por isso não a largas! - Defendia Ivone, incapaz de compreender uma relação, a seus olhos desiquilibrada, e, por fim, sentindo-se cada vez mais amarga: nem ela se libertava do amante nem vencia a adversária. Rodrigo, no entretanto, dividia-se pelas duas mulheres, indo de uma para outra com a meticulosidade de um relojoeiro: aos dias pares ficava em casa da burguesa, aos impares dormia com a operária e os domingos e feriados estavam a disputa. A proximidade daqueles, principalmente os mais assinalados - a Páscoa, o Natal ou o Ano Novo - eram pretexto para, semanas antes, haver longas discussões quer numa casa quer na outra. A vida de Rodrigo não era fácil.  Ivone, sobretudo, não  compreendia como era possivel perder a favor de uma criada!
- Há um mistério entre vocês. - Repetia.
Anos depois a situação não se tinha alterado, salvo no tempo que pesava sobre os seus protagonistas. No entretanto os "Boda" tinham aberto sucursais um pouco por todo o lado e Rodrigo, na função de responsável pelo comércio na zona norte do país, transferiu-se para o Porto. Ivone seguiu-o. Mas a esperança de que a mudança  estabelecesse finalmente, na relação com "a outra", uma vitória defintiva a seu favor, foi de todo abalada quando, uma manhã, deu com Nelma saindo de um armazém barato. Pouco depois Rodrigo reestabeleceu a divisão dos dias, e voltou tudo ao mesmo, apenas que noutra cidade. Ivone, sem forças para se separar, nunca perdoou a Rodrigo  o não ter deixado a rival lá onde ela estava, em vez de trazê-la para a sua companhia. A partir daí as discussões entre ambos tornaram-se constantes, independentemente do calendário indicar, ou não, a proximidade de um feriado. Quando, naquele fim de tarde, ela ameaçou com a janela, Rodrigo não levou a sério a companheira: nos vinte e poucos anos da relação, as regras da boa compostura nunca haviam sido ultrapassadas e nem  um único palavrão, ou palavra mais alta, fora alguma vez pronunciada. Discutiam, sim, mas tudo em voz baixa e por vezes mesmo, quando a raiva era maior, quase ciciada. Talvez até tivessem gala nisso, em mergulhar as palavras mais contundentes num registo de afável coloquialidade.
- Tu a suicidares-te! - disse Rodrigo num tom  escarninho. E pois que não encontrava a palavra no jogo que construía, perguntou a Ivone: diz lá um sinónimo de mudança!
Miguel foi posto no orfanato e Rodrigo, antecipando a reforma, abandonou quer os ""Boda" quer  Nelma.  Ele, que  durante mais de vinte anos se dividira por duas mulheres, fora as que, casualmente, ainda satisfazia, enojou o sexo. A visão da amante desfeita no asfalto - ou o remorso? - tornaram-lhe impossivel qualquer metafísica, qualquer voo que  vislumbrasse na carne mais do que um invólucro de ossos, sangue e fibras, matéria apodrecível. Ao mesmo tempo o mundo da moda, - o seu até aí -  deixou de interessá-lo, e aquilo que a precoce entrada no trabalho tinha construído - um adulto incapaz de se pensar doutra maneira, ou seja, que não fosse trabalhando -  desmoronou-se. Talvez o labor do luto assim o exigisse mas o que noutra pessoa, com acesso a saberes, consultores e cuidados próprios - quem se havia importado que a criança Rodrigo tivesse como brinquedo um balcão e rolos de fazenda? - teria sido analizado e adequadamente receitado, em Rodrigo traduziu-se num definitivo abandono da vida que até ali havia levado. O mundo e o seu sofrimento, a  dor, a disputa das amantes, as obrigatórias bobices do Miguel, para que ele e Ivone fizessem as pazes, tudo de repente apareceu a Rodrigo no seu valor de sacrifício a um mundo surdo, de altar à sua cegueira. A pressa que sempre acompanhara Rodrigo, o formigueiro a que, cedo, antes mesmo de se dar importancia, a si e aos seus sentimentos,  se obrigara, tinham-no tornado numa máquina antropofágica, trituraradora dos seus mais profundos impulsos e, por fim, do que quer que fosse. A ordem, a lei, a obediencia à regra colocada acima do ser, o prazer dividido em dias ímpares e pares, com os feriados à disputa, a dizerem-lhe, no ruído reivindicador de Ivone e de Nelma, que o mal estava ali mesmo, no imponderável onde tudo era possível e a vitória sabia às livres forças da natureza...
O suícidio de Ivone, como um ciclone, varreu a vida e os valores de Rodrigo.
Em Elvas, na casa dos falecidos pais que a vida, logo cedo, fizera abandonar, Rodrigo vivia há alguns anos sem mulheres, perfumes ou fatos caros. Mas finalmente dava-se atenção.
- O Miguel está bem e diz que vem visitá-lo - mentiu Ema. - Nós é que... - ia a dizer "estivemos presos" mas calou-se. O outro podia assustar-se e nem tinha provas de que o cárcere tivesse mesmo acontecido! Emendou: - Não temos documentos e precisamos de atravessar a fronteira. Vamos pedir refugio. O Paulo não quer fazer a tropa.
Talvez fossem bombistas mas que tinha ele, Rodrigo, a perder? Na cidade todos sabiam do seu fraco pela sociedade sueca, que tinha visitado um dia ao serviço dos "Boda..." A sugestão saiu-lhe, pois,  imediata:
- Vão para a Suécia! Lá é  bom. Lá...
A Suécia? - disse a rapariga e Rodrigo, também pelo ar estranho do rapaz, percebeu que nenhum deles deveria saber onde o país ficava. Foi buscar um mapa
- É aqui.
- Suécia... - O nome provocava ao pronunciar-se um pequeno assobio na boca e, em todo o caso, tinham de ir para qualquer lado. - Na Suécia dão apoio aos refugiados - Concluiu Rodrigo ao mesmo tempo que, numa folha de papel,  traçava a lápis o caminho para Badajoz  - Depois rasgamos isto. Será arriscado para qualquer de nós se apanham o papel.
Debaixo da mesa Ema fez uma figa. Ser presa de novo... Passar outra vez pelo que passara. Não o desejava. Nem ao pior inimigo. É claro, tinha sido uma prova mas bastara. Não queria mais. Um dia contaria tudo a Paulo? Até ali quase não tinham tido tempo para se amarem. Olhou de novo o mapa da Europa que Rodrigo estendera em cima da mesa, o bocadinho pintado a cor-de-rosa que ele indicara: a Suécia, a receita para uma boa vida. Mas até lá seriam doze fronteiras, doze trabalhos de Hércules. Porque as coisas não eram fáceis e directas e o prazer custava tanto? Porque o pão sabia sempre ao diabo? Nada na vida lhe fora facil nem estivera à mão. Houvera que conquistar tudo, arrancar o menor prazer à força de dores e ais. Até a alimentação e os cuidados que a mãe lhe dava lhe tinham sido constantemente atirados em cara "nem sabes o valor das coisas, os sacrifícios que faço por ti..." - e esta frase, assim como outras do mesmo género, apesar do seu afastamento e independência, ainda lhe doíam. Ao lembrar tudo isso, Ema ficava como que impotente, incapaz de distinguir o falso do verdadeiro, a verdade da mentira: a mãe tinha-se mesmo sacrificado ou haviam sido apenas palavras más, usadas só por causa do ralho? Porque ela deixara-a e no entanto a mãe, a mãe não mudara de vida...  Não importava. Ela, sim, Ema, havia mudado tudo e vivia por si. E não queria saber de mais nada e no momento, bom, no momento, até ia a caminho do paraíso, dessa tal Suécia. E claro, custava a alcançá-la mas...
- Lá recomeçarão de novo... - Teimou Rodrigo. - Lá... - Abriu um livrinho e copiou o endereço do centro, em França, onde ela trabalhava. – Quando chegarem a Paris, vão a esta direcção e perguntem por Mme Nelma. Ela ajudar-vos-á. E... digam-lhe que a saúdo.




































Da mesma forma que, ao entrar no salão do palacete senti que a vida  me tinha marcado, fazendo-me, aos olhos dos que me esperavam, primeiro um personagem da porno e, depois, um prostituto, assim a palavra "refugiado" se me colava ao corpo e eu acedia ainda a um outro estatuto. Tudo quanto a partir dali fizesse levaria o seu selo. A ditadura marcava-me como à rez queimada com a insígnia do dono e, pela primeira vez, percebia a profundidade da sua mordedura, o poder do seu veneno. Não apenas em relação ao futuro mas, sobretudo, no que dizia respeito ao passado, ao período antes da prisão, pois, até aí nunca a política me tinha preocupado. Com efeito,  o tempo em Caxias confirmou-me que já antes vivia numa prisão, que tomara uma versão das coisas pela sua totalidade, que enfim, crescera num aquário de água contaminada, pensando-a pura e de espaço infindo. As informações recebidas na escola haviam sido condicionadas, os professores nunca haviam provavelmente dito o que pensavam e eu próprio, quando madrugada alta subia e descia as avenidas no desejo de alcançar a exaustão, mesmo esse desejo nascia, não de uma vontade livre e senhora, mas exarcebado pelo nascimento num presídio.
A ditadura tinha-me impregnado e sujo cada um dos meus gestos, deixado neles a sua baba.
O meu horizonte havia sido propositadamente limitado para que alguém - no caso um ditador e os seus beneficiários - usufruissem da minha pessoa, tirassem partido da minha existencia, a colocassem ao seu serviço. O Estado tinha-se confundido com um desejo particular e do meu, e do de tantos outros, haviam feito tábua rasa. Mas precisavam da minha carne para alimentar a guerra e, nesse limite, a minha pessoa ganhava de novo importância: um senhor não sobrevive sem escravos. A minha recusa em partir para as colónias feria, pois, o ditador e ele tentaria tudo para me impedir a fuga. A Suécia surgia, assim, como o lugar onde a vida retomaria o seu verdadeiro carril e se, até Elvas, havia apenas fugido - ouvindo na rádio do camponez o elogio da permanência  - a partir do encontro com Rodrigo essa mesma fuga ganhou um sentido: "Lá é bom! Lá recomeçarão. Lá..."- afiançara Rodrigo e nós, atletas sem meta, acreditámos nas suas palavras, não só porque as anteriores se mostravam falsas mas porque necessitavamos de crer em algumas.






























As nossas sombras resvalavam apressadas pela ladeira a pique, com o Sol a inchá-las. Mais  abaixo, reconhecemos a estrada que Rodrigo desenhara no mapa. A fronteira era dois kilómetros adiante e o nosso guia tinha aconselhado a dar o "salto" pela hora do maior calor. E consegui-lo não era dificil: estavamos em Agosto. "Os guardas pela hora da canícula abrigam-se nos postos". Algures num campanário deram as treze horas, o Sol rondaria os quarenta graus e o asfalto pegava-se-nos às solas dos sapatos.  Mas surgiu pela esquerda um caminho de terra batida e recordámos as palavras de Rodrigo: “na estrada, ao fim de andar um pouco, cortam por um atalho de areia e hão-de encontram um ribeiro. Atravessam-no - ele está seco - e do outro lado vêem logo as casas de Badajoz. Depois... boa sorte!"
Não foi assim.
Passado o leito árido do riacho a planície alentejana estendeu-se ainda e continuou igual. O mundo alagava-se num deserto de terra, sem casa ou viv'alma. O suor encharcava-nos os corpos e o peso da muxilas. ("Que levas"?  "Muito pouco" Mas tinhamos trazido quase tudo, como quem agarra o que tem por não possuir mais nada) puxava-nos para baixo. E, asno que a mó tortura, andámos uma hora – ou duas? – sempre às voltas e revoltas, sem perceber onde íamos. Espanha? Portugal? Para o Diabo? Ou para a Suécia? A Terra tornou-se viscosa e, caídos num seu remoínho, recuar e avançar foram o mesmo. Nas suas tocas os grilos  riam-se do nosso  paraíso para daí a doze fronteiras. Gri-gri-eles-estão-aqui! Gri-gri-eles eles vão além, gritavam nas nossas costas. Mas onde era trás e frente? Então uma mulher saiu de dentro do bafo quente do campo e parou à minha frente. Talvez fosse uma miragem mas ela chamava-me filho.
- Finalmente! Finalmente! - Arquejava e, de braços abertos, queria abraçar-me, colar o seu  suor ao meu. Empurrei-a e ela parou surpresa, talvez confusa. Um homem e um rapazito também apareceram e tomaram-na nos braços. Seria uma louca, uma camponesa que teria dado em maluca por ver tanta terra? Por se perder como nós naquela travessia?
- Desculpem - Disse o homem.
Puxou-a  a fulana a si e o grupo afastou-se. Mas a mulher, apoiada no braço do homem olhava sempre para trás.
- Badajoz para onde é? - Berrei na direcção deles sem já me importar que um qualquer guarda fronteiriço ouvisse. Aliás com o que andaramos em todas as direcções, ainda estariamos entre Portugal e Espanha? Ou neste mundo?
O homem falou para o miúdo e este veio de novo até nós
- Sigam-me!
Obedecemos.
Caminhavamos os três em silencio, o gaiato à frente e nós, Ema e eu, atrás, como animais de carga prestes a lançá-la por terra, por já não a suportarem mais. No entretanto os nossos passos restolhavam na erva seca e  os grilos continuavam na sua faina mas não nos ligavam já. Perderamos a importancia. Nisto o miudo parou: -  Aquilo da minha mãe... - Fez uma pausa e continuou, como se pedisse desculpa: - É que ela vê sempre o meu irmão a chegar. - E explicou, com o ar de quem dizia a coisa mais lógica do mundo: - Franco garrotou-o! - Depois, espetou um dedo para a frente - Badajoz é além - E correu a toda a velocidade para trás.
Um avião cruzou os céus. Daí a uma hora estaria na Suécia.


























Em Badajoz, na estação dos caminhos de ferro, informaram que o próximo combóio para a fronteira francesa partia daí a pouco. Mas exigia passaporte e, embora fosse directo para Paris, não o podiamos tomar. Deviamos antes seguir até Irun, a cidade junto à fronteira com a França, em combóios regionais pois nestes, em princípio, ninguém nos pediria identificação.  Mas como teríamos que fazer imensos transbordos a viagem seria muito mais demorada, até porque havia que contar com os desfazamentos entre a chegada de um comboio e a partida do seguinte. Na verdade de Badajoz a Paris demorámos uma semana.
O primeiro combóio na direcção de Irun partia ao fim da tarde. Deixámos as muxilas a guardar na estação e demo-nos a passear pela cidade, imitando as famílias que, em dia de folga, também o  faziam. Sob uma ponte,  junto ao rio, sentámo-nos. Tinhamos pela frente um túnel de fronteiras e oxalá ele desaguasse na luz, no outro lado. Até ali, enfim, havia resultado.
Em silêncio, na margem arenosa, Ema entrteve-se a colher conchas e eu a atirar calhaus à água. Mas dela emergiu um diabo de cores garridas, com cauda arrepelada e dois cornichos na testa e, sem que Ema o visse, segredou-me ao ouvido:
- Não têm hipótese! Vocês serão apanhados! Melhor seria que fossem à polícia e se entregassem já! Para os apanhados em flagrante o castigo é bem pior. Aqui em Espanha manda Franco, o do garrote. Olha que ele mata mesmo! Não viste aquela mãe? - Eo maligno foi embora com um abanar reprovador da cabeça.  Mas outro, com os olhos amarelos e um hálito de fel, substituiu-o:
- Só por inconsciência ages assim. Se soubesses o que é o exílio, o não poderes regressar onde nasceste e o teu sangue apela, a mágoa que isso faz, o peso no peito a enegrecer qualquer alegria, o desejo, mesmo nos sonhos, donde não podes ir, lá onde mais desejas. O exílio! O ouvir sempre falar estrangeiro,  as palavras, outrora doces e boas, já agulhas torturando ouvidos e boca...  Há gente fugida há mais de vinte anos e que nunca se adaptou! A  saudade mata, sabias? - E este diabo também foi embora, dando lugar a um mais insinuante.
- Que idiotice! Tudo porque não queres cumprir o teu dever! Não nasceste português? Não te cabe defender a terra que te calhou? Quem queres tu que lute por ela? Os que nem a conhecem? Os que não a sentem? Porque foges? Já te imaginaste na guerra, de arma na mão? - Fez uma pausa e retomou num tom que lembrava o ditador: - A guerra, meu querido, é o poder puro. Na guerra a lei suspende-se e manda o desejo. Pode-se fazer tudo! A liberdade, compreendes? O contrato sem compromissos, o verdadeiro senhorio! Pensas que a Suécia é como ta pintaram? Não sejas ingénuo! A propaganda ilude! - E um último diacho, apontando Ema que, longe destas conversas, mergulhava os pés na água, disse:
- Ela vai deixar-te, vais ver. O teu esforço para a converteres a ti é inútil. Ela pertence-me, compreendes? É a minha mais querida esposa. E mesmo que, por uma absurdidade que mal se imagina, a convencesses do teu amor, ainda assim essa tua obra  reverteria a favor doutro. - Deu uma gargalhada e concluíu: - Pobre idiota!
Atirei-lhe um calhau e o demo, aos risos, sumiu-se no rio.
Ema veio ter comigo. Parecia transtornada e percebi que algum ou mesmo todos aqueles horrores também a teriam atacado. Agarrou-me e perguntava:
- Aceitas-me, não aceitas? 
Mas a sirene de um carro da polícia fez-nos voltar à realidade e deixámos a margem. De qualquer modo aproximava-se a hora do combóio. O primeiro.






































Espanha tornou-se numa velha fita viscosa de apanhar moscas que queriamo-la atravessar sem que nos agarrasse. De dia. De noite. E outra vez de dia. 
Em andamento ou nos transbordos evitavamos os polícias, os  chefes de estação, todos quantos - e eram muitos - usavam fardas. A dos guardas civis - chapéu de aço ponteagudo, a lembrar um elmo da idade média - metia medo.
Pouca terra... Pouca terra...
Pó e olheiras.
Outro combóio. E outro ainda. E mais outro. Tantos e tantas vezes transbordos que se lhes perdeu a conta.





































Gente entrava e gente saía. À luz amarelada das lâmpadas no tecto rombo da carruagem tudo eram sombras, corpos  sem consistencia, fantasmas da noite espanhola. Os ossos doíam-nos da dureza dos sucessivos bancos, enquanto a nova e gasta composição parava no mais recondito apeadeiro, no mais ínfimo lugarejo: visitas a um primo há muito não visto, regressos à terra depois da ida ao mercado.
Tarefas quotidianas, connosco sempre passando, sempre em viagem.
Olhámos o relógio: nove da noite. No combóio a sério, no que nos preenchia os sonhos e andava à velocidade do ouro, conversava-se  nos salões, o sineiro anotava as encomendas para o pequeno-almoço, funcionários de galões dourados abriam os lençois das fôfas camas.
- Na próxima estação descem e aguardam a composição que passará de manhãzinha - disse o revisor mal encarado mas reconhecendo-nos como os que iam lá para o fim do mundo, para Irun, na lonjura da fronteira, à beira do outro lado.
Na sala de espera, gelada, nós e um guarda civil. O homem olhou-nos e, farto de aparentar quem não era, tirou o capacete com as insígnias de Franco e logo os sapatos. Um cheiro a muita caminhada invadiu tudo mas acalmou-nos: que mal faz um policia descalço?  Na cumplicidade que só a noite permite apagámos então a luz da sala e, daí a pouco, o guarda-civil  ressonava. Pela primeira vez senti o conforto de Espanha, a sua enorme vastidão a prodigalizar-me carinho e abrigo. E quando de manhã a luz invadiu o recinto e o chefe da estação veio ver quem  seguia caminho o nosso guarda tinha desaparecido.
Outro destino.




























Um ponto perdido no mapa ou mesmo sem nome: um nada onde no entanto nascia gente, outra e a mesma morria, o combóio parava, lançava um ou dois apitos como uma ameaça de que nunca mais o veriam e, afinal, voltava.
Descemos para mexer as pernas, comprar pão e encher a garrafa com água.
- Tem bar? - Perguntámos a uma mulher vestida de negro e de olhar arrevezado. Ela entortou a boca como se a palavra a pronunciar fosse mesmo perigosa e repetiu, incrédula:
- "Bar"?!
O combóio afinou nova ameaça de partida e voltámos à carruagem.
No cais de madeira, à moda do velho far-west, a camponeza teimava em olhar-nos como se não acreditasse que, por ali, tinham passado dois turistas.































Os guardas-civis, sentados no banco reservado do apeadeiro, não embarcaram, e a máquina retomou o caminho connosco felizes, como duas crianças a quem deixam ir a passeio sozinhas.






























A nova composição, mais gasta e desconjuntada que as anteriores, de madeira carcomida, pareceu abandonada na planície depois de ganhar velocidade. Ninguém entrava, ninguém saia mas ela também não parava. Lá ia, tomada de uma imponderabilidade mítica, e nós, os seus passageiros, mudos num passeio arcaico pelo tempo. O silêncio das vozes, o chio do rodado nos carris, os corpos a inclinarem para o lado contrário à curva, o tédio. E cada vez mais a pergunta: como entrar em França? Como entrar em França?...
No jogo da glória certos castigos reconduzem o jogador à casa do início...









































Numa estação seguinte não desciamos mas a carruagem mudou de locomotiva. Aproveitámos para comprar pão e mel: era a hora do almoço, o Sol untava os campos e os trabalhadores descansavam as armas. Há vários dias (quantos?) que íamos a caminho, como se pegados no mesmo sítio. Fora dos vidros a paisagem corria mas tudo seria ilusão, meros desejos de chegadas. O combóio deu um solavanco a dizer que sim senhor, que lhe tinham atado o novo motor. Nomes que as coisas têm porque o andamento, esse...












































A roupa cozida ao corpo, o vai-vem no carril, a sensação de que já tinhamos nascido "passageiros a caminho de Irun". Mas nunca se chegava e o desejo passava em herança de pais para filhos, assim como a esperança.  A caminho, sempre a caminho.
A nova máquina mais lenta ainda.
Irun... Irun...



















Outra paragem. Ou ainda não deixáramos a mesma?

























O corpo a trepidar como se fosse desfazer-se ou não aceitasse já andar senão em cima de rodas.
- Férias? - Perguntou o passageiro olhando-nos as muxilas.
- Sim - Respondemos afoitos.
- Até onde? - Quis o outro saber.  E eu de pensar: porque não a verdade? Ao menos... E entre o orgulho e a naturalidade do que é assim mesmo, ousei:
- Suécia! Vamos para a Suécia!
Mas a confissão fez-me ver a temeridade do intento. Suécia? Como? A utopia não é a prima directa do degredo?
O homem, de fato azul com pasta ao lado a indicar negócios, piscou um olho em trejeito cúmplice e, alheio aos meu receio, comentou:
- Ah! Amor livre! - E pôs-se a olhar o fora da janela num devaneio sonhador.




































Entre Portugal e Espanha pior que não saber o caminho para Badajoz havia sido a perda do horizonte. E fora só peso, carga, corpo, a impossibilidade de escondê-lo, subtraí-lo ao castigo, ao jugo alheio, à prepotência, ao estado. Mas na Suécia seria de mim mesmo  para pertencer a quem quisesse. No entanto nenhuma destas reflexões me ocupava. A ansiedade pregava o pensamento à fuga, adiando a vida até que, atingida a meta, desfizesse a mala. Depois, sim, retomar-se-ía o lá atrás, o no entretanto deixado, sabendo, inclusive, o momento onde as coisas deveriam reatar o seu curso: antes da prisão, no segundo anterior à entrada da polícia no apartamento, antes das noites a correr um para o outro, do apito  do árbitro suspendendo o encontro e a corrida, do acordar, só, na cela gelada.
- Que gozem muito na Suécia! - Desejou o homem preparando-se para descer.
A noite esfriara, estavamos parados junto de um barracão no meio do nada, uma cabana tosca a fazer as vezes de estação. O negociante desvanesceu-se no escuro, ouviu-se o motor de um automóvel a afastar-se e, anestesiados pelo tan-tan do aço nos carris, voltámos  ao rosário de apeadeiros até Irun. Mas ali naquele sítio, que não constava em nenhum mapa, que ninguém visitava e nem gare tinha, alguém no entanto também sabia da Suécia.

























O corpo fez-se dor. Mas o instinto de defesa desorganizava-o para melhor afazê-lo à dureza dos bancos. Por fim era só incómodo quando mudavamos a posição.
A paisagem, um papel que o vento colara nos vidros da carruagem - não apetecia olhar mas também não o conseguiamos descolar: seguia simplesmente connosco, enjoando-nos os olhos.
E no entanto a aproximação de Irun despertava-nos do torpor, reiniciando o medo o seu trabalho, picando-nos o corpo e a lassitude. Como entrariam em França os imigrantes clandestinos? Encontraríamos um que no-lo dissesse? Mas o receio da Gália também se fez hábito e, por fim, só reagiamos à vista de uma farda. Então, mais perto já da fronteira entraram várias. Na inconsciencia que os deuses prodigalizam aos loucos, ou  aos poetas, trocámos impressões com o perigo:
- São donde? - Perguntou amigavelmente um dos polícias.
- De Portugal. Fazemos férias.
- Viva Salazar! - Disse um dos fardas, porventura para nos agradar.
- Viva Franco! - Retribuimos nós.




































Irun!
Finalmente Irún!
Mal chegados fomos ao guichet das informações: o combóio que levava à primeira cidade francesa depois da fronteira saía logo a seguir e não podiamos demorar. Dirigimo-nos à bilheteira.
- Se faz favor, dois bilhetes para Handaya. 
As mil e uma paragens do caminho tinham sorvido o já de si escasso dinheiro da viagem e, na carteira, restava-nos uma  nota, das mais pequenas, que o banco de Portugal emitia. Trocada por francos nem chegaria a uma dezena e, em França, se lá entrássemos, teríamos de prosseguir à boleia.
Mas na Suécia teríamos tudo.
No cais número dois sediava o "Sud-Express", o da velocidade de lince, acabado de chegar de Lisboa. Finalmente tomavamo-lo. Escolhemos um compartimento vazio e a máquina, como se nos esperasse - e a nossa entrada ali se devesse a uma mera futilidade - apitou, pondo-se em movimento. Acostumavamo-nos ao acolchoado dos bancos, aos espelhos da cabine, à luz indirecta e aos vidros duplos nas janelas, quando, no corredor, surgiu o revisor. Abriu a porta do compartimento, como vinha fazendo com a dos restantes, e delicadamente, avisou:
- Os senhores passageiros em Handaya mudam para o  combóio francês.  O controlo dos passaportes faz-se no túnel que conduz ao cais onde espera aquele combóio. Preparem os documentos se fazem o favor. - E, galeria fora, seguiu avisando o resto da carruagem. 
As coisas iam definir-se. O jogo da glória chegava ao fim porque em França - havia dito Rodrigo - mesmo que nos encontrassem sem identificação não nos devolveriam a Portugal. O problema era como passar para o lado de lá, como  fazer para sair definitivamente de Espanha, fugir ao garrote de Franco e do regresso à casa número um...
No entretanto, na cidade espanhola de Irun o dia chegara ao fim, os chefes de familia regressavam aos respectivos lares, as crianças tinham vindo da escola, serviam-se as refeições, depois o serão frente à Tv, o deitar e o adormecer: um quotidiano que pareceria monótono e corriqueiro. Mas se o nosso, nos últimos dias, tinha ganho em aventura não prestava todavia para viver. Emagreceramos e as olheiras haviam-nos crescido desmesuradamente no trabalho do medo.
A composição entrou em Handaya.
Tirámos as muxilas do porta-bagagens e também elas pareceram mais vazias ou mesmo esquálidas. Uma fila de passageiros, dos autênticos, aguardava já no corredor a saída para o cais. Possuiam a excitação dos grandes percursos, moderada na confortável segurança de quem sabe que os leva a cabo, que nenhum imprevisto regressaria a casa, e muito menos a uma prisão. Pela  primeira vez, desde que tinham embarcado em Lisboa, mudavam de combóio e a perspectiva, ainda que incómoda, não era de todo desagradável: iam andar um pouco, pisariam terra firme, deixando por alguns minutos o ar condicionado para respirarem algum ar livre. Nestas mudanças talvez houvesse sempre alguém retido numa fronteira, numa passagem pela polícia,  mas que tinham a ver com isso? Não tinham tudo em ordem? Não eram pessoas de bem?
O combóio guinchou e por fim estacou.
Uma voz  simpática repetiu, desta vez nos alto-falantes, o que o revisor já nos dissera:
- Atenção, senhores passageiros, o controlo dos passaportes faz-se no subterrâneo. Por favor...
No corredor do combóio a fila de gente moveu-se. Quando chegou a nossa vez de saltar para o cais já uma multidão descia diligentemente as escadas de acesso ao túnel, lá onde funcionava a fronteira. Arame farpado impedia ao longo da plataforma a passagem por cima da linha para o cais que servia o edifício da estação, do qual até seria possível a entrada imediata na cidade...  Mas desde quando o rato avança direito para o gato? E se a rede a certa altura acabasse? Cruzando as linhas não alcançariamos o outro lado, o edificio da estação?  E através dela a entrada sem controlo em França?
- Vamos por dentro do combóio...  – Sugeriu Ema, adivinhando-me o pensamento - e, como se esquecessemos qualquer coisa na carruagem, voltámos a entrar nela, percorrendo-a em sentido contrário ao que, cá fora,  a  multidão seguia. Ninguém nos chamou ou encontrámos algum polícia e, no último vagão, o da cauda do combóio, descemos finalmente para o cais. De facto o arame farpado poucos metros adiante terminava e nada parecia então impedir o cruzar por cima dos carris.
- Senhores passageiros...  - Repetiu uma voz. Fizemo-nos surdos. Saltámos para a linha. Um cão rafeiro, certamente espanhol, veio até nós como se quisesse também fugir e, num gesto rápido que libertaria todo o mundo,  levámo-lo igualmente para a outra plataforma. Teriamos mudado de lado o universo inteiro.
Da estação de Handaya, com os seus guichets e demais serviços, várias portas saíam para a cidade.
Hércules concluíra o terceiro trabalho. Só faltavam nove...










































Em busca de sítio para passar a noite, escolhemos o último piso de um prédio em construção. Os casacos serviram-nos de colchão e entre nós e as estrelas pusemos o sonho.
- Vão para a Suécia! – dissera Rodrigo...
De madrugada o apito de um carro da polícia acordou-nos mas a viatura afastou-se e tornámos a adormecer. Embora devessemos manter a vigilância, dormiamos o sono da vitória sobre as ditaduras portuguesa e espanhola, o medo de, descobertos, tornarmos à prisão. A proximidade da  península Ibérica ainda nos inquietava mas a esperança no norte exigia que a esquecessemos. O fugitivo olha em frente.
Mal acordámos fomos à loja de câmbios trocar a última nota.  A ideia de um pequeno almoço, mesmo que modesto, numa das esplanadas de Handaya enchia-nos de ousadia.
- S' il vous plaît, je veux changer ça en francs.
A empregada  aceitou-nos a derradeira nota com a indiferenca de quem todos os dias manuseia grandes somas. Premiu uma tecla na maquina, rabiscou um número e mandou-nos, com fria gentileza, para o "guichet" do caixa. Ele leu a quantia que nos devia e, no gesto rápido de quem tem muito a fazer, separou uma cédula do respectivo maço.
- Voilà! - Mas, em vez dos dez francos a que a nossa pobre nota dava direito, o homem entregou-nos o valor exacto de duas viagens em combóio até Paris!
Há um deus dos trânsfugas?








































Paris.
Olho a palavra atento às sensações que me evoca.
Não posso - sinto-o - chegar aqui e acrescentar "fomos à associação procurar Mme. Nelma, a amiga do Rodrigo". Não corresponderia à verdade. Mas não sei, também, se é a ela que procuro, ou outra coisa. Obedeço no entanto ao impulso e narro, enquanto me divido, afinal em acordo com os personagens que me habitam, pelos quais me distribuo, eu o múltiplo, a miríade, o incapaz de unidade, do ser na calma sabedoria da existência, eu, o real trânsfuga, o ansioso por exibição e venda, o prostituto, o retirado e asceta, longe do mundo e do seu excesso, eu tu mesma, a fria e implacável, a mais amada entre todas, a bendita, eu, finalmente, e apenas, um outro, o peregrino, o passageiro direcção ao outro lado, o narrador. Faço história? A nossa? Talvez lute pelo tempo que não tivemos e isso seja agora evidente. Mas não nos separaram. Residirá ai a nossa vitória? Ou ela estará neste relato, no espaço que ele alcance numa memória alheia como outrora Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda ou Genevieva e Lançarote? Não sei, não sei e, no entanto, continuo, mas há um frio, todo vindo de dentro, que me gela, e o silêncio em meu torno é medonho, e minha sombra escrevendo faz-me medo. Serei capaz de chegar a bom termo, contar as voltas que demos, levar a cabo o destino, esconjurando a nossa falta?
Tomo outro comprimido e ele dá-me forças, a memória reactiva-se outra vez em Paris. Porém, mosca presa na teia, não consigo libertar-me e prosseguir a história: partiu-se o fio que a desenrolava, partiu-se qualquer coisa que me rodopia, e atém a este momento, refém da necessidade de ficar contigo, sem palavras a mascararem o tempo, a realidade, tu, eu, e mais nada.
Lá fora a rua esvazia-se, passou há pouco o carro do lixo. Mas porquê? Porquê  Paris, porque esta palavra há-de ter tal efeito?
Liberta-te, história, e prossiga-se o teu curso como rio a que margem alguma prende.
Nesta secretária, cujo tampo de vidro é mais quente e vivo que todavia eu... Como é desamparado o espaço em volta quando nada o ilumina, o horizonte não brilha, nada anuncia uma qualquer espera.
Esforço-me por galgar este patamar e sair daqui, ir embora, afinal o outro lado não passa de mais um conjunto de palavras vazias, ias, as.
Retomo.
Para o começo chegar a seu cabo, para outra coisa começar ainda, neste movimento cumulativo de começos e fins,  como quem colecciona asas de vento, tão inútil como quem se suicida.
Paris que evoca?
A memória desvanece-se e as teclas paralizam-se, criam teias, ferrrugem. O tempo não anda no relógio. Quebra-se. O teu tempo e o meu. O de Paris. Este em que te mantenho. Que se delineia e de fantasmas nos faz possíveis. Tu. Eu. A paixão, o ser tudo demais para a exiguidade dos corpos, dos nossos minúsculos corpos: a contrução obediente e bem comportada da narrativa, no limite do caos, da troca dos verbos pelos adjectivos, o massacre dos complementos, a fuzilaria dos eus.
Paris
Local priviligiado desta página, da linha que me escraviza  e não deixa virar a folha.
Todavia, não foi em Paris que alguma coisa se passou. Foi na "Fénix", em Breda... E, mais à frente, em Amsterdam. Onde a neve nos petrificou os corpos e necessitámos de mil alcóois para reaquecê-los. Sim. Tudo foi aí. É esse abismo que ora exige paragem e lembrança? O seu tributo? É ele a querer que finalmente o sinta?
Paris: a vingança da memória. A sua escrita-liquidação como, para outros, o divã do psicanalista, a sessão no terapeuta. O passado não perdoa? O meu crime atormenta-me? Socorro, socorro!
Silêncio em volta.
Choro e facas.
A custo retomo.... Paris... O desembarque em Austerlitz. Que fizemos? Ah sim, estavamos exaustos mas satisfeitos. C'os demónios! Passaramos quatro fronteiras! Para a Suécia faltavam apenas oito.
Procurámos a direcção que Rodrigo dera.
Pausa.
Esvazio nova garrafa. Os comprimidos não surtem efeito.

















































- És um assassino! Foste tu quem a empurrou! Tenho medo de ti! - As palavras tinham saído a Nelma sem querer mas elas ali estavam a minarem o que haviam vivido, a impedirem-lhes o futuro juntos.
- Foi ela que se atirou! - A voz de Rodrigo saía tímida como se ele próprio não acreditasse no que dizia.  De qualquer modo tinha a consciencia de que a morte de Ivone exigia luto pesado, e que o seu afastamento  se liquidaria com outros afastamentos mais. Miguel havia fugido, Nelma queria sair da sua vida e ele próprio...  
- Vou emigrar - Disse ela.
- Com a tua idade?
- É sempre altura de recomeçar.
A cozinheira afiou a faca que, de velha, dera em cortar torto. Recomeçar... Deixar o  que tinha esgotado as suas possibilidades e explorar lá onde tudo era ainda possivel, a esperança de novo uma virgem de vestido branco.
- Vou para Paris. Tenho lá uma  prima. - Disse, ao mesmo tempo que sentia a necessidade de uma força superior à que possuía para, naquela altura, inflectir uma nova direcção às coisas,  mudar-lhes o rumo. Mas o vento soprava a seu favor e a convivencia com Rodrigo, depois do suicidio de Ivone, parecia sem sentido. Afinal as duas mulheres, que tanto se desprezavam, faziam parte do mesmo universo e o fim de uma implicava o desaparecimento da outra. Rodrigo para quê?
- Uma prima em Paris? Essa é boa! 
- Se ela lá não estiver invento-a! - Respondeu com a secura de quem não se dispõe a tolerar mais  atrasos na vida. Aonde já não iria se obedecesse ao coração no preciso momento em que ele lho pedia? Quantas vezes não quizera deixar Rodrigo e a decisão amolecera, desfeita no rame-rame do dia-a-dia? Basta! Tinha de dizer basta! Ficar com Rodrigo, agora que a outra morrera, era aceitar um despojo e isso seria descer demais. Deus sabia o que já tinha aturado!
- Deixo-te. É isso.
- Vingas-te?  Não. Penso em mim. Volto a ter amor-próprio.
Olhou o homem com quem partilhara trinta e tal anos de vida, que assistira ao seu crescimento, ao seu  fazer-se mulher. O seu passado. Mas este tornara-se-lhe estranho e aqueles, cuja mala de viagem durante anos e anos fora a mesma, necessitavam já de uma para cada qual: os destinos de Nelma e Rodrigo separavam-se, ambos deviam perguntar-se: "isto de quem é?"
Numa manhã invernosa, Nelma, depois de se desfazer de tudo o que não podia levar consigo, reuniu o que restava e abalou para Paris.  Desde esse dia até à  sala do "Centre d' Acceuil aux Emigrés" onde atendia os que, como ela um dia, desembarcavam na cidade-luz apenas com uma mão vazia de esperança, distavam quinze anos. A decisão de  mudar de vida não fora em vão. Olhando para trás Mme. Nelma concluía pelo menos uma coisa: se o destino pode muito, a vontade humana não lhe fica atrás. Mas naquela manhã o passado visitou-a.
- Rodrigo está bem? - Quis saber.
-Sim. Pediu-nos que a saudassemos.
Nunca mais o tinha visto. O esforço que a mudança lhe exigira não se compadecia com olhares para trás. Talvez, se se puzesse questões, devesse perguntar-se porque ficara tantos anos presa a uma situação que, vista ao longe, lhe parecia  insustentavel. Mas as coisas são assim: enquanto não surge um novo elemento os restantes não viabilizam um cenário diferente. A inércia. Depois, do ponto de vista do que mudou, o estranho é as coisas não terem acontecido antes. As conjunturas e as suas limitações.
- Queremos ir para a Suécia. Lá...
- A Suécia?
- Sim. A Suécia...- Nelma reconheceu no desejo dos jovens a crença escandinava de Rodrigo, a sua esperança de que as experiencias levadas a cabo naquela parte da Europa fossem aplicáveis a todo o mundo. E.. porque não?  Porque não satisfazer o desejo do seu ex-amante? Fez uma pausa para reflectir enquanto fingia consultar um mapa. Havia qualquer coisa de inadiável nos jovens sentados à sua frente que também a predispunha a atendê-los. Talvez a veemência com que afirmavam quererem a Suécia. Se o mundo fosse feito de gente assim, tão decidida, acabar-se-ìa depressa. Sorriu da ideia. Afinal era ela que não acreditava. Percebeu que Paulo e Ema - chamavam-se assim? - aguardavam uma resposta, a decisão sobre as suas vidas. Mas seria isso? Contra todas as aparencias e condicionantes - nunca houvera prima nenhuma em Paris e a vinda para França fora na verdade um salto no escuro, qual cidade-luz! - Nelma mudara o que parecia  não ter mudança. Afinal tudo o tem. Mas guardava ainda, no fundo de uma gaveta, o último avental da pensão Vitória. Trinta e cinco anos de cozinha! E afinal...
Encarou os miúdos na sua frente. Se aqueles desistissem que seria do mundo? Havia, pois, que ajudá-los, facilitar-lhes a tarefa. A maioria resigna-se ao menor pretexto: o da idade é o mais frequente e, pior que tudo, arrisca-se a ser socialmente aceite. O mundo é tão parvo! Com um gesto decidido premiu uma campaínha e sossegou as visitas:
- Vou ver o que posso fazer. - E não  resistiu a acrescentar: - Mas olhem que aquilo lá no norte também não é assim tão bom... - Aliás não o é em parte alguma e o que nos resta é um bom fabrico do dia-a-dia - Ia a acrescentar.  Mas calou-se. Ruiz, fugido de uma prisão de Franco, aonde aguardara pena capital, entrou no gabinete. Nelma  tinha uma especial simpatia por aquele funcionário que servia  nos contactos com o mundo latino. Alguém que só no último momento se salva da morte de certeza que experimenta em si a relatividade das coisas. Neste sentido todos, em determinada altura deveríamos sujeitarmo-nos a uma situação limite. A raça amadureceria mais depressa. Mme. Nelma dirigiu-se a Ruiz:
- Conduz por favor estes jovens a um sitio seguro. Não têm documentos e estão de passagem para a Suécia.- Virou-se para os trânsfugas:
- Se escreverem a Rodrigo digam... - Hesitou. Dizer o quê? Que tinha vencido e esperava que ele também estivesse bem? Que vistos à distancia os anos passados em conjunto haviam sido de espera inútil? Que importava já isso? Estava tudo tão longe! Por vezes nem já sabia falar português! E os franceses haviam-lhe ensinado tanta coisa! Claro, houvera a sua própria capacidade de adaptação, a sua coragem e inteligencia. A Suécia... Tantas vezes que Rodrigo lhe tinha falado na Suécia. E ela também acreditara. Senão, como explicar a sua mudança, a sua presença ali? A Suécia.... "Lá é bom!" - dissera Rodrigo tantas vezes... Nelma sorriu. Encarou os jovens e concluíu a frase: - ... Sim, digam que lhe agradeço.









































Ruiz falava um português mesclado de espanhol e conduziu-nos numa carrinha a um apartamento amansardado. Mal ficamos sós, Ema e eu deitámos-nos para dormir. Era apenas meia-dia mas há quanto tempo não usavamos uma cama!
O dia passou quase sem darmos por ele, connosco acordando para o indispensável mas de madrugada bateram à porta, no modo em que Ruiz tinha dito que poderiamos abrir. Era ele acompanhado por uma mulher elegante, de vestido comprido. Ruiz trazia "smoking".
- Incomodamos? Passámos aqui perto e... - Falava na voz presa dos bêbados e, encostando-se a uma parede, deixou-se escorregar até ficar sentado no chão. A cabeça andar-lhe-ia à roda, pois segurava-a com as mãos. A companheira explicou:
- Chamo-me Rita. Não queria vir mas o Ruiz insistiu que vocês... - Deu a ideia de que procurava os nossos nomes ou uma forma gentil de nos tratar. Ele socorreu-a:
- Peregrinos. Chama-lhes peregrinos. - E num tom jocoso explicou: - Vão a caminho da luz! - Rita olhou-o e percebeu-se que tambem não apreciara a intervenção do companheiro. No tom de quem procura uma conversa que torne possivel a convivencia, perguntou-nos:
- Dormiam?  - Ruiz no entanto não deu  tempo a que se estabelecesse o colóquio. Continuando num tom agressivo indicou Rita:
- Não lhe liguem. É uma puta! - E para a mulher directamente: - Uma puta é o que tu és e hei-de dar cabo de ti! Por momentos a mulher pareceu não saber como reagir. Ruiz aproveitou a pausa para voltar à carga: - Puta! És uma puta! Vendes-te por tudo! Puta! - E repetiu a palavra "puta" várias vezes como uma criança que, descobrindo um novo vocábulo,  o utiliza até à saciedade. - Puta! - Satisfeitos com as visitas que nos animavam a clausura não sabiamos já que atitude tomar.  Rita recompôs-se e exigiu-nos por sua vez a atenção:
- Tenho a certeza - Disse num tom onde havia o prazer da vitória que se antegoza - que este senhor não vos contou mas ele esteve na prisão...  - Fez uma pausa como um actor entregue a tirar o melhor partido da sua fala, e prosseguiu: - E sabem como é que se safou? - A troco de lá meter outros! - Encarou Ruiz para lhe ler no rosto o efeito das palavras. No olhar de Rita resplandescia o brilho dos bons momentos do teatro quando, no palco, o intérprete esquece o papel e sobrenada  na verdade. - Vá! Confessa! Foi ou não assim como digo? Denunciaste ou não outros?
Dava a ideia de assistirmos a um drama que se repetisse periodicamente, com os protagonistas vestidos a rigor.  Era a nossa altura de lhes apreciarmos o número e Rita e Ruiz representavam-no com a solenidade dos grandes rituais. Porém, a cada representacão iam ficando mais bêbados e dignos de lástima. No fundo o hábito da pena tornava-os impiedosos e andariam de palco em palco, perdidos pela remissão que nunca vinha. Tinham-se tornado um espectáculo.
- Encostaram-me à parede - Justificou o homem, dando a ideia de retomar o domínio da situação  - Iam matar-me! Não sabes o que isso é!
- Sim? E agora, sentes-te vivo? Serviu-te de alguma coisa o sacrifício? Poupaste-lhes trabalho, foi tudo!
- É preciso passar pelas coisas para compreendê-las.
- São precisos príncipios para que as coisas nos obedeçam. Tu sim, és um prostituto e vendeste-lhes a vida. E só agora percebes que o que te deixaram não vale nada, não presta. Por isso  te embebedas! Cobarde! Cobarde e palhaço. Houve um silencio e Rita levou a garrafa à boca bebendo um grande trago.
- Tu vendes-te porque queres. Estás em liberdade! - atacou Ruiz.
- E tu? - Perguntou Rita passando-lhe a garrafa num sinal claro de que se as réplicas os afastavam, ambos faziam no entanto parte da mesma peça. - Se queres saber, vendo-me porque gosto de humilhar quem me compra. É a minha vingança. Possuo os meus clientes. Mas a tua venda foi total: deixou-te nada. - Ruiz  escondeu o rosto entre as mãos. Talvez necessitasse de uma pausa ou fosse ainda a bebedeira. Rita, à semelhança do entertainer que procura no publico a cumplicidade necessária  ao que diz, apontou com um dedo o homem e dirigiu-se-nos: - Coitado! Não passa de um cadáver!
Ema e eu olhámo-nos. A nossa surpresa era enorme. Ruiz, apoiado à parede, levantou-se e retomou a palavra. Porém, como se ambos tivessem esgotado a rábula que lhes dizia respeito, virou-se para nós e vociferou:
- A Suécia, não é? Idiotas! A Suécia! Ah! Ah! Deixa-me rir. - Rita, animada  com a  intervenção do  companheiro começou às gargalhadas também, numa cumplicidade que nos pretendia fazer mal.  - Com que então a Suécia, hã? - Continuava ele. - A Suécia! Olha a Suécia! - E riam ambos a bandeiras despregadas. Ruiz pegou na garrrafa  e atirou-a contra a parede:  - Cacos! Cacos é o que há! - E começou aos berros: - Il n'y a que la mort! La mort! Vive la mort!" No andar de baixo uma voz de mulher esganiçou-se, ao mesmo tempo que um pau bateu furioso por baixo do soalho:
- Vous n'avez pas le droit! J'appelle la police! Vous n'avez pas le droit!
Que sucedia? A nossa fuga terminaria numa zaragata, ocasionada por quem devia evitar-nos confusões? Quem eram Ruiz e Rita? Porque nos visitavam?  O mundo de novo derruía e ali estavamos, indocumentados e à sua mercê: a prisão, as fronteiras, o medo, a mulher na seara, o garrote, a perca, a grande perca, o não saber como, porquê ou onde, o caos, o barbeiro, o seu riso, e a navalha volteando  no ar "Ah! Ah! Cá? Cá tudo é possível!
Cá xias!
A voz de baixo calou-se. Ruiz, encostado de novo à parede, tornou a escorregar. Rita imitou-o e os dois, com o torso direito mas de rostos caídos, eram duas marionetas deitadas fora, depois de intenso uso. No desejo de que nada mais sucedesse, que as surpresas acabassem de uma vez por todas, que a rotina retomasse o seu domínio, mesmo que o imposto a pagar fosse o tédio ou o enjoo, peguei numa manta e cobri-os. Como actores em fim de representação Rita e Ruiz aconchegaram-se para dormir.
De manhã, ao acordar, Ema e eu estavamos sós e o quarto apresentava-se limpo e arrumado. Fora um pesadelo? Coisas há que sucedem numa outra realidade e não são menos eficazes. Teria sido assim naquela noite? Os diabos insistiam em inquietar-nos?
Dois dias mais tarde um rapaz, da parte de Mme. Nelma conduziu-nos à gare do Norte. Entregou-nos bilhetes de combóio e disse:
- Descem em Maubege. Lá na gare alguém perguntar-vos-à se vão para a Suécia. É o vosso contacto. Sigam-no.


































Na cosmopolita gare do Norte, cheia de gente atarefada e alheia, cada qual despreza, com a indiferença das estrelas, o que não lhe respeita. A multidão saía e entrava nos combóios, tabuletas apelavam Mr. Robinson ou chamavam  ao "Hilton Hotel" e todos, ou caminhando de um lado para o outro ou  parados, obedeciam a um deus esteta, cujo único interesse era a excelente apresentação das coisas, fossem elas um desastre, o roubo pelo carteirista ou ainda a nossa fuga. Na gare do Norte a vista curou-se-nos dos apeadeiros minúsculos da imensa Espanha onde o destino ficava sempre na estação seguinte, salvo se a polícia ou o génio obrigassem à fuga.
Tomámos o combóio, viajámos na paz de quem tem o necessário para fazê-lo, e descemos asisadamente em Maubege. Cirandando pela gare já desesperavamos de que alguém nos encontrasse, quando um polícia se nos dirigiu:
- Allez-vous pour la Suede?























Ninguém nos tinha dito que o nosso guia seria um agente duplo mas também ainda ninguem afirmara que as coisas eram simples, lineares ou transparentes. A prática não o confirmava e, tendo eu trocado o deus familiar por entidades raras e de culto estranho, era normal que, a partir de certa altura, a luz fosse já escura e o Sol cinzento, se outros prodígios não tivessem ainda lugar. Na experiência da vida até a morte é uma sua declinação. Mas, analizadas as coisas com a calma que a distância permite, também é verdade que,  carentes de poder como estavamos, ninguém melhor que um polícia para nos subtrair às suas devassas. A não ser que o homem de olhar bondoso e gestos suaves que se nos apresentava como o contacto combinado com Paris, não fosse um chui mas uma sua máscara, cuja missão evitaria a atenção sobre as nossas.
- Tenho ali o carro. Desculpem a demora. Allons? - Connosco na viatura e já em andamento, explicou: - Vou conduzir-vos a Mons, a primeira cidade belga. La tomarão o combóio para Antuérpia, donde parte, ao fim do dia, uma camioneta que leva trabalhadores holandeses de regresso à Holanda. Atravessa a fronteira sem paragem e fica logo em Breda. Ai apanham o combóio para Amsterdam.
Na fronteira franco-belga, os funcionários que nos observaram  bateram a pala ao nosso condutor e desejaram-nos boa viagem. E antes de nos abandonar na gare de Mons, com os bilhetes até Antuérpia, ele ainda nos prodigalizou dinheiro de bolso para cafés.
As coisas sucediam como em certas fitas de cinema e, com surpresa, descobria o seu realismo.



























A jornada no lado belga chegara  de facto ao fim e os nossos companheiros holandeses da camioneta para Breda, faziam um barulho tremendo dizendo coisas que não percebiamos e que nem eles talvez entendessem. Eram  uma necessidade de fala, um sinal de qualquer coisa que não se tinha calado, que recusava fazê-lo, e que dizia, comentava, contorcia-se, tirando vingança das horas passadas por conta de outrém.
Tal como o polícia dissera, a camioneta não parou em nenhum posto fronteiriço, nem no belga nem no holandez. O único senão foi que, ao chegarmos à gare de Breda, soubemos que o comboio para Amsterdam só partiria pelas seis horas da manhã seguinte: havia que passar ali a noite.
O tempo ou nos embebe e alaga, ou comprime e suga no seu buraco negro. No caso, retirados da utilidade das coisas, colocados na prateleira de um enorme domingo, voltávamo-lo a ter em excesso, devendo queimá-lo num auto-de-fé onde nos ia a vida.
- Passemos a noite numa discoteca. - Sugeriu Ema. Mas era cedo para bater à porta da "Fenix” - “The “Fenix” is really good" - Indicara o caixa de um self-service, citando a boîte com os olhos em faísca, como se, também ele não sobrevivesse à escravatura, sem a ressurreição programada para depois do encerrar das contas - e, sentados num pub, assistimos à partida dos clientes que foram a casa jantar e ao regresso doutros, senão os mesmos. No entretanto tinham-nos acompanhado  os bêbados confessos, a quem o vício desnuda e já não importa a composição das coisas, o afixar a máscara de sóbrios ou a aparência de todos os dias: os grandes decadentes que, quanto mais bebem, menos se perdem, olhando a colecção de copos com a desesperança de quem não alcança a ilusão e fica irremediavelmente colado ao vício.
Um dia talvez se curem mas no entretanto lambem o tapete.





 A  “Fénix"...
Talvez  o símbolo se adeque a este meu esforço de levantar os actos, cingir os dias, como se pudesse deitar fora o que não presta, guardando a boa memória, escrevendo a história certa, sem engamos nem falhas: a “Fénix"... Tudo uma vez mais como se o antes não tivesse acontecido ou a ingenuidade nos não impedisse a vida, o seu pleno aproveitamento. A mim nunca ninguem disse nada, aprendi tudo sozinho - E a frase, ouvida algures, lembra os pais que foram, a tia que não esteve, as casas que não recolheram
Na pista da “Fénix” os dançarinos mantinham-se há três mil dias dançando e a música - sempre a mesma - rodava-os  como a bonecos de feira, a quem atiramos  bolas de ódio na impotência do alvo não ser nós mesmos, o vizinho, ou a própria feira.
Na “Fénix” comemorava-se o tempo sem memória nem conto, a inexistência com a sua desnecessidade de esperança, e o momento prolongava-se nas vísceras do mito, no ritual dos corpos, na dança arcaica, na matriz. Não estavamos vivos? Não éramos? Não tínhamos a certeza dos sentimentos e das sensações? Que mais queríamos? A Suécia não seria em nós?
Não.
Ainda não.
O perdão não pode descer sobre o verdugo numa feerie de beijos e palmas como quem não conheceu os tormentos da roda, a dureza dos remos, ou a humidade na  gruta de Tantalo.
Na "Fénix", talvez por influência do nome, talvez por coisa nenhuma ou, ainda, por nada, por esta minha necessidade de fazer história, de tirar ao passado o lacre dos dias, talvez pela teima em que a morte não leve tudo ou, ainda, porque  chega um dia em que o cansaço se transmuta em risos e vivas, e a viagem, travessia,  peregrinação, salto ou  voo para o outro lado, deixam de fazer sentido, mas na Fénix, lá em Breda, regressámos finalmente ao momento, ao presente do indicativo do já, aqui e agora.
Na Fénix, fartos de sofrer, a pista da dança foi-nos a meta e o calvário para o exílio virou  "passarelle", com os desterrados,  ao som de badalos e foguetes, a dançarem o degredo.
- Danças?
E não deixámos mais a pista, numa bebedeira de música e ritmo,  de perda,  sobretudo no que, desde há tempos, não éramos: nós mesmos. E foi a união,  o reencontro  sem apitos ou fronteiras, guardas ou medos, das noites famintas de estrelas, a luz láctea do esplendor. Finalmente.
Páro.
Páro de novo.
Na “Fénix” as palavras tomaram ainda conta da história e, no auge do esgotamento, tu disseste:
- Na prisão denunciei-te.
Páro. Páro de novo.
A história torna-se outra.



























Até ali nenhum de nós falara de Caxias. A imediata convocatória para a guerra, a decisão da fuga e a sua  preparação, tinham-nos esgotado o tempo do reencontro. E talvez um certo pudor, ou o desejo de esquecer, nos impedisse também a fala. Mas em Breda, na discoteca, na fornalha da pista, no unto dos suores, bem  juntos nos corpos, dentro da música, no meio do extenuamento, tu confessaste:
- Sim, amo-te. Mas em Caxias denunciei-te.
Eu nunca tinha tido qualquer actividade política. Pensar que o meu ataque ao ministro fosse premeditado era perverso e nem mesmo sabia estar-lhe destinado, Patrício é que tratara de tudo. Mas tu, a chorar, repetias:
- Denunciei-te, meu amor. Denunciei-te!
O mundo pode desagregar-se tão depressa como a folha seca que os pés pisam. O riso do barbeiro e os gritos com que me espancavam: "Estás para aí com coisas e já sabemos tudo, estás a ouvir? Tudo!" assaltaram-me de novo. E no entretanto tu choravas:
- Perdoa-me. Ainda não tinha tido coragem para to confessar. Perdoa-me. Quis provar-me que era capaz de fazê-lo. Talvez sucumbisse à tortura e, aí, teria sido a dor. Assim... Assim foi-me outra prova. A última. Fui capaz. Não foi a tortura... Fui eu, logo ao príncipio. No primeiro dia daquilo, ainda com a lucidez toda. De livre vontade. Para superar o amor que te tinha. Para não me deixar subjugar. Para vencê-lo. Perdoa-me! Perdoa-me! Amo-te tanto, tanto! Porque ganhaste. Tu ganhaste! Amo-te. Amo-te. Perdoa-me. Sou tua. Perdoa-me.










































Amsterdam pareceu-nos uma cidade alheia mas eramos nós os distantes. Na direcção que o polícia nos dera não nos esperavam e insistimos num telefonema para Mme. Nelma, em  Paris.  Não queriamos a Holanda. A Suécia, mais do que nunca, tinha-se tornado urgente: queriamos recomeçar, esquecer, esquecer tudo.
Mas não foi assim.
Embora quisesse perdoar, a memória impôs silêncios e, para não ouvi-los, embebi-os em alcóol. Aliás, aquando da tua revelação logo o propus: "Celebremos a Vitória do Amor!" e esvaziámos a primeira garrafa.
 Ao  contrário de Paris, onde não tinhamos deixado a mansarda, em Amsterdam saímos todos os dias e sobretudo à noite. Mas nunca ninguém nos perguntou por documentos ou quem éramos. Na verdade também não o sabiamos. De regresso  ao hotel, adormeciamos bêbados e acordavamos para nova noite.
A partir dali seria sempre assim.
De Valentino e Marilyn restam os destroços.






























Que a tinta sugue o papel como magma que a tudo afoga. Ver de novo com a distância que a narrativa exige, cegar as meninas dos olhos, sufocar o cheiro e o grito na boca. Nada mude. Eu sou eu, tu és tu, Ema deve ser ela, eu um outro e a intriga faz-se no papel como mandam os manuais da boa escrita, o sujeito, os predicados, os... Porque a história não chegou ao fim, ela.
Ao hotel, onde nos hospedaram, chegou finalmente um aviso: num tal dia seguinte deviamos estar prontos. E de facto, na hora aprazada, um casal foi levou-nos de carro até nova auto-estrada
- Entraremos clandestinamente na Alemanha - disse o homem. - Depois tomam o combóio para Flensburgo, junto à fronteira com a Dinamarca. Aí espera-vos novo carro.
A viatura trocou a auto-estrada por um caminho secundário, depois por outro, por outro ainda, e encontrámo-nos numa vereda estreita, de terra batida, rodeada de arbustos.
Entardecia.
Os raios maduros do Sol trespassavam a folhagem e tingiam o carro de vermelho. O destino pintava-nos a fuga a sangue? Ao lado do condutor, a mulher virou-se para trás e finalmente rompeu o silêncio:
- A Suécia não é possível.
E logo o homem, cuidando sempre do caminho, repetiu como se não tivessemos ouvido.
- The Sweeden is not possible.
Não respondemos e a mulher tornou:
- Vão para a Dinamarca.
Encostaste-me a boca ao ouvido e perguntaste:
- Sabes onde é?
Que importava!
























Na gare de Flensburgo, às sete da manhã, não havia ninguém à espera.  "Se não vos procurarem á chegada  é que aparecerão pelas sete da tarde." - haviam dito.
Na cafetaria que acabava de abrir um homem de aspecto ensonado explicou-nos, num inglês aos soluços, que o padeiro ainda não chegara e a máquina do café também não aquecera. Agarrados um ao outro, como se por causa do frio, demo-nos a nova espera. Faltavam 12 horas para o encontro e não tinhamos pressa. "Em Flensburgo os dinamarqueses atravessam a fronteira para comprarem electro-domésticos e os alemães vão ao outro lado por causa das "sex-shopes" - haviam igualmente dito os holandeses.
(Que interessava?)
Um rio.
As margens, ao contrário das que ladeavam o Gualdaquivir, em Badajoz, eram arrelvadas. Propuseste um piquenique. Pelas onze horas - depois de voltas sem fim ao burgo - adquirimos ovos cozidos, pão, fiambre e fruta. Vinho. E voltámos ao rio. Grupos de famílias estendiam-se já no verde das margens, em lazer de dia santo: era de novo um domingo. Crianças corriam pela relva e  uma bola veio-nos parar nas muxilas.
- Entchuldigung! - Pediu uma petiza. Abraçaste-a lembrei o que um dia disseras: "Se alguma vez te amar quero ter muitos filhos." A criança deixou-nos e. no silêncio que se cavou, passei-te a garrafa. 
Não haviamos trazido copos.
A uma da tarde, as duas, as três...
Surgiram as famílias que só tinham saído de casa depois do almoço. Um grupo de miúdos atirava pedras à àgua. Olhei-os como se os não visse. O meu pensamento, mal afeito às sucessivas ressacas, afastava-se para algures. A meu lado dormitavas e observei-te. Era tão bela que fazia mal olhar-te. O vinho acabara e deixei-te um bilhete. "Faço compras". No caminho entrei num bar e noutro ainda. Por fim, não apeteceu voltar. 
Algures bateram as cinco horas e finalmente apareci. Não disseste nada, estendi-te a nova garrafa e lá arrumámos os despojos do piquenique. Depois, visitámos ainda mais bares. Às sete da tarde estavamos de facto na estação. Mas bêbados.
- Are you the fugitives?  -  Perguntou o homem que se nos dirigiu. - Impossível vir de manhã. Houve um problema. - Tiveste um movimento de desiquilíbrio e ele apoiou-te. - Talvez - propôs o indivíduo - seja boa ideia tomarmos um café...
Assim foi, e, um pouco mais sóbrios, metemo-nos num  automóvel.
A noite caíra. Já na auto-estrada, o condutor apontou umas luzes no caminho.
- Além é a fronteira dinamarquesa. Daqui a  pouco páro e saem.  - Fez uma pausa para confirmar que  o ouviamos e prosseguiu: - Durante cinco minutos seguirão pelo bosque na direcção que vos indicar. Depois chamarão "hund!" e, do outro lado, alguém dirá também “Hund”. Decorámos a palavra.
- Hund!  - Fiz eu.
- Hund - Experimentaste tu.
- Significa "cão" em dinamarquês." - O condutor fez um sorriso que pretendia incutir confiança e acrescentou: - O símbolo da fidelidade.
A noite tinha coberto tudo e, aqui e além, viam-se as luzes de casas provavelmente em hora de refeição. Um lar como tanto tinha desejado. A Suécia!
Tal como avisara, o condutor parou. Desaparecemos no meio de um bosque e ouvimos o motor do carro a ir embora.
A embrieguês deu lugar a uma lucidez má. Por entre o recorte das árvores, à minha frente, a lua iluminava-te a silhueta.
No passeio solitário em Flensburgo comprara uma navalha e uma corda: depois, matar-me-ia a mim.  Nunca mais teríamos que satisfazer este ou aquele senhor, vestir as suas cores ou dar a vida pela sua bandeira. Os nossos corpos, que nunca nos tinham pertencido, repousariam numa terra finalmente de ninguém, entre duas fronteiras. Sem dono.
Não queria falhar o alvo mas voltaste-te e surprendeste-me: sob o luar o teu rosto era ainda mais cândido.
- Nunca perdoarás, não é verdade? - Disseste com uma indiferença que me toldou. - Talvez não me ames tanto como queres. – E, num movimento surdo, ajoelhaste no chão agarrada aos meus joelhos. - Amo-te. Amo-te muito. Mas eu preveni-te: o amor perder-me-ia.
Deixei cair a faca e abraçado a ti chorei, chorámos. Onde estavamos? Que fazíamos? Para quê?
- Hund! - Rezámos por fim baixinho
- Hund! – Disse uma voz do outro lado.































O novo guia era uma mulher com cerca de sessenta anos e, à luz da sua lanterna, atravessámos sucessivos quintais, até desembocarmos numa rua de vivendas. Ela abriu a porta de uma:
- It's hear! - E desejou: "Welkomment to Danemark!"
Em vez do jantar aceitámos café com biscoitos. E no dia seguinte, pela manhã, partimos para  Härhus.
- "Em Härhus espera-vos o "Comité de Recepção"  - dissera a anfitriã.
Ainda naquela noite quisemo-nos amar mas não consegui.
Pensei ser do vinho.








































Na gare de Härhus um homem apresentou-se-nos.
- Chamo-me Amílcar. Apontou outro que fazia compras num quiosque e disse - Aquele além é o Carlos. - Este chegou junto de nós, e depois de nos cumprimentar, referiu o jornal que vinha espreitando desde o quiosque: - Só falam das ditaduras quando lhes convém! São uns filhos da puta!
No carro, onde tomámos lugar com Amílcar ao volante,um dístico no "tablier" dizia "Tudo pela  revolução!".
A revolução...
Os estudantes que, lá atras tinha frequentado, os que se exercitavam na tortura, tambem falavam em revolução. E eu? A  vida dera tantas voltas desde a noite em que cerrara as veias para ver até onde poderia ir. Revolução... Que me interessava ela? Sim, ganhara a aposta contigo mas a que sabia o prémio? Hoje talvez o conseguisse saborear mas naquela altura éramos tão novos...
O carro parou junto de um prédio de três andares e, no terceiro, entrámos para uma sala onde havia um grupo de homens.  Carlos fez as apresentações. Emílio, o mais velho, de longas suiças brancas, mandou-nos sentar. No entretanto uma criança veio a correr para junto de um  dos circunstantes. Pareceu que lhe chamava pai e logo uma mulher veio buscá-la. Emílio deu-nos atenção: 
- O nosso comité encarrega-se da recepção aos refugiados portugueses - E no mesmo tom acrescentou: - Fiquem  a saber que isto é uma grande merda! - Alguns dos presentes riram e Emílio, sempre sério, prosseguiu: - Amanhã vão ao ministério dos estrangeiros, em Copenhaga e levam uma carta do comité para eles saberem que estão protegidos. Se houver problema  metemos um advogado. Mas  todas as semanas chegam dois ou três de lá de baixo e ate agora tudo se tem passado bem. Perguntou:
- E Portugal? Como está aquilo? A revolução é para breve?
A pergunta foi para ti e repetiste o "Para breve?", como quem se certifica de que ouviu bem. Mas que sabiamos da revolução? Nunca fora tema que falassemos.
 - Há algum tempo que não temos notícias directas. - Disse Carlos a justificar a pergunta de Emilio.
Fez-se um silêncio desagradavel e intervi.
- As coisas acontecem quando menos se espera! - Emilio olhou-me como se eu soubesse mais do que parecia e tentei desfazer-lhe essa impressão. Sem saber bem o que dizia, acrescentei: - À vista desarmada não se vê nada.
Ele anuiu:
- É verdade. Mas cada vez há mais gente a recusar a guerra... 
Uma mulher entrou e falou em dinamarquês com um dos homens. Ele desculpou-se:
- Tenho de resolver um problema com o meu miúdo. Já venho.
Na sala o interrogatório continuou:
- Estiveram presos?
Qual seria a reacção do grupo se dissessemos que tinhamos sido prostitutos de luxo?
Mas alguém veio em nosso auxílio porque clamou:  
- Deixa-os lá! Devem estar cansados! Vamos mas é escrever-lhes a carta.
Fizeram um rascunho, adaptando a minuta às nossas identidades e uma mulher avisou que o jantar estava pronto.
Numa dependencia contigua uma toalha branca cobria uma mesa comprida. Tu e eu sentamo-nos frente a frente, na fronteira entre a zonas dos homens e a das mulheres com as crianças.
Mas mal começámos a comer entrou um individuo esbaforido. 
- Camaradas! Estamos a ser dizimados! A Pide caçou o Oliveira e ele "piou" tudo. Já foram presos mais de vinte dos nossos! - Deixou-se cair num assento, como se as suas notícias fossem as mais pesadas do mundo e Amilcar, levantando-se, exclamou:
- O Oliveira? Não é possível! Há que verificar a informação!
Lembrei Caxias e as suas salas do sono. O Oliveira fora-se abaixo? Em que estado? Em que altura não aguentara mais? Ou teria falado logo de inicio, como... Não gostei da lembrança e entretanto todos os homens tinham deixado a mesa. Um gritava: 
-  Traídor! Mal o apanhemos cá fora ele vai saber o que é a justiça revolucionária! - Nesta altura encostaste-te para trás na cadeira e deu a ideia de que desmaivas. Fui em teu socorro e uma mulher enlaçou-te.
- She is tired. Let her with me – E, cheia de carinho, levou-te para fora da sala. No entretanto o "Comité" andava de um lado ao outro na sala e todos insultavam o Oliveira, mesmo o Emílio que primeiro o defendera.
- Foi-se abaixo. O verme foi-se abaixo! Tem que ser morto para exemplo! O novo homem por que lutamos exige-o!
Vim ao corredor na tua procura e nesse momento tive a certeza que fora o episódio do Oliveira que te impressionara. No fundo, terias preferido que eu não ganhasse a aposta e a queda do Oliveira lembrara-te a tua. 



























Em Copenhaga, no Serviço dos Estrangeiros, onde nos apresentámos à manhã seguinte, indocumentados e requerentes de exílio, interrogaram-nos cerca de três horas. Relatámos a passagem clandestina das várias fronteiras desde França, segundo a versão que o comité nos tinha ensinado e, finalmente, fomos conduzidos à Pensão Ost. Nesta o Estado dinamarquês hospedava os estrangeiros  que requeriam refúgio enquanto não lhes comunicava a resposta.  Os hóspedes na sua grande maioria eram do Leste e diziam quase todos a mesma coisa.
- Comunismo? Comunismo é o governo da miséria! Quero é trabalhar para ser rico! Comprar uma avioneta!
Uma manhã, com um grupo doutros exilados, embarcámos numa camioneta para Odense.
A nossa Suécia.














































Breda.
Ontem actuámos na "Fénix", lá onde uma noite as coisas tanto mudaram que nada mais foi possível. Lembrava-o enquanto em redor da nossa campânula o público gritava e aplaudia.
Afinal nem te perdoei, nem tu alguma vez aceitaste a tua perda. Mas precisávamos um do outro: eu para levar a cabo, com a tua ajuda, a vitória do Amor e tu para sentires que não caíras em vão. Há qualquer coisa de errado nisto mas as coisas foram assim mesmo: uma vida não corre por carris areados.
Do alcóol passámos a drogas mais duras e a sensação de viver todos os dias o último, ajudaria a suportar os seguintes. Agora ai estás. Como se dormisses. 
"Over-dose" - Dirão os médicos...
Paulema. De Paulo mais Ema. Passam hoje os quinze anos da minha aposta. Fim.
    







Mem Martins,   1982