terça-feira, 21 de fevereiro de 2012


Outrora…
Viviamos presos a um bocado de terra e trabalhavamos para o Senhor que tantas vezes se dizia representante daquele Outro que nos vigiava do Céu. E se o Senhor – o dono da “nossa” terra - conquistava mais domínios, nós passavamos também a pertencer-lhes. E se ele falecia, íamos automaticamente para a posse dos seus herdeiros.
Assim a vida corria, o Senhor reproduzia-se, gerando outros senhores,  e nós imitavamo-lo, gerando  mais servos.
E agora?
Em vez de monarquias temos multinacionais...
Ah sim, já ouço dizer: mas que raio, hoje sou livre!
Livre?
Acaso pode correr para o aeroporto e ir onde quiser?
Claro, alguns entre nós fazem-no…  

domingo, 12 de junho de 2011

O concurso das marchas populares de Lisboa



Lembro as marchas no tempo do fascismo. Eram a única manifestação lisboeta verdadeiramente popular com milhares de pessoas na rua do Ouro para vê-las passar. O desfile fazia-se muito lentamente – chegava a uma hora o intervalo entre cada marcha - e havia pessoas que, às oito da noite, já traziam bancos de casa para se sentarem no passeio da rua.

Entretanto bisbilhotava-se com o vizinho (proibida a conversa política todo o diálogo caía na coscuvilhice) diziam-se chalaças (obrigatoriamente "inocentes") trocavam-se impressões com o polícia de plantão, em regra  medonho e façanhudo - pelo menos é assim que vejo a polícia da época na minha memória de catraio - e, por fim, regressava-se a casa, madrugada muito alta, depois de uma barrigada de convívio.

Não há saudade alguma daquelas noites.

Mas que são hoje as marchas de Lisboa, senão uma manifestação de terceiro-mundismo?

Senão, veja-se como se fazem aqui e agora:

As juntas de freguesia/colectividades populares abrem inscrições para marchantes/convidam uma figuras mediáticas do vedetismo nacional para padrinhos e madrinhas do evento/chamam os ensaiadores do costume/fazem os arquinhos e os balões da regra/compõem as cantigas da norma/ensaiam os passos de dança costumeiros e, com tal receita, lá marcha tudo avenida abaixo!

Quanto aos assistentes é assim: a Câmara manda erguer dois grupos de bancadas, suficientemente separadas para não haver misturas: uma de “honra”, com cadeiras forradas a vermelho e na outra, tudo suma-a-metal -a grande massa do povo, esse vê de pé!

Este ano, por exemplo, são seiscentos e oito lugares de assento rijo e, trezentos metros adiante, mais 1000, mas com direito a modornias: assentos com almofada e a zona da avenida que lhes fica em frente profusamente iluminada, de modo que os marchantes quando lá cruzam, brilham e dançam, de facto. Os outros, o povo que não tem a sorte (pois de “sorte”, “destino” ou coisa assim deve tratar-se!) de sentar comodamente, esses milhares vêem as marchas às escuras, isto é, à luz dos candeeiros da iluminação pública.

Se isto não é terceiro-mundista, característico de uma democracia de fachada, onde uns tantos são mais tantos que os outros, não sei o que será!

Mas veja-se uma alternativa para o evento mais popular de Lisboa e que tem condições para sê-lo, também, de Portugal.



a) Cada marcha é patrocinada pelo comércio da área que representa.

Este comércio tem direito a representação no desfile, encabeçando a marcha em carros alegóricos servidos por figurantes.

Neste contexto a marcha do bairro desfila em último lugar e cumpre o papel de “vedeta”, precedida por publicitário – e rico - séquito.



b) A junta de freguesia/colectividade responsável pela apresentação do evento abre concurso para apresentação de propostas para a respectiva marcha. Estas propostas dirigem-se a profissionais:



- Coreógrafos

- Compositores

- Cenógrafos

- Figurinistas

- Encenadores

E contrata os que apresentarem as melhores ideias para a respectiva especialidade.

c) Os padrinhos e madrinhas, esses, são escolhidos entre vedetas internacionais, sejam ou não portugueses.

d) Colocam-se bancadas e projectores ao longo de toda a avenida da liberdade para se verem bem e com boa luz  os marchantes.

e) venda de bilhetes para as bancadas com direito a serpentinas.

Observação: o marchante tem direito a entradas gratuitas para o seu clã.



Resultados esperados:

- Reconhecimento de talentos artísticos/aumento da qualidade artística do evento.

- Internacionalização do “Concurso das Marchas Populares de Lisboa”.

- Fim da confrangedora realidade terceiro-mundista das marchas, tal como se efectuam hoje em dia.



... E, se o Leitor(a) não crê no que ora digo, saia à rua e veja in loco as marchas logo á noite!

De pé, claro, isto é, às escuras!



sábado, 16 de abril de 2011



“OBRA LIGHT

LIGHT OBRA”

(escrito em Janeiro de 2002)




"Ligth" no dicionário de inglês-português da Porto editora, de 1987:

1) luz , claridade, esclarecimento, vivacidade, aspecto, aparência e, em sentido figurado, estrela luminar, pessoa proeminente, inspiração, clarabóia, janela ou a parte mais clara de um quadro.



2) Leve, claro, ligeiro, vivo, activo, frívolo, trivial, fácil, alegre, gracioso, elegante, delicado, brando, pouco forte, átono, de uma maneira leve, levemente.



3) Particípio passado de to lit: incendiar, pegar fogo a, alumiar, cair, iluminar-se ou, em sentido figurado: animar-se, sair, descer de (carruagem), desmontar, cair.



A natureza projectada num pacífico pôr de Sol, a alvorada de raios alegres e familiares, a chuva miúda que mal convida ao abrigo, enfim, o ameno e o comedido entram no elenco do nosso tema mas não o vendával e muito menos o caos.

O ligth condena-se a uma fala espumosa que nunca mergulha no conteúdo do líquido, na sua espessa profundidade.



O gosto da superfície.



Conversa sem âncora, á deriva, ao sabor do momento, da "patine" e do seu deslizar. O dizer por dizer, mantendo a conversa no fio da língua, sem nunca a chamar pelo seu nome para que nem de si tenha consciencia.



A consciência não é ligth.

A premência da morte preocupa-a e o ligth não mata. Distrai, desvia, rodeia mas nunca atinge o centro. Eterno movimento em volta, o ligth é uma criança que recusa crescer e, no entanto, não fica monstruosa ou, se arrisca a deformidade, o mal torna-se num atributo positivo, à semelhança dos "castrati" que compensavam a deficiência física numa atraente voz.



A natureza humana é muito pouco ligth e daí a contradição.

O homem e a mulher, nados na fábrica ocidental, anseiam por ser ligth, por se deslocarem à velocidade do som e, se possível, estarem em múltiplos lugares ao mesmo tempo, como se não possuíssem espessura ou passado, fossem livres do peso e da memória. Mas a velocidade das experiências não se compadece com um organismo que possui o seu próprio ritmo e todos já passámos pela desagradável experiência de abraçarmos B enquanto lembramos A. Sensação nada ligth.

O passado não é ligth, por mais que a colecção dos dias tenha sido uma amálgama de superficialidades.

Haverá uma marca leve?



O light é...

O ligth é a borboleta a esvoaçar que nunca vemos morrer.

O ligth, enquanto escrito não pode aumentar indefinidamente. "Guerra e Paz" de Tolstoi não é ligth, assim como não o será "Em busca do Tempo Perdido" por mais ligth que hajam sido as jornadas de Proust. Mas uma obra ligth nunca terá quinhentas páginas, e, a possuí-las, apresentar-se-ão em tão pequenos trechos que se lêem em escassíssimos minutos, como quem engole um boi em spray, de modo a não lhe sentir a dimensão.



O ligth é digestivo e consumível, com tudo o que a palavra implica. Ou seja, substituível, sendo que a velocidade de consumo de um objecto é, em regra, função da nossa capacidade em substituí-lo.

Num mundo onde as pessoas, por fazerem de peças de máquina, são consumíveis como qualquer produto que sai das suas próprias mãos, tornam-se tambem elas lixo mal a máquina as dispense.



O estado de objecto atinge-se por um alheamento da complexidade humana e, no mundo-consumo, o objecto-pessoa tem tanto êxito como qualquer outro artefacto ou mercadoria. Tal estado é o ideal para quantos pretendem o sucesso pois, tornados seres ligth - sem peso nem raízes - produzem independemente do meio. Se Antígona diz "nasci para amar" o ser ligth afirma "nasci para voar"



O ligth não possui essência ou o seu âmago compõe-se de evanescência, uma fragrância que permite o tom mas não a base. Sem idade, passado ou futuro, consome-se no instante, tal como o retrato de Dorian Gray, fixo num eterno presente.

O ligth disfarça o insustentável ou, pelo menos, adia-o numa sucessão de "liftings" que afixam no rosto, não as rugas, mas as sucessivas fugas ao tempo.



O tabaco é ligth porque profundamente canceroso.



Esta dualidade, este verso e anverso da mesma realidade: de um lado o permanente e, do outro, o acessório e o "gadget", de uma banda o peso e, noutra, a ligeireza, ganha sentido num contexto de dualidade, cujos termos mais conhecidos são o espírito e a carne. Ligth, naturalmente, só o primeiro e daí que a segunda se sujeite a tratamentos com o objectivo de se transmutar tal como outrora os cilícios espiritualizavam o corpo que submetiam.

“Corpo ligth” - dirá a publicidade e todos o entenderão.



Um corpo ligth não tem outro fazer que não seja o da fruição. Nunca será, como diria Foulcaut, um "lugar de castigo". Daí que a magreza seja uma obsessão dos estilistas pois o interior - o sangue, as excreções, o aparelho digestivo, etc - reenvia para o domínio da necessidade e esta não é ligth. Comer sim, mas bombons, vestir sim, mas peles - nas quais a função de aquecimento, embora suprida, logo cede à da ostentação. O corpo é um lugar de ambiguidades só possivel de levar à rua depois de embalado e domesticado. Todos já fomos crianças e sabemos o que significa. "Se não te portares bem, não tornas a sair."



Nada mais ligth que uma passagem de modelos cujo domínio não vai além de uma estação. A moda renova-se num constante desespero contra o tempo, travestindo-o sem nunca o reconhecer. O modelo, embora exiba produtos cujo destino se realiza no social, existe fora do espaço e do tempo, numa eterna juventude, numa permanente "passarelle", num "illo tempore" longínquo e reservado.

O canal televisivo mais ligth é o que permanentemente exibe passagens de modelos. Em todo o caso o mais irreal ou o mais fantástico no sentido da lenda: nele o mito renova-se a cada nova investida do modelo, sempre jovem, sempre produzido, sempre impecável: a eterna juventude, o Olimpo e os seus deuses.



Vestir light é isso mesmo: trajar ligeiro, pôr, inclusive, com o smoking umas chinelas (haverá maior contradição do que enfaixar o corpo e, depois, colocar os pés à mostra?) Mas o pé desnudo torna o seu utente mais leve e confere-lhe um sinal que funciona como abertura (light) em relação à carga uniformizadora do fato.

O light funciona como ornamento descongestionador de um peso, ou válvula de escape a que não se quer, ou pode, pôr termo.

Ligth total seria o nu? Impossível ideal: o nu é mesmo nu e ostenta o peso da carne.



A moda light, superficial e "despreocupada", veste os cargos de mais alta gravidade, os que decidem do destino de milhões de seres humanos, e os seus representantes apresentam-se, não como outrora, de elmos e protegidos por escudos ou carregados de dragonas, mas fingindo pertencer à esfera do jogo e do aleatório: um presidente americano, no seu rancho, deixa-se fotografar em “jeans” enquanto não decide com os seus pares da divisão do mundo.



Mundo de brincar, onde a brincar se mata, com uma pistola comprada na loja da esquina e que, na primeira oportunidade, o cidadão Smith leva para o mercado e se diverte a disparar.



Morte e vida talvez não se tenham tornado mais frequentes do que outrora mas a sua transmissão pelos meios de comunicação, a sua apropriação por uma "sociedade cuca", sociedade em que todos cucam todos e de muita coscuvilhice se alimenta, tornou o acto de morrer banal, corriqueiro, um empecilho, enfim, desprovido de qualquer significado transcendente. Morrer abraçado a uma bomba que se acredita que há-de melhorar o mundo surge, aos olhos do indivíduo desde cedo martirizado por uma propaganda odiosa - mas eficiente porque apoiada em factos - como uma benção, um antídoto contra o anonimato, a salvação. E, ao mesmo tempo, a transmissão mediática dos efeitos do seu acto, contribui para banalizar ainda mais a morte, inclusive a sua.



A "gaffe" - ou a crise - são o arranhão no verniz ligth, a quebra na linguagem-cifrada do "como está? bem obrigado". E porque o corpo, com o cortejo das suas necessidades e desejos, é tudo menos ligth, ele está, na sociedade que se pretende permissiva e ligth, sob constante vigilância.



Os corpos têm de ser um só, no caso um corpo jovem, tendendo para a androgenia púbere. Que a exacerbação do estado infantil acarrete um acréscimo de pedofilia, à qual sucumbem os já de si propensos ou os elos mais fracos da cadeia, não importa. É apenas o preço da ilusão numa eterna juventude de uma sociedade também em deliquescência, pois que fatalmente em renovação. E quanto mais o mundo se carregar de sombrias ameaças, permitindo a obliteração das melhores esperanças, mais a criança encarnará o modelo, o ideal, qual membro indefeso e pronto, como outrora, a ser oferecido ao deus que se apazigua.

No púbere, o cidadão, envergonhado e culpado pela destruição que o seu domínio envolve, escamoteia a própria responsabilidade.

A pedofilia é o casamento obsceno entre o mal e o bem, o afogamento, no corpo da vitima inocente, de uma culpa maior.



O mito Marilyn Monroe não reside numa sábia mistura de mulher e criança?



A luz jovem



Ser ligth é ter a agilidade do que ainda não criou raízes, a despreocupação do que ainda não despertou e paira no mundo do sonho.

A juventude é por definição ligth, pois, por mais

infeliz que seja, o status de jovem assemelha-se a uma “graça”, algo como a garantia que protege um objecto recém-adquirido, cujo defeito pode ser remediado sem prejuízo do consumidor. Jovem é o que, se souber o que mais tarde saberá, deixa imediatamente de sê-lo. Há na juventude um conhecimento parcial das coisas, um sabor ainda não completo pela gama da experiência, uma paleta onde faltam, não, necessariamente, todas as cores mas alguns tons, aos quais só se acede pelo trabalho sobre si mesmo, pela elaboração de uma longa experiência. Nem todos os adultos a adquirirão mas o jovem de certeza que não a possui.

A juventude, saborosamente inconsciente e impulsiva, é ligth graças a uma cesura natural que a própria idade exerce, e, sob o seu único comando, o mundo sucumbiria de frenesim e esgotamento.



No entanto, a dupla característica de jovem e ligth atraem precisamente as forças do peso e da consistência, da responsabilidade e do arcaico.

Como se, por osmose, elas pudessem desviar a luz jovem em seu benefício, levando-a ao moinho das suas próprias motivações, oferecendo sangue novo - e ligth, ou seja, ainda não contaminado por um destino - aos seus desejos, dando uma aparência de novas a tantas causas caducas. O sangue do bebé - dizia-se outrora - serviria ao elixir da juventude.

A juventude, o seu modo de ser ligth, atrai, pois, engrenagens nada ligthes, que a colocam ao seu serviço e, nos casos mais radicais, acabam por exterminá-la.

A pedofilia e a guerra são dois extremos unidos por um mesmo paradigma: a carne ao serviço de um Senhor.



Corpos caducos podem dirigir uma guerra mas não a levam à vitória. Desta contradição resulta que, desde cedo, os adultos, associados sob o nome da nação, tribo ou simplesmente máfia, educam as "suas" crianças no sentido de que elas contraiam uma dívida que, mais tarde, se necessário, pagarão “orgulhosamente” com a vida.

"Deixai vir a mim as criancinhas" - já dizia, noutro contexto, Jesus. O mercado, esse, acaba de descobri-las.



O humano não nasce autónomo. A sua espécie, como muitas outras, necessita de um tempo de maturação para aceder à vida independente. E, mesmo quando a obtém, ao contrário doutras raças que, sofrendo idêntico processo, ficam de imediato em contacto com a alimentação lá onde ela existe - o tigre caça a gazela, a raposa a perdiz, etc. - o humano vem a encontrar entre ele e os bens de que necessita (o alimento, a caverna, a instrução) uma série de instituições que os controlam, e podem mesmo impedir-lhes o acesso.

O nascituro vem ao mundo no seio de um subgrupo que, mal ou bem, domina os meios de alcançar o seu próprio sustento e, em consequência, os da sua prole. Assim, fica de imediato cativo de uma dívida, tanto maior quantos os benefícios recebidos e o seu pagamento traduz-se na obrigação moral de um sentimento de gratidão. Amar pai, mãe, clan, pátria, Deus, etc. consta da cartilha de qualquer recém-nascido, mas apenas a criança priviligiada acede de imediato a uma vida ligth, na qual a maioria desses itens germinam e ganham sentido.

Quanto á criança nascida em ambiente de fome outra realidade aprenderá.



Ou seja, a idade infantil, ligth por natureza, luz, infelizmente pouco, para a maioria das crianças: umas, nascidas na abundância são logo sobrecarregadas pelos mil e uns adestramentos típicos do seu grupo, afim de que, adquirindo-lhe as características, possam usufruir das respectivas vantagens; outras, vindas ao mundo na penúria, logo devem lutar pela sobrevivência.

Num e noutro caso, a sobre-exploração, a somar aos erros inconscientes cometidos pelos educadores e reproduzidos gerações a fio, atrazam a melhoria social dos talentos humanos.







Consome (-Te)!



Se a dependência se inscreve na natureza das coisas (vimos ao mundo carentes de cuidados) ela não tem que ser obrigatoriamente o nosso destino.

A sociedade humana deve formar cada um no sentido da sua própria autonomia, de modo a que as escolhas individuais advenham, não de automatismos característicos do mundo dos insectos, mas de desejos levados a cabo em plena consciência. Ou seja, mercê de actos livres. Porém uma sociedade de massas, ou de consumo, poderá formar outra coisa que não consumidora? Dir-se-ia que não e, no entanto, a história ensina que a essência é dual e, logo, contém em si o germe da mudança.

Na escola reside o foco transformador da sociedade de consumo, pois é ela a sua primeira fábrica.





A escola oficial, propagada com o industrialismo, democratizada nos últimos decénios pela necessidade de trabalhadores especializados e gerida nos ministérios por pessoal que se reveza, ora nos altos postos do Estado, ora na gerência das multinacionais, está ao serviço destas, das quais é também uma segregação. Assim, esta escola embala estudantes que, mal formados - ou "acabados"? - integrarão, a maioria, os terminais das ditas multinacionais e alguns – poucos - os postos que as controlam.



Na generalidade a escola-hangar forma consumidores ou seja, uniformiza comportamentos e gera massas. E estas que outrora preferiram Barrabás a Cristo, elevaram Hitler ao poder e ameaçam hoje com novas e semelhantes proezas não são ligth.

A massa, embora procure a lei do menor esforço, obedece a fundos pouco ligth e os seus actos, diluídos na irresponsabilidade colectiva, revelam-se frequentemente sangrentos. Mas, ó paradoxo!, esta escola oficial, herdeira falhada das aquisições libertárias de um Maio 68 e em acordo ainda com a promoção dos produtos das mega-empresas, pretende-se ligth!

A esta primeira contradição, a de uma escola cuja natureza e resultados não são ligth mas que deseja sê-lo, acrescem outras contradições, a saber:

1) Qualquer adestramento com a sua necessidade de paciência, disciplina e assiduidade é, em si mesmo, trabalhoso e a Escola não escapa, apesar das suas pretensões facilitistas, ou erradamente democratizantes, a esta dureza.

2) Os estudantes possuem pelo menos dois graus de leveza: o da própria juventude e outro, disseminado pelos "media", o qual consiste na crença de um bem-estar obtido sem esforço, senão mesmo por efeitos mágicos ou virtuais.

3) A escola para investigar a verdade tem de fazer uma autocrítica rigorosa. Ora, explicará ela que o ensino que ministra, serve, na prática, para levar a consumir acefalicamente, oferecendo pelo meio ao cidadão um cartão de eleitor ("democracia obriga") trabalho – ou subsídio de desemprego - de modo a que, provido de dinheiro e capacidade eleitoral, o cidadão cumpra a grandiloquente tarefa de consumir?

Veja-se em esquema, o conjunto destas (e doutras) contradições "escolares", para melhor analizar o seu resultado:



1. Em relação ao funcionamento:

Escola que, em acordo com os adquiridos da década de sessenta, pretende pôr em prática métodos ligth, versus:

- Natureza pesada de qualquer aprendizagem

- Aumento súbito da população escolar, dando origem a turmas cheias (e com carteiras, em regra, dispostas ainda hierarquicamente: umas à frente, outras atrás)

- Alunos cada vez mais originários de meios marginalizados, e logo, insatisfeitos e zangados.

- Recrutamento de professores, sem atenção à sua qualidade pedagógiga pois uma coisa é o saber e outra comunicá-lo.

- Escola consciente das suas próprias contradições, denotando-as no mau estar dos adultos que nela funcionam, os quais se confrontam com problemas que não alcançam solucionar pelos meios ao seu dispôr.

- Ensino que incentiva a procura das boas notas desgarradas da avaliação (que não existe) do “sentimento social” , tal como o definiu Alfred Adler, existente no aluno: que interessa à sociedade um saber tecnológico posto ao serviço da construção de câmaras de gás?





2. Em relação às expectativas:

Escola que pretende dar acesso à vida ligth, versus:

- Ensino pesado e problemático.

- Estudantes que, concluída a escolaridade, deparam com o desemprego ou um emprego aquém das expectativas.



3. No que respeita à própria escola enquanto exemplo pedagógico:

- a Escola não pode assumir as suas contradições, sob pena de se desdizer e, porventura, paralisar. Ou seja, a Escola cujo dever é ensinar métodos de alcançar a verdade, afixa ela mesma uma máscara e fala mentira.



Acrescente-se ainda a particularidade dos alunos estarem numa idade em que a máscara social ainda não se definiu e que, em consequência, detectam facilmente as contradições e a falsidade, reagindo-lhes com revolta.



Um tal "cocktail" não pode resultar senão num lugar por excelência de conflito social, uma "chaga" diariamente reaberta e a ninguém deve admirar que:

- Professores lamentem já não poder castigar corporalmente os alunos.

- Alunos agridam os professores e estes, quando se descontrolam, ajam da mesma forma.

- Alunos se esmurrem, roubem ou violem entre si e, mais recentemente, imitando os adultos fora da escola, tomem uma arma e matem o que encontrem pela frente.

- Escolas sejam sementeira de núcleos de agressão social tais como "skins", "neo-nazis" e outros.

- Haja pouco cuidado na selecção dos professores como se fosse consensual que, para um tal meio, “quanto pior melhor”.



Mas, e vendo-o noutra óptica, o ensino oficial da sociedade neo-liberal, na qual o mercado é rei e senhor, não deve ensinar a sobreviver na selva? Não é, pois, coerente que a Escola assuma o que na realidade é: uma academia que ensina a arte da guerra? Além de que o aluno estudioso até conseguirá completar a sua formação em tal meio (ou apesar dele) e, desde que assíduo, há-de um dia concluir o seu percurso de estudante com a "escola" toda.

Tudo certo e "honny soit qui mal y pense".







Não te conheças, rebenta!



A cesura ligth - o mal de um lado e o bem do outro - também é possível porque, desde cedo, se ensina a criança a proibir-se os maus pensamentos.

Mas o pensamento é um todo, não passível de partir em bocados sem que o resultado sofra o efeito da amputação. Pensar isto e não o seu contrário é impedir a luta dos dissemelhantes e a sua posterior união que, por sua vez, se subdividirá, e, assim, "ad aeternum".

A dualidade faz parte do mesmo e o "não" sem o "sim" não tem significado nem valor. No entanto, em vez de se fortalecer no conhecimento de ambos os componentes da vida, o pensamento primário, ligth pela censura que se impõe, exclui o que não compreende ou sujeita-o a forças odiosas, como no caso da mulher para a mentalidade medieval eclesiástica, exorcizada na figura da bruxa medieval.



O maniqueísmo mantém-se na nossa sociedade a qual, no entanto, detém já meios para saber que o mal, as tendências socialmente destrutivas não se anulam pela recusa do seu pensar mas, sim, pelo diálogo com essas mesmas forças até esvaziá-las da sua motivação, o que pressupõe, naturalmente, a sua análise.

Porem não é isto que acontece e o desejo de destruição - é sobretudo disso que se trata e tanto mais acutilante o problema quanto a vida se processa num cenário cada vez mais bélico, se é que esta ferocidade não é já um tributo à errada forma de lidar com o "mal" - cresce numa sociedade que, embora se deseje ligth, ou por isso mesmo, não sabe lidar com a sua parte negativa senão pela sua - inútil - exclusão.



Outrora vivia-se para morrer e, através da morte, ascender.

Hoje nasce-se para ser, aqui e agora, rico e eternamente novo.

Ligth.



Uma tão parca e infantil utopia não pode senão causar mal-estar nos que a procuram, se é que não transforma a sociedade que a incentiva numa imensa “disneylandia”, gerida por multinacionais que vendem brinquedos e armas, colocando os povos uns contra os outros, à semelhança das famílias reinantes do antigo regime quando ganhavam territórios e respectivas populações em herança.

Os "serial-killer" da nossa época ou, numa sua versão mais light, os votos numa extrema direita excluídora do imigrante (e excluir o que já de si é excluído obedece a uma dupla lei do menor esforço) são acções marcadas pela necessidade de um bode expiatório, equivalentes ás que, ao longo do tempo, incentivaram populações à diabolização dos judeus ou ao seu extermínio, acções essas, como tantas outras do mesmo jaez, possíveis graças à má gestão - nada inocente pois beneficiária dos grupos que as instigam - das tensões "destrutivas" normalmente existentes em qualquer ser vivo.

Porque dialogar com o "mal", percebê-lo em nós e ver, em pensamento, até onde lhe vai a extensão, além desse conhecimento nos tornar mais humildes, há-de contribuir para enfraquecer os grupos bélicos que, igualmente ao longo da história humana, têm preconizado a extinção desse mesmo "mal", naturalmente com as armas que eles mesmos vendem, em vez da sua assimilação. Esta, na verdade, obriga a uma actuação em profundidade, pois implica o estudo das circunstâncias produtoras do "mal", levando a actuar sobre a sua raiz, isto é, sobre o "bem" e o "mal", ou seja, sobre tudo.



Uma "reealpolitik" como o nome indica, age sobre uma eficaz leitura da realidade e não sobre fantasias próximas da banda desenhada.



A luta radical contra o "mal" consiste em retirar-lhe domínios, quer percebendo-os e actuando sobre as suas causas, e assim esterilizando-o, quer por um exercício de análise que o desconstrua.

Quantas vezes o "mal" não passa de um preconceito ou, muito simplesmente, o nome por que dá um interesse não assumido: a expulsão dos cristãos-novos serviu aos que compravam as suas riquezas ao desbarato, o extermínio dos judeus ao armamento hitleriano e a caça ao "terrorista", se não vigiada, beneficiará os que desejam o fim das garantias humanas e, mesmo, a destruição da democracia.

(Não está em causa a necessidade de vigiar os que, de todos os lados, conspiram contra uma sociedade que se pretende cada vez mais democrática - e teima em permanecer democraticamente light, isto é, superficialmente democrática - mas, e isso sim, chamar a atenção para que não se deite fora a criança com a água do banho.)



Mas actuar na raiz das coisas vai contra uma sociedade que, não sendo light, pretende no entanto parecê-lo. Afinal as coisas estão bem como estão, pois os "lobbies" armamentistas vendem cada vez mais (como não lhes recorrer quando se quer dominar outrém e, aliás, a guerra tem sido, ao longo da história humana, a actividade tradicional dos grupos dominantes) o negócio das drogas, as quais alheiam de um mundo cada vez menos light, também se recomendam - os novos tóxicos dizem-se eles mesmos light - e, "last but not least", os que mais sofrem com isto tudo encontram-se, afinal, enfraquecidos além de bem vigiados.

Outrora a pax romana, hoje a do “hamburger”, mesmo que nos custe a saúde e o planeta.



Há que instruir, abrir mão de preconceitos que tomam o valor de verdades absolutas, acabar com a projecção dos nossos medos nos seres mais frágeis da cadeia humana, em regra o elemento estrangeiro e, na verdade, o minoritário.

Combater a crendice e a ignorância populares, as quais ao longo da historia têm servido de pretexto aos grupos no poder - ontem através de um ensino elitista hoje, mais sofisticadamente, pelo controlo dos meios de comunicação - para armar o braço que mata o que não interessa a esse mesmo poder.



Combater o mal onde não está (ou fazer guerras para exterminá-lo como outrora as cruzadas contra o turco) resulta num desbaratar de energias que, bem aplicadas, poriam em causa a própria necessidade de mando (não confundir mando com gestão) criando, porventura, um mundo verdadeiramente light.



Mas a realidade é que nas democracias, onde o chefe necessita do voto popular para legalizar o seu poder, a instrução tem tambem progredido na justa medida em que permite a sua eleição. E, pese à ilusão obreirista, a vida do dominado comum, com cama, comida e circo garantidos – leia-se reality shows”, concursos distribuidores de dinheiro, etc. - surge, a seus olhos, desde que a escassez não ultrapasse certos limites, preferível ao risco da autonomia. Esta exige o repúdio da lei do menor esforço e gerações de servidão interiorizaram-lhe o pavor se é que, muitos dos seus dirigentes, instalados numa confortável "oposição", não são o seu pior inimigo.

Enfim, do lado dos que mandam e do outro, o dos que, em democracia representativa, fazem mandar os que mandam, um mesmo objectivo: uma vida light.





O suícida iluminado



A qualidade light da juventude torna-a idealista, fazendo-a:

• Acreditar em soluções "fáceis" (e tantas vezes difíceis para o Outro)

• Separar domínios da realidade que, interligados, obrigam a um cuidadoso manuseamento.

Não admira, pois, que entre os caçadores de energia light, ou light-jovem, quais pedófilos do espírito e não menos senão ainda mais perigosos - porque raramente denunciados - se encontrem as mais diversas associações com respostas aparentemente radicais para tudo mas, na verdade, infantis e arcaicas.

Assim:

• Da união do factor light da juventude com a comum projecção do desejo sexual resultam símbolos sexuais para consumo das várias indústrias.

• Jovem imbuído da ideia de uma pátria a defender dá origem ao "valoroso" soldado desconhecido (se ninguem defendesse "a pátria" não haveria guerra de todo)

• O militante neo-nazi é, em regra, um jovem apanhado por uma ideia caduca e fictícia e, quando ao serviço de um partido religioso, de uma "jihad", o jovem "luminoso" transforma-se num suicída-bomba, o qual, à semelhança dos faraós antigos, se faz sepultar rodeado de comitiva com a diferença de que a corte faraónica, comungando da mesma crença do rá, viajava para o outro mundo obedecendo a um protocolo que já lhe presidira à vida e para o qual se prepara desde a nascença, enquanto o suicída-bomba apanha as suas vitimas desprevenidas, num acto que funciona como o de um justiceiro cego e surdo, mas vociferador de fogo, sob cujo poder cada qual paga pelo facto de ter nascido, independentemente da sua situação ou ideias.



Se a morte do bonzo imolado na praça pública, durante a guerra do Vietname ou, mais recentemente, a do estudante Ian pallak, reenviam para um protesto que se quer, a par e passo, testemunhado - pois trata-se de um suicídio "lento", quase se diria light, como se fosse possível retirar-lhe a dor para ficar apenas o acto, o protesto, qual morte oferecida à contemplação do transeunte e apelando a uma adesão aos pontos de vista do sacrificado, num processo que lembra a narração bíblica da agonia de Cristo, o acto do suicída-bomba, pelo contrário, irrompe ditatorialmente e logo mata, numa destruição orgíaca que o seu autor pretende regeneradora mas na qual ele próprio conserva um lugar à parte, pois, como qualquer ditador acumulando bens na Suiça para quando deposto, o suicída-bomba reserva-se tambem um lugar privilegiado no pós-chacina: o além reservado aos heróis da “guerra santa.”

O assassino-bomba é indiferente aos que com ele morrem pelo menos a dois níveis: retira-lhes a vida e não lhe importa que as suas vítimas acreditem, ou não, no além. Ele, porém, morre feliz porque a sua acção o há-de ressuscitar.



Qual o adolescente, encandeado de light, criado num ambiente instàvel e violento, vendo os seus amigos e familiares maltratados, a braços ele próprio com as crises próprias da sua idade, que não se sente tentado a matar ao mesmo tempo vários coelhos: "dar uma solução" aos seus problemas, conferir um sentido à sua vida, tornando-a “útil” a uma causa e, ainda por cima, ganhando a garantia da sua entrada no rol dos heróis santos?

O casamento entre dois princípios tão opostos, de um lado a luz e a vida e do outro o martírio não devem admirar-nos: muitos dos melhores intelectuais do ocidente a ele se entregaram na nossa idade média. Isto é, demos o exemplo. Talvez seja util pensar como nos libertámos de tais prisões, pois só assim evitaremos as penas com que, quer os carrascos, quer as suas vítimas, nos ameaçam.







O corpo light



O corpo, pela sua própria existência, invoca a morte.

Como enaltecê-lo sem torná-la igualmente presente, tanto mais que, a ocidente, os partidos das religiões tradicionais estão em fase de decadência - e mudança - e o além-túmulo passa por uma etapa de reformulação?

Se é que este novo ensejo de crença no além não tem a ver igualmente com o culto do corpo numa sociedade em ressaca de ilusões políticas, que tudo reduz a sexo e dinheiro, deixando um sabor a nada nos bolsos, cheios de bingalhada, o dos pobres, e de irisão o dos ricos, e frustrando a ambos.



Desaparecida a essência, e com a sociedade incapaz de admitir em seu lugar a existência e a concomitante responsabilidade, tudo se assemelha e, por fim, nada vale.

Resta o refugio no além, a crença num novo paraíso, ja nem dependente da concepção dos partidos que velam por tais coisas mas fundamentado na ciência, nos testemunhos dos que passaram pele estado de "morte virtual". Ou ainda um novo misticismo, igualmente light, onde cada um é deus sem ter que criar coisa nenhuma e muito menos a si próprio.

(Longe da nossa intenção arvorarmos em defensores ou blafesmadores de um "além", do qual, na verdade, ninguém sabe. Mas não deixamos de fazer as associações que achamos possíveis entre crença e desespero social, da mesma forma que Holywood satisfaz os seus clientes com tanto mais fantástico quanto mais miserável a sua realidade).



O além, no ocidente, libertou-se dos seus custos e à sua porta já não se encontra, nem o cão das três cabeças nem o anjo da divina balança aferindo passados.

O novo éden é igualmente light e ninguém lá pede o sacríficio do próprio filho. (Na verdade ele custa, segundo Erno Gruen, a separação de si mas isso já entrou nos costumes, ou seja, aprende-se primeiro em casa e depois aperfeiçoa-se na escola)



O "outro mundo" tornou-se também light porque abstrai do bem e do mal e a ele acede quem quer que tenha vivido neste: éden democrático, direito nascido com a espécie humana, já que os restantes animais continuam sem alma, condição sine qua non para que o humano a possua e os maltrate.



No reino animal, assim como na taxinomia, o homem domina.



E se o acesso ao além se tornou aberto a qualquer racional é porque a sociedade light é massivamente segregadora. Mas como esperar o contrário se ainda não se aprendeu a viver sem um bode expiatório? E como não há-de ele surgir na figura daquele que, às massas, lembra os tempos ainda recentes da sua própria escravatura: o emigrante, o sem direitos, diariamente suado para conforto do branco ocidental? Não é ele a testemunha incómoda do nosso êxito?

Outrora o paraíso tinha o preço dos cilícios e o castigo da carne era a sua senha, a sua palavra de passe. Mas como acreditá-lo, ou, mais grave, ter dele necessidade, depois que se "descobriram" as novas terras, importaram como escravos os seus povos, se inventou a máquina a vapor e, abolido legalmente o tráfego humano, se transformou a escravatura em "fluxo migratório"?

Sem tudo isto alguma vez o light, aqui e agora, se imporia?



O culto do corpo tem a marca do desgaste nas horas suadas no ginásio mas, na publicidade, na montra social, os corpos não se cansam nem envelhecem, as coisas não têm preço e, quando o assumem, o pagamento é cheio de facilidades e mesmo alegre: o consumo feliz.



A sociedade industrial, com a sua cadeia produtiva, o gaz das fábricas, a fuligem e os bairros operários nunca poderia ser light, pois nela o parto das coisas era por demais evidente e a dor sempre presente. O "self made men" do sec. XIX e inícios do XX, o homem que conquistou a pulso uma posição no mundo, não é um exemplo de humanidade light porque traz no rosto o suor da sua ascensão. Pelo contrário, o "feliz" ricaço (os ricos são "felizes" numa sociedade que associa dinheiro e bem-estar) que obteve a fortuna por herança, numa gôndola ou concurso de TV, esse sim, é light.



A sociedade pós-industrial pretende-se light, pois nela o dinheiro produz dinheiro, o suor dá lugar ao serviço, a fábrica cheia de barulho e tumulto transformou-se no trabalho em casa ou, pelo menos, deixou de ser o seu símbolo. E a produção pesada, deslocando-se, por razões de mão de obra mais barata, para as zonas pobres do planeta, donde o light anda erradicado ou pertence a uma ínfima minoria, tende a fazer desaparecer os detritos industriais do Ocidente.

Os países ricos pretendem ser visualmente light.



O light esbarra a todo o momento na realidade dos conflitos sociais, no cancro do pulmão, nas águas inquinadas, no ar irrespirável, nas marés negras, na extinção das espécies, na ameaça que nos suceda o mesmo.



Mas ser light é viver alheio disto tudo e, principalmente, de si mesmo, possuir uma existência sem mancha de nafta e sobretudo sem peso. Como, noutro contexto, dirá Kundera "a insustentável leveza do ser", cuja fórmula não deixa de marcar a capacidade humana em se ausentar do corpo, da infra-estrutura que a marca e condiciona.



O preservativo é o objecto mais light dos nossos dias, senão um seu símbolo: retém o mal, exorciza o excesso e... afasta o Outro.



O turismo, nascido na classe light, não pode ser senão light. Ele transforma o planeta numa estrada percorrida em poucas horas, iguala a paisagem, consome-a num "cocktail" onde o dissemelhante deixa de ser eficaz para se erigir numa aparência de paleta de pintor: as cores, tantas vezes puras, estão lá mas o importante é o resultado no quadro, a obra final.

Depois da viagem turística importa mais a amálgama de sensações recolhidas que o saber em profundidade deste e daquele sítio. Dai o valor do bilhete postal que apresenta a imagem de um humano, desnudo e bronzeado e que se vende em qualquer lugar onde haja Sol e praias. Ao turista, finalmente alheio ao que visita, a mesma foto serve para diferentes legendas: Portugal, Maiorca, Haiti, etc..

Viajar é cansativo e inseguro e o "light travell" sintetiza, em modo de viagem, o que o consumidor deseja da vida: uma travessia anestesiada, isto é, sem peso.

Viver sim mas com reservas.



Mais do que viajar o interessante é ter viajado, haver acumulado kilómetros e circuitos do mundo, mas tudo em tamanho de algibeira, consumível, filmado e dócil: light, sem guerra ou fome. Local contaminado por qualquer destas peçonhas não é visitável embora alguém lá tenha de viver. Por fim, o turista espalhar-se-à por uma reserva fortemente vigiada, cujos postos de controlo e segurança se desvanecerão na paisagem de modo a fazerem-se esquecer.

O mundo light é ameaçado a todo o momento pela investida da vida e dos seus problemas, nomeadamente os da sobrevivência, pois resolve-os apenas a contento de uns poucos.



Os "happy few", cristalização visível de uma época que erigiu o trabalho como modo de vida mas ao qual uns tantos olímpicamente escapam, realizam o protótipo da vida light. Nada os preocupa e vivem num mar de facilidades e prazer - assim os projecta o pobre diabo que, da vida, só conhece o esforço e neste (que remédio!) busca a sua gratificação, usando a cruz de Cristo ao peito para se mentalizar do seu destino e auto-consolar.



O cristinanismo, propagado no meio escravo e conhecedor do esforço, é tudo menos light e o período renascentista da igreja surge, com o Bórgia, nem mesmo light mas corrupto.



Na verdade, não há confissão religiosa light pois são domínios que se opôem. Quer porque a concretização eclesiástica de uma religiosidade - o partido religioso que, assente na terra e quantas vezes na lama, a propaga e defende - se vê a braços com tarefas muito pouco ecuménicas, quer porque qualquer deus é, por natureza, totalitário. E a totalidade não é ligth.

Mesmo a crença cátara, que permitia ao seu adepto o alheamento de muitas das regras que o cristianismo impõe, concluía com a obrigatoriedade do jejum antes da morte.

Uma religião light anunciar-se-ia, pois, inútil apesar de, num primeiro tempo, a ascese que qualquer via religiosa implica parecer possível de conjugar com o afastamento da vida real que o light opera. Mas a renúncia deste último vende-se como um produto acabado, uma "pizza" pronta a ser comida e nunca como um percurso a realizar.

Se, para obter uma vida light, devo submeter-me a cinquenta anos de árduo trabalho, de imediato essa vida deixa de ter valor light.

O light é alheio ao esforço e ignora-o.

Alheia à dor, a anestesia é o domínio, por excelência, do light.



A monarquia moderna, onde ela resiste, bem gostaria de ser light se, com demasiada frequência, a não envolvessem escândalos e descalabros, pois, lá onde sobreviveram às mudanças, o rei e a rainha, preservados para exemplo do povo, são seres para além dos conflitos, garantes de uma unidade composta de todas as diferenças. Anestesiadora do dissemelhante e enaltecedora do que une, atenuadora das dúvidas do talvez, a monarquia constitucional, liberta da decisão política e do seu ónus, permite-se ser - e deve sê-lo para que funcione - cada vez mais light, mais passageira, menos pesada na vida dos seus cidadãos. Como modelos cruzando a "passarelle", os reis e as princesas mostram as boas maneiras, oferecem-se como profissionais da educação e da generosidade. Dizendo que a garrafa está meio cheia, em vez de meio vazia, a monarquia tem por mister mostrar o lado agradável da vida, a sua possibilidade de não ser uma corrida contra o relógio nem um mar de dores. O cidadão comum conhece-as bem demais para necessitar que lhas lembrem. Por isso ao rei e á rainha perdoa-se o "doce fare niente" o qual, na verdade, cumpre a função de se mostrar possível ou, dito por outras palavras, tornar evidente que o reino da política e da luta pelo poder é susceptível de ser olimpicamente ignorado. Uma vida light, suspensa no abismo da feroz concorrência mas a ela aparentemente alheia. E como vive-la permanentemente afastado das mazelas do dia a dia, das doenças sociais e outras, seria, afinal, imperdoável aos que cumprem funções assim representativas, o rei ou a rainha - e a necessidade da dupla heterossexual já diz da imagem de "harmonia conjugal" que se pretende, qual anúncio publicitário, vender - obrigam-se a um sem número de visitas a doentes, hospitais e centros de infelicidade. Os reis só usufruem uma vida light desde que, periodicamente, mergulhem no trágico humano, preço, afinal, que a burguesia lhes impôs para tolerá-los. Mas lá estão para evidencia da possibilidade light e, no limite, e não menos desprezível, afastar pelo exemplo o povo da "sujidade" da política, colocando a reparação dos males sociais, da guerra, enfim, na esfera da caridade. Sua Alteza visitou o asilo Tal. Quando o membro de uma família reinante vai mais além e chama os bois pelo seu nome, corre o risco de perder o "status".

Nascido para não agir, não é o menos irónico dos destinos, este do monarca que, outrora, clamava quero, posso e mando!



No fundo todos queremos uma vida de reis que nem sequer mandem porque, enfim, mandar pressupõe decidir.



Seja light e nem sequer seja!



A leveza absoluta.





Arte, divertimento e light



A pop art, ao descontextualizar os objectos familiares, retirando-os da paisagem mercantil torna-os objectos light: a lata de sopa de A. Wharol ou o urinol de M. Duchamps libertaram-se do servilismo da utilidade primária a que estavam destinados e ascenderam à categoria de objectos-mundo, auto-suficientes e capazes, eles também, de uma cosmogonia. Retirados do consumo, simbolizam-no: a lata - o “fast-food”, o urinol - o cosmo das necessidades humanas. E, se por este lado, continuam a não ser light, pois constituem uma memória, quer de um ritmo vida que nada tem de light, quer da fatal condição humana, por outro, o seu destaque - conferido por alguém que se diferenciou do comum mimando Midas que fazia ouro quanto tocava - confere a tais objectos a singularidade do único, do que saiu da série, do que se libertou da massa informe e suada. Nesta perspectiva, afastados da sua origem, tornaram-se light, à semelhança do universo célebre que lhes deu origem, o qual, por via da indústria que o explora, retém da vedeta o “glamour”, as jóias ou o champagne mas não a dura aprendizagem do ofício, o levantar pelas seis da manhã para comparecer no terreno nas filmagens às oito, ou o incessante tormento do artista em prol da sua obra.

As indústrias do divertimento vendem light mas trabalham duro.

A multinacional do futebol é a que mais envolve o consumidor nos seus meandros financeiros ao publicitar as compras e transferências das suas vedetas por preços astronómicos para o comum dos mortais. Num ápice o consumidor é posto perante ordenados que nunca virá a ganhar e, não menos perverso, levado a aceitar o sistema que os permite, com tudo o que significam de injustiça social ou, dito doutra forma, o consumidor acaba por aplaudir o que o esmaga.



O futebol é actualmente a melhor montra do capitalismo, pois ao contrário do actor de Hollywood, tambem empregado de uma indústria de lazer onde as cabeças de cartaz são bem pagas mas de cujo "cachet" se fala menos, o futebolista traz o preço estampado na camisola e lembra ao cidadão comum, não só que ele também o tem como a ridicularia do seu valor.



Nenhum outro sector do mercado tornou tão banal a aplicação do verbo "vender" à pessoa humana talvez porque, bem implantado popularmente, desde cedo a massa conhece o preço das coisas.



A passiva aceitação por parte das camadas que, precisamente, pior vivem, de ordenados desproporcionadíssimos em relação às necessidades humanas constitui a ginja no bolo da edificação da insensibilidade capitalista.

Com que direito combato um sistema cuja vedeta incenso?



A noção de que pobreza e riqueza são dois compartimentos estanques, alheios um ao outro, é um dos aspectos mais conseguidos da vitória capitalista a qual vende por inato o resultado de uma longo processo produtivo cujo fermento é a injustiça.



O condomínio luxuoso, cercado por muros e vigiado por video, convive com o bairro de lata mas essa vizinhança já não escandaliza. Pelo contrário ela é apreciada como uma representação na terra do melhor e do pior, do céu e do inferno, os quais "sempre existiram", para graça de uns e castigo doutros, caldeada esta interpretação por uma cultura oriental, apressadamente digerida, a qual justifica a existência num ou noutro lado da barricada através de fatais “karmas”.



A idade média imiscui-se na era pós-industrial, não pelo lado da solidariedade e dever cristão para com o Outro, mas na sua parte mais perversa, a que nesse tempo impedia mentalmente o servo da gleba de se imaginar com direito à mesa do senhor a não ser que fosse à de Cristo e, naturalmente, depois de morto.



Ao aceitar que uns ganhem num minuto o que outros, na melhor das hipóteses, levarão anos a amontoar, o futebol banalizou, aos olhos do cidadão comum, o light de uns poucos e, mais do que isso, fê-lo com a benevolente cumplicidade da hard vida da grande maioria.



A justiça tornou-se uma linha recta e proporcional: se eu pago tanto por bilhete para ver Fulano de Tal, este deve ganhar X vezes as pessoas que o querem ver, transposição perversa de um seu a seu dono alheio aos condicionalismos da coisa, às iniquidades do nascimento, às necessidades reais em questão. Não admira, pois, que qualquer imposto progressivo sofra a maior resistência: ele é um dos impostos menos light, o que melhor reflecte sobre quem cai.





Arte e religião



Não ser de si próprio é o ponto de união entre o místico e o artista, pois ambos obedecem a um dever mais alto, situado além do aqui e agora. Dai a actualidade de todas as Antígonas, pois o chefe de estado obedece também a um dever superior - o da sociedade civil - e os dois poderes raramente se entendem.

O artista e o místico trabalham na restauração do tempo mítico - lá onde o deus e os animais falam - enquanto o chefe de Estado apela ao bem geral e profano.

O artista regressa ao mito enquanto faz a sua obra e o místico realiza o mesmo percurso pelo trabalho sobre si próprio até, finalmente, sentir a " graça".

Tratando do assunto noutro texto (1) evoque-se no entanto a afinidade entre o actor e o místico com ambos a fazerem do próprio corpo uma ponte: o primeiro para a transcendência através do personagem e o último, tantas vezes através de alguém objecto da sua crença – Buda, Cristo, Maomé, ou Outro - atingindo o divino. Mas a regra parece geral: o estilo da obra de arte reflecte a vida do artista e nesta medida vida e produto artístico – ou transcendência - misturam-se.



O fabrico da obra artística não é, pois, ligth e, muitas vezes o resultado, na vida do próprio artista, dos objectos que produz tornam-no maldito aos olhos do poder estatal ou eclesiástico.



O místico e o artista seguem uma razão diferente – e tantas vezes oposta – à razão apreciada pela sociedade onde se incluem e são disso testemunho o que uns e outro sofreram em campos de concentração ou na fogueira. Ou, mais vizinho a nós, a marginalização nas prateleiras do não promovível pelas multinacionais do gosto.



Dócil é o "kitsch" que merece ser light, quanto mais não seja pela recusa em enfrentar as questões da sua época, pelo refúgio nas receitas passadas, preferindo o conforto do reconhecimento à estranheza da solidão.



O "kitsch" realiza a expectativa do Leitor comum, apresentando-lhe a obra tal como ele ou ela, cidadãos vulgares, a conceberiam, sem surpresa e com o desenlace esperado, segundo as vias consentâneas com a moral oficial, os seus elementos enquadrados no mais convencional modelo. As representações estereotipadas do "kitsch" são o exemplo de um universo depurado do seu perigo e das suas ameaças.





Cultura e light



A “cultura de massa” é light e obtém-se através de pílulas pouco concentradas de factos culturais, datas, "fait-divers," episódios apimentados, capas de revista, nos melhores casos edições de bolso.

Uma sua característica é a separação dos saberes em compartimentos estanques a qual transparece nos testes e concursos que a propagam: quem fez isto? Em que ano aquilo? Questões como "Relacione X com Y" próprias de quem aprendeu a pensar em vez de decorar são estranhas à "cultura de massa."

A alta cultura, (por oposição a uma "baixa cultura" tal como outrora o latim popular ou "sermo popularis" se opunha ao latim erudito) enquanto interligação e esforço globalizante, fica fora do domínio do cidadão massificado, capaz de saber uma efeméride, uma data, mas não de discorrer e correlacionar eventos, para além do indispensável ao dia a dia de uma sociedade no entanto complexa.

Herdeiro do camponês que veio para a cidade e se tornou operário, este cidadão, que só recentemente conquistou o direito a férias pagas, e, portanto, ao lazer, cuja integração na esfera do consumo é recente, tornou-se um elemento fundamental da sociedade de consumo, senão a sua razão.

Tudo se lhe vende e tudo ele hipoteca para poder comprar.

A integração no consumo não seria possível, por um lado sem a luta levada a cabo pelo movimento operário no século passado e parte do século vinte e, por outro, sem uma resposta integradora do próprio capital divulgando ideais igualitários acessiveis através do mercado: tem e serás. O acesso ao trabalho - alcandorado a direito – fez crer que o topo da escala social estava o alcance do trabalhador desde que ele pudesse vender a sua força de trabalho.

Na realidade, neste mesmo mercado nenhuma ascensão social se realiza sem uma forte componente de exploração do esforço alheio, ainda que este seja capitalizado sob a forma do prémio que sai na gôndola.



A alta cultura exige estudo e constrói-se com a paciencia de um entomólogo, precisamente o que o homem e a mulher comuns não possuem, pois saem esforçados das oficinas onde passam o dia, seja ela a caixa do supermercado, o balcão de atendimento ou a cadeira frente ao computador debitando textos alheios. Quanto às horas de descanso resta a televisão e o entretimento o qual, como o nome indica, serve para entreter enquanto não surge de novo o fundamental: o trabalho. Há também as férias mas a necessidade de valorizá-las pela sua demonstração social, não pouco tempo rouba ao que poderia ser um retiro regenerador. Porém, para aceder ao tal retiro, o cidadão comum necessitaria de uma cultura que não fosse de massa e o ciclo vicioso encerra-se.



Cidadão-spaguetti porque massificado e massificado porque cidadão pertencente à massa, o novo proletariado de colarinho branco possui uma única forma de abandonar, antes da reforma, a sua situação de pagador de prestações: os jogos de azar, sejam eles o totoloto, o totobola, a lotaria, etc., nomes dos vários anzóis que dão cor à sua dura luta por um lugar ao sol.

Neste a vida a sério, a vida com cultura, trabalho e lazer, tudo interligado e constituindo um todo, uma vida light, não já porque desligada do seu valor mais profundo - um fazer que lhe confere sentido - mas porque, enfim, lhe foi permitido prescindir do dramatismo do seu peso, tornar a passagem por esta terra um mero jogo onde ócio e labor se completam e não excluem.

Ironia do destino, esta mesma vida depende mais de uma atitude mental que de uma carteira cheia. Mas não é a menor vitória do capitalismo ter associado felicidade e dinheiro.

A sociedade cristã não resistiu ao estado, ruíu sob o consumo e sobrevive em alguns iluminados que, para melhor se protegerem, só para si se assumem.



A “cultura de massa” é light por uma negatividade dupla: impregna o seu possuidor de uma saber seccionado, às “prestações”, não globalizador e, pois que de cultura se trata - e "não há maior crime do que o que se perpetua contra o espírito" , impõe uma separação nele mesmo: de um lado a vida, do outro os factos, as datas, os nomes, enfim, os mexericos.

O jornalismo de massa pretende colmatar esta diferença entre dois lightes: num a caixa do super, condenada a sê-lo toda a vida, e do outro o romance – rosa ou não, pouco importa – vivido pelo poderoso entre cruzeiros em ilhas paradisíacas e veiculado pela revista vip.

Light contra light.

Ou luta onde os primeiros são cúmplices da maquinação que os destrói pela leitura – e compra - do que a publicita, dando-lhe a aparência de uma necessidade.

A caminho do lugar da escravatura, o escravo d' hoje lê o artigo que, ou o distrai da sua condição, ou o convence da sua necessidade, senão, e tal define o “jornalismo popular”, reunindo na mesma leitura a ambos os aspectos.



A cultura do esforço liberta e diferencia enquanto a “cultura de massa” nivela e prende.



Produto de um ensino que a democracia permitiu à custa de torná-lo massificador - resta saber se tal preço seria obrigatório - o cidadão comum completa, em adulto, nas lojas de trezentos o saber que aprendeu em edições truncadas de bolso. Homem erudito e homem comum têm hoje de idêntico um mesmo ponto de partida: a escolaridade obrigatória mas, depois, nada mais os une. Embora ambos trabalhem, o primeiro, cumprido o horário, encontra ainda fôlego para ir mais além, ocupando o lazer num esforço de mais saber que é tudo menos light.

A esperança de que a revolução tecnológica permitiria ao ser industrial a paragem da cadeia que lhe deu vida mas trucidou manter-se-à?



"Para que me serve isto?" é a queixa fundamental do estudante comum, amestrado desde criança num gosto light. A cultura de relacionamento (para diferenciá-la do saber de papagaio) é, como acima se disse, algo que se faz de aparentes inutilidades as quais, ao longo de uma imensa paciência, compõem o "puzzle" do saber. Mas a pressa, a necessidade da rentabilidade não permite, por um lado, o tempo que o "acabamento" de um tal cidadão exige e, por outro, a noção do próprio esforço é já estranha aos "meios de comunicação" que preconizam e vendem o "fast". Assim, o jovem da classe popular é levado pelas revistas e programas que o manipulam - e já por si herdeiro de pais manipulados - a querer depressa a preparação profissional, que o fará um parafuso rodando apressadamente, até que chegue à reforma, passada, no melhor dos casos, rodando também como uma borboleta nas asas do turismo sénior.

A separação dos saberes é light pois a parte não sabendo em que zona do todo se insere, ignora o seu papel e abstrai da sua responsabilidade.



A cultura erudita sabe porque sabe, permite a ponte entre os assuntos e, no limite, reduz tudo a uns poucos de temas obssessivos para a mente humana. Pelo contrario a “cultura de massa” se não custa a adquirir, porque vai de encontro ao fácil e desejável pela lei do menor esforço, aprisiona o seu cultor na teia dos seus mexericos, dando-lhe da vida uma imagem fraccionada.

A “alta cultura" simplifica, despoja e, finalmente, liberta.



O desinteresse pela intervenção política, pelo agir civilmente, deve-se também à retirada para o privado, para o sectorizado do que é parte de um todo e seu componente. Não é evidente que a complexidade social leve a uma maior ignorância da sua trama. O que dificulta o seu deslindar é a fragmentação do real em muitos reais que se apresentam como estanques. Como se alguém conscientemente resolvesse dividir a realidade numa multiplicidade de reais para melhor controlar a de todos, apresentando-os como independentes.



A realidade abstraída da sua natural complexidade e contundência, despida e asséptica tal como uma casa do "big brother" onde tudo se passa excepto o que passa no mundo: pessoas vivendo uma quotidiano onde o que importa é a luta pela sobrevivência, a conquista do prémio, fechadas sobre si , cada qual metida no seu próprio casulo, na sua vida pessoal, nas suas tricas.

Vida de chinelo.

Para alcançar uma maior eficácia este género de “shows” deveria submeter os concorrentes a uma operação que lhes retirasse a memória do passado. Então o corte com o exterior tornar-se-ia completo e o espectador ganharia a visão de comportamentos reactivos autênticos, "espontâneos", dignos de insectos, isto é, não determinados pela memória social, política, etc.

Comportamentos light, puramente light.





A "alta cultura" responsabiliza mas o mundo light, nos cartazes que o anunciam, é predominantemente jovem, pretensamente irresponsável, um universo no qual a morte é um conhecimento, não uma experiência consciencializada.

Morrer não é light.

A cremação aumenta os seus créditos, não apenas porque seja mais limpo e deixe os terrenos livres para o imobiliário mas porque, no fundo, afasta para sempre, ou reduz às dimensões de uma pequena gaveta, o que outrora exigia um túmulo.

Não se morre, não se fala da morte, a cerimónia fúnebre tende para reunir a estrita família que, lamentavelmente, tem de assistir ainda ao evento e, depois, torna-se à vida, o mais possível light.



A sociedade light, nascida com a tecnologia e o guindaste, ou quando este se miniaturizou de modo a caber no bolso de cada consumidor, abomina o trabalho e quer tudo feito, tudo pronto, tudo comprado e sem sequer provas no alfaiate. Este, tornado uma profissão de luxo, consagra-se aos poucos cujo rendimento lhes permite a recusa dessa "ligeireza".

Ao contrário do apregoado, a vida do poderoso não é light mas cheia de tudo. E, se surge, aos olhos da maioria carente, como light, é porque ela confunde a facilidade que o poderoso possui em satisfazer todos os itens de uma vida plena, com o seu resultado.

O pleno não é light.







Sempre mais claro...



A segurança light é eficaz e não se vê.

Ela rodeia-nos sem nos constranger como um halo espiritual ou um escudo invisível. Serve e não se impõe, esta lá e não se afirma, como num hotel de cinco estrelas onde tudo se vigia mas não se capta nenhum olho observador. E a vida decorre simples sob um exército tecnológico, um verdadeiro estado de sítio a rodear cada um dos nossos movimentos. Mas o que importa é a aparência e o light vive da ilusão e não da verdade.



Porque o light radica numa verdade escamoteada e é verdadeiro na sua mentira, a sua margem de manobra é escassa e necessita de uma realidade tratada mas, ó paradoxo, com aparencia de espontânea. A sua imagem ideal será a do cruzeiro num oceano circundado de arame farpado. Mas da popa do navio só se distingue o horizonte límpido e sereno e a naturalidade dos gestos nunca esbarra no arame farpado das fronteiras. Então a espontâneadade dos movimentos é possível, pois que inofensivos e sem alcance.



A limpeza do light é da ordem do genocidio depois do qual, cobertos de terra os corpos do crime, o seu autor exclama, sentado no terraço do seu lazer: calmo é o campo!



Porém o onze de Setembro veio lembrar ao ocidental que a sua reserva, alternativa ou não, findou: tudo se passa aqui e a guerra está em toda a parte. O mundo, tornado doravante pequeno, possui uma memória que tudo regista e o que se faz além pode ser pago aqui.

Para o mal e para o bem.



O onze de Setembro trouxe, pois, ao âmago do império outrora branco, o que sobretudo não desejávamos ver, ou tanto já banalizámos que aceitamos jantar como certos antigos: na presença de escravos esfomeados, afim de melhor consciencializarmos o apetite.



Quem, perante um ecrã que debita corpos dilacerados, quer pela fome, quer pelos seus efeitos mais afastados, ainda ousa fechá-lo porque, enfim, “está a comer”?



Janta-se no regozijo de não pertencer à maioria dilacerada pela injustiça, concluindo com um ámen, nem já necessariamente dita, porque interiorizada, oração: "Obrigado meu Deus porque os que vejo diariamente morrerem por um bocado de pão não sou eu nem nenhum dos meus".



Comemos na sala das autópsias, e, efeito não menos precioso, grudamos com uma solidariedade de potenciais "vitimas" (livres graças ao divino, à sorte ou, simplesmente, ao termos nascido na parte "boa" do planeta) a família que somos.

Família ou, dado o seu contexto, mafia?





Seguro e light tornaram-se dificilmente conciliáveis e o pó do antrax pode atravessar num mero envelope as fronteiras. Mas a cegueira humana não desaparece pelo simples facto de encontrar cura no oftalmologista. Tal como a lei do menor esforço é inerente ao humano, por mais homens, mulheres ou crianças esforçados que o mundo prodigalize, assim haverá sempre quem, apesar das condições adversas, queira viver, num universo de brincar. O light será, pois, a sua senha, doravante restrita a mundos cada vez mais fechados e cenografados, subscritos em pequenos utensílios que trazem a sua marca, fetiches que o cidadão transporta consigo e lhe alimenta a ilusão de uma vida ausente de qualquer risco.

Light de bolso, para todo o serviço e ocasião.

Maço de tabaco light, yogurte light, chocolate light, toda uma panóplia de objectos que, reunidos, preenchem as horas de um dia bem ocupado, um quotidiano vivido sob a sigla do seguro, mesmo no meio da ameaça das bombas. Quanto menos espaço tem o canário não mais canta?

Frenesim de morte.





Ideal light



Quanto mais o mundo se torna insuportável e conflituoso mais a vida light surge como um ideal necessário, senão urgente.

A confiança do investidor influencia o clima económico e a sua instabilidade não auxilia à realização dos dividendos. Consumidor e investidor têm, pois, de manter a calma, estar seguros de que o seu dinheiro terá uma volta bem recompensada. Os sobressaltos não podem exceder os tanti quanti habituais ao normal processar do mundo que ora temos. Quanto vá além é nocivo.

Light para todos, mesmo à custa da mais negra escuridão para a maioria.



O avesso do light não oferece surpresas.



Outrora a conquista esforçada do paraíso, agora a felicidade automática, o prazer sem ascese. Pronto a ser saboreado.



Light.



E poderia ser doutro modo numa sociedade embriagada pela bugiganga e obsessão do domínio? O que no ocidente circula na pub, nos media, é o delírio de um hipotético bem-estar, apesar do sempre possível tornado, da queda do avião ou, ultimamente, da bomba terrorista. De um lado o desespero e do outro a surdez, pois, como repetia Abbé Pierre, o dinheiro gasto a combater o terrorismo daria para melhorar a sorte dos que o justificam.



Enfim, nada disto é light, é mesmo o seu contrário, apesar da onde de música que a tudo invade, num desejo de submergir o ruído da vida num outro que o substitua, cadenciado e idêntico, monotonamente agitado e adormecedor.

Light.





O ouvido light



O silêncio ou a sonoridade que nos era permitido ouvir como bruá-bruá do local público, a confusão das vozes no café, o tinir dos talhares no restaurante, tudo isso foi abafado a partir da década de oitenta pela invasão de um exército de matracas sonoras, com mais ou menos talento, mas todas elas idênticas, de modo que passar de um texto musical a outro é o mesmo que permanecer no mesmo: a repetição, a segurança de não ouvir nada de diferente e, portanto, de novo, a incriatividade e a normalização de qualquer surpresa.

Não há sítio comum que não tenha por fundo a sua "música ambiente", na verdade nem de fundo mas de acompanhamento, senão mesmo sobreposta ao volume da voz em conversa, numa continuação da musica colada aos ouvidos, pois a necessidade de ouvir-sempre-qualquer-coisa expandiu-se com o uso dos audiofones uniformizando as diferenças.

A música que ensurdece reduz o mundo a uma paisagem onde os outros falam e gesticulam mudo.

Um mundo que o pseudo musicólogo - na verdade surdo à custa de ouvir o mesmo - recusa, ou igualiza, numa operação light de coar a dor para reter a militarizada dança.

A insensibilização.



Lá, nas alturas da repetição contínua, absorvo-me num eden anulador do Outro, o qual não me perturba devido à barreira do som que lhe ergo.

Universo sonoro light, ambiente light que transporto comigo para o meio inclusive da tragédia, e lhe dá cor, pois sem música de fundo já nada se concebe.

À semelhança da marca estampada na camisola, qual rez que o selo do dono - no caso uma multinacional - assinala, trago também nos ouvidos, no cérebro, senão à frente dos olhos, o refrão de uma música igualmente de consumo, a mais das vezes embrutecedora e, sobretudo, colonizadora. Não num volume que me permita ser eu a dominá-la mas, pelo contrário, num outro, uniforme, no qual ela me leva, transporta lá aonde deseja: à evasão acéfala do que, de tão distante, se perde, à fuga a mim mesmo e, pois um acto não vai sem outro, à fuga do Próximo.



Ouvir, ouvir até ser totalmente desatento numa acção que condensa o efeito light unificando-lhe os tempos: não só impeço a vida de se revelar na sua multiplicidade de aspectos como eu próprio, pouco a pouco, ensurdeço ao que me tire desse sonho de uma igualdade anestesiante.



Isolado num mundo sonoro e asséptico, viciado no produto que as multinacionais do gosto impõem, o falso melómano paira surdo ao que seja, inclusive, condição sine qua non do seu gosto, ao que ouve.



Os audiofones, outrora usados para uma melhor concentração na diversidade do texto musical, foram apropriados pela massa para defesa da mesma massa que a rodeia, ou seja, de si mesma.

Efeito paradoxal e aglomerador: defendo-me com ruído contra o ruído e, por fim, aceito em altos berros aquilo que, precisamente, quero apagar.



O prejuízo para a saúde que tais aparelhos provocam, ou, nos locais nocturnos, o volume do som muito acima do tolerado pelo ouvido normal , impõem a surdez que a tudo coloca termo, resolvendo o problema do que não se quer ouvir da forma mais radical. Como que a dizer que no universo light a invisibilidade e a insensibilidade são as normas.



Os audiofones funcionam hoje, para a massa como um cancro da audição.



O monótono bombardeamento musical a que somos sujeitos é light porque o objectivo de tal cacofonia é o de tornar presente a vida tal como a encaram as multinacionais donas do nosso quotidiano, desejosas de nos submeterem à corrida pelo último modelo, deitando fora o que comprámos há um mês atrás e endividando-nos em prol do novo, numa luta desenfreada que só é light num aspecto: o de nos insensibilizar através da brutalização constante.



Correr para o nada, fugir de si mesmo acabando por dar consigo de costas voltadas e sem que nos reconheçamos. Ali vai um outro!



Números em movimento ao som de caixas registadoras contabilizando os lucros da demissão e do apagamento.





A separação promíscua



O universo light, ou dito por outra forma "la vie en rose" só é possível através de uma abstracção, de um coamento da vida pelo filtro que retém o que não agrada e deixa passar o aprazível. No entanto, fazer isto e sentir prazer num tal universo, na sua existência, em vez de uma asfixiante falta de verdade - o negativo e o positivo compõem o que existe e a dualidade é constante em quanto se conhece - só é possível porque lá atrás, em acordo com Erno Gruen fomos exercitados na separação, numa visão tendenciosamente unívoca das coisas, afim de sobreviver ao sofrimento e à solidão.

E como o mesmo processo social a todos forma e faz, a sociedade aplaude a divisão do ser porque dela deriva o seu fundamento e sobrevivência. Pelo contrário, o homem e a mulher que se queiram unos estão destinados a um castigo social que pode ir da retenção no hospital psiquiátrico à prisão, sendo provavelmente os artistas - mas a quantos se abre esta estreita via? - os mais felizes entre os que tentam essa união consigo próprios: ao cultor da arte tudo se permite mesmo a...unidade. Mas de que falamos? Do ser que não é uma máscara ás três da tarde e outra às sete mas integra a ambas no mesmo, pois o seu fundo é uno: um ser que é todo o tempo, à semelhança do deus, cuja imagem não apresenta seccionamento.

Deus - dizem os teólogos - simplesmente é.

Mas dos tantos que trazem o deus na boca quantos tentam sê-lo?







Outros lightes



Também o estado, depois de haver sido absolutista, assumiu, no final dos anos setenta do século passado, uma feição light: foi o estado neo-liberal, a venda na haste pública de serviços que até ai competiam ao bem-comum, a privatização de muito que o caracterizava: água, luz, transportes, saúde ou aposentações passaram, em muitos casos, para as mãos dos poderes privados.

Ao mesmo tempo que a publicidade dava a conhecer os produtos light, o estado, culpado de Auschwitch e Sibéria, desfazia-se da sua carga e responsabilidade sociais mantendo na sua esfera apenas o "indispensável", nomeadamente a captação dos impostos além das polícias.

Um estado "leve" que o slogan "seja o cidadão nulo" poderia anunciar, escondendo que, em troca, paga pela bitola privada - isto é, a do mercado, serviços até ha pouco gratuitos. Fenómeno simultâneo com a decadência dos países socialistas, o capitalismo privado aproveita a circunstância para varrer o que pode do serviço público, processo em que saiem vencedoras as multinacionais que hoje subjugam a esfera política, as mesmas que propagandeiam os produtos light e, do mesmo passo, patrocinam as campanhas eleitorais de presidentes, ministros e respectivos adjuntos, os quais provavelmente virão a ser - ou já foram - gerentes dessas mesmas multinacionais.

Santa aliança ou o poder de uma só cor, a realização, a nível político, do homem unidimensional apontado por Marcuse nos anos sessenta.

O político ligth, bem falante e convenientemente maquilhado para o circo da TV, destinado a satisfazer as clientelas mais amplas e por isso mesmo condenado a promover e ser protagonista de campanhas light - as quais, por própria definição do ligth, não podem ir à raiz dos assuntos - barafusta mas nada muda de concreto.

O concreto não é light - pois implica a vida no seu todo - e a política light - de direita ou esquerda - não resolve os problemas sociais mas abre caminho, face a um eleitorado insatisfeito, aos movimentos extremistas que, sem o confessarem para não assustarem as massas, anseiam pela revolução.

Ou seja, o ideal da mudança radical passou a ser representado, não já pelas esquerdas - ainda não há muito exultantes com a exemplaridade da revolução dos cravos em Portugal - mas pela direita mais à direita.

Incapaz de um programa realmente digno do século vinte e um, no qual a exigência seja uma vida mais fácil - ou ligth no bom sentido - com dever de serviço social para todos e direito a cada vez mais ócio e satisfação das necessidades básicas - casa, saude e instrução - a Europa vive assustada como velha tia revolucionária e nostálgica. Nos seus tempos "oh, quando eu era nova!" foi radical mas os que hoje falam em revolução - extrema direita e islamismos - lutam já contra ela! E se o estado dirigista que, na década de sessenta esta mesma Europa defendia, se mostrou na Rússia, Alemanha, China e noutros infelizes lugares, sanguinário, o seu esvaziamento mostrou a não menor ferocidade das multinacionais.

As recentes vitórias da extrema direita devem-se, pois, ao estado light o qual, a continuar assim, será por elas tomado e, finalmente, muito pouco light será, a não ser, é claro para os tantos que o dominarão. A história está cheia destes exemplos assumidos sob os mais variados nomes mas todos pretendendo construir um homem novo. Talvez desta feita se chame homem light.













O "bom" light



A visão light das coisas contém em si uma desdramatização de aspectos que, em parte, deixaram de ser relevantes.

Sem pretender esgotar o seu elenco, cite-se:



• O "Sexo dos Anjos".

Deixou de importar se o homem tem um tonus feminino ou a mulher características outrora atribuídas ao "sexo forte".

O light, com a sua capacidade filtrante e purificadora, reteve dos sexos o que lhe importava - a sua possibilidade de consumo - e deitou fora tabús que, abalados por Maio 68, ficaram definitivamente para trás. A androgenia erigiu-se em modelo e o consumidor, mais do que uma vagina ou um pénis, é isso mesmo: um consumidor.



• A rigidez mental

Corolário do muito que se disse no primeira parte deste escrito, pensar, com a queda da ilusão racionalista, passou a actividade que, se nenhuma publicidade recomendou "pense leve!", o conselho não deixa de estar implícito na proposta de um modo de vida light.

Os códigos de honra cuja transgressão acarretavam a vergonha e a perda da "dignidade" ficaram ainda mais obsoletos e a incoerencia teve foros de cidadania. Faz hoje assim e amanhã assado, não te comprometas (e muito menos politicamente - o light repudia o empenhamento e o militante, ao contrário do diletante, não é light) não cries raízes, sê leve, ágil, espontâneo, etc., todos estes itens levaram o público consumidor a familiarizar-se - estes fenómenos têm origem noutras esferas da produção social mas só massificam a partir do momento em que atingem os "media" - com a mudança, a ligeireza, a troca, pois doutro modo como usaríamos hoje uma marca e amanhã a que logo a substitui?



O "pensamento mole" serve, e reflecte, uma sociedade em forte mudança que necessita de varrer dos seus quadros mentais referencias estáticas para se adaptar a novos tempos. Bico de dois gumes, leva atrás de si o ainda útil e o mau porque obsoleto. Este item mais deveria colocar-se num campo intermédio entre o positivo e o negativo. Libertou das hierarquias - e sobretudo da do próprio, da de um super-ego coerenciador e vigilante - mas deixou como herança, sobretudo na geração seguinte, uma fome de valores ou "verdade". Ora, sendo a verdade o resultado de um esforço e sabendo nós que a lei geral é a do menor, qualquer esfomeado de valores é vítima fácil do primeiro vigarista que surja na rua a vendê-los.

A proliferação de grupos que negociam em nome de Deus e, no melhor dos casos - mas à custa de quanta intransigencia em relação ao Outro? - vendem sessões de terapia de grupo, cujas curas atribuem não a Moreno ou a outro seu fundador, mas a Jesus, ai estão para comprová-lo.



- A perca do transcendente

As coisas valem pelo prazer que dão no aqui e agora, no imediato.

O sacrifício em nome de uma causa passou de moda, pelo menos para um ocidental, pois a vida, a existência passou a valor primeiro. A própria filosofia mudou de campo, ou voltou ao antigo, e vira-se para a felicidade quotidiana, para o sentimento do bem-estar consigo. Em risco, pois, o cristianismo do Cristo pregado na cruz, provavelmente substituído um dia, quando o feminino atingir todo o seu direito e plenitude, por uma "pieta" à Miguel Ângelo, símbolo não mais amplo que o do sacrifício mas mais apropriado a uma civilização que deseja proteger a vida e não apenas vivê-la como uma ponte para o paraíso.



- A aceitação do efémero

Se aceito o ligeiro, o leve, aceito, acto contínuo, o efémero.

Longe da aceitação da Morte, fenómeno que o produto light esquece, o efémero incentiva o gosto pela transmutação. Aceitá-lo é a extensão última do consumo a que a dita sociedade convoca tudo o que a compõe: nem já a duração de uma hora mas a de breves segundos, numa existência cuja evanescencia passa a ser a sua essencia, a sua mais-valia.

No efémero celebra-se o que não tem senão escassa existencia. Este no entanto, não pode cair na sua própria armadilha a qual consistiria em celebrar a morte de tal modo vida e ocaso se lhe associam.

Efémero, segundo o modo de vida light, eternamente efémero, eternamente jovem, efémero sempre. E o sabor vem desta onda que, suspensa, nunca rebenta, como se fosse possível prolongar para todo o sempre os breves momentos que precedem a descarga do orgasmo, num prazer eternamente renovado como o que expressa o verso de Valery "la mer toujours recommencéé". O fumo "inofensivo" do tabaco, o prazer do yogurte que não engorda, a sensação, enfim, liberta do seu desgaste.

Um mundo só bom, e naturalmente morto, por falha de contradição.



- O elogio do fácil

Do enaltecimento de uma vida de prazer e liberta da sua carga mortífera, faz-se a passagem - da mesma forma que no anúncio o corpo jovem do desportista e um automóvel se associam para criar uma imagem de potencia - para a facilidade na obtenção das coisas, as quais, doravante, deixam de ter o preço do sacrifício.

As rugas de um rosto envelhecido são desnecessárias numa sociedade infantilizada que deseja a experiência sem o seu custo, num sempre renovado laboratório que nunca acuse o seu uso. (E de novo a cruz do cristianismo a perder a força do seu significado)

Não engordar não custa passar fome mas, apenas, comer diferentemente.

O fácil, o sem esforço - valor enganador para uma plebe que, extenuada pelo trabalho, sonha há séculos uma vida de nababo sem mesmo arcar com o ódio dos que há-de explorar - essa capacidade de, a um sinal dos dedos, aceder à posse - seja de si, seja do mundo - é igualmente propagandeada pela publicidade do light - ou por toda a publicidade pois o light é apenas o seu aspecto mais assumido - e contribui para amolecer e confortabilizar o social que se lhe entrega.



Na Tv observamos meia dúzia de indivíduos a quem pagamos para, numa ilha deserta, fazerem por nós, a experiência da “verdadeira” luta pela sobrevivência.

Vida em diferido, vida preservada do cheiro da experiência.

Light vida!







Onde o light seria (porventura) útil



- Multinacionais-light

Ao contrário das suas pesadas congéneres envolvidas activamente na política (a ITT financiou o golpe de Pinochet no Chile, em 1971) interessadas exclusivamente nos respectivos lucros e muito pouco na felicidade dos seus clientes, a multinacional light caracterizar-se-à por:

- Contribuir para a leveza do ambiente, evitando poluí-lo.

- Fabricar com transparência, não empregando mão de obra recrutada no mercado negro, infantil ou diminuída nos seus direitos.

- Incentivar a democracia dentro e fora da empresa: no interior pela adopção de métodos participativos e no exterior recusando implantar-se onde os direitos humanos sejam negados.

- Distribuição periódica dos lucros que não se destinem a auto-investimento por quantos nela trabalham.



- Partidos light

Entrar num partido - sustentáculo do poder de estado democrático - é um "drama", assinalado com direito a parangonas nos jornais, para o caso dos notáveis e inútil, na realidade, para o cidadão comum que, uma vez lá dentro, se limita, na grande maioria dos casos, a bater palmas em sessões propositadamente realizadas para o efeito ou, o que é o mesmo, dada a sua ineficácia, a barafustar contra o vento.

Que resta, pois, para evitar que o cidadão comum se desligue definitivamente da vida política senão "lightizar" os partidos, tornando-os, enfim, leves e ágeis? Ou dito de uma forma culinária "ao menu".

Explique-se:

Hoje em dia o filiado num partido tem que aceitar uma solução do mesmo, ainda que não concorde com ela. A disciplina partidária assim o exige, tal como outrora, na empresa onde se empregava para toda a vida, o trabalhador obedecia cegamente ao chefe, na esperança, sobretudo se mais novo, de vir um dia a substitui-lo.

Isso acabou.

Hoje muda-se de emprego e, a não ser que crie a sua própria empresa, o homem ou a mulher comuns nunca substituirão o patrão, entidade cada vez mais fluida e virtual, sobretudo no respeitante às sociedades por acções.

No respeitante aos partidos propõe-se, pois, a mesma mobilidade, a saber:

Se o militante não está de acordo com a solução para o problema X que o partido onde se filiou, preconiza, deve reconhecer-se-lhe o direito de colaborar com outro partido no qual, para o mesmo problema, o militante encontra uma solução mais em acordo com a sua consciência. E - residiria aqui o aspecto light deste tipo de organizações - essa colaboração não implicaria, em caso algum, a saída do partido (chamemos-lhe partido-base) onde primeiro se filiou.

De facto, porque não poderá o militante – pois que o é - colaborar num partido em determinada solução e, noutra, no partido vizinho? Porque terá que resolver tudo no mesmo? Naturalmente será de esperar que o leque de partidos onde o militante colabore pertença a um mesmo espectro mas.... se não for? Porque o problema há-de ser do partido e não do militante? Ser coerente é um valor em si? O que importa, aqui e agora, não é não prejudicar o outro e cumprir o código civil?

Finalmente, ao cabo de uma vida partidária intensa, o militante terá colaborado sempre segundo a sua consciência - passo fundamental para a criação do indivíduo desmassificado - e alargado a experiência do Outro. Não é o objectivo da democracia?

A "partidarite" - tal como outrora velhos brazões das familias aristocráticas que tantas guerras pretextaram - tenderá a acabar e a ficar em realce a vida política, a colaboração interpartidária (ao alcance de qualquer e não apenas das elites quando e onde elas decidem) enfim, o serviço de Estado.

Sob a fórmula de "lightização" dos partidos propõe-se, pois, a sua aproximação à realidade do cidadão comum o qual, numas eleições vota num partido e, nas seguintes, noutro. Além de que no partido-light há a imediata noção do peso das suas decisões pela aferição dos que as não seguem.

Os partidos leves permitiriam uma vida política mais adaptada ao ritmo do nosso quotidiano e, não menos importante, mais transparente.



A contribuição do estado para o partido-light não se traduziria em dinheiro mas em mão-d'-obra.

Um partido light com direito, devida à sua votação, a dinheiros públicos recebê-los-ia, não em "cash" mas em funcionários aptos a prestarem apoio logístico na área das finanças, imagem, etc. etc..

Tais funcionários, independentes do poder circunstancialmente eleito, deontologicamente apartidários, ou verdadeiramente de Estado, seriam, afinal, garantes da ordem democrática, pois, por própria natureza de funções, saberiam, no aqui e agora, a proveniência dos dinheiros partidários.

Quem não é contra o estado democrático porque há-de temê-los?





- Escola light

Escola light? Será possível? Sê-lo-ia se fosse viável encontrar um método de ensino que não obrigasse ao esforço, onde a aprendizagem se tornasse um jogo permanente no qual o cansaço surgisse unicamente por jogá-lo. E, é claro, o jogo-método teria que ser suficientemente maleável para permitir a sua substituição, a partir do momento em que enjoasse. Mas isto é possível?



A resposta reside na tecnologia e na capacidade humana em traduzir por imagens os conceitos fundamentais que baseiam o nosso saber. Princípios matemáticos, físicos, etc, deveriam ser de fácil compreensão - aliás, começam a sê-lo - a partir de esquemas virtuais e lúdicos. Mas... e o resto? A cultura, entendida como fonte inter ligadora de tudo, de integração última do humano no cosmos, tornando a ambos cúmplices? Poder-se-à algum dia ensiná-la através de um jogo, uma brincadeira, uma simulação?



Duvido.



Se assim for, se não se mostrar viável aprender senão por um sempe renovado desejo de “querer saber” o qual justifique o esforço em adquiri-lo, não haverá nunca uma escola light, embora possa existir um ensino light, meramente técnico, separado da sabedoria, entendida esta como o molho onde mergulha o conhecimento científico e lhe dá o sabor, à semelhança do tempo que informa o vinho.

Em consequência a escola cultural, não a exclusivamente técnica, e porque exigirá sempre esforço, tenderá a recrutar um género de crianças ou adultos mais susceptíveis de se submeterem ao trabalho de aprender.

De nada serve oferecer pérolas a porcos.

Mas também é preciso ter a certeza de que as ditas pérolas foram suficientemente exibidas para que ninguém, mas absolutamente ninguém, argumente que não as saboreou por desconhecer a sua existência: estes os parâmetros da democracia, ou da escola democrática e esclarecida.



Tal escola, prodigalizando meios de cultura, requer o esforço e não será light. Mas, ao serviço de alunos verdadeiramente interessados em aprender, acabará por produzir um ensino fácil e agradável, pois “quem corre por gosto não cansa”.

Tal escola, da mesma forma que reúne alunos interessados em saber, congregará professores com gosto e vocação em ensinar, uns e outros apaixonados pela investigação da verdade, pelo prazer do "chamar os bois pelo seu nome".



Tal escola saber-se elitista - qual o problema de sê-lo desde que aberta a qualquer que a deseje frequentar? - não porque construída sobre falsas divisões, económicas, sexuais, de pigmentação de pele ou credo religioso - mas porque exigirá a cada um o melhor de si mesmo e uma mesma atitude: a de querer saber... para saber.



Quem financiará uma tal escola?

- As multinacionais-light em colaboração com o Estado.

Qual o interessse que umas e outro retirarão das respectivas contribuições?

- Passarem a dispôr de pessoal altamente especializado e, ao mesmo tempo, erudito, capaz de visualizar e integrar os problemas sectoriais na complexa globalidade social.



Os gestores do futuro não deverão ser advogados, engenheiros ou arquitectos mas especialistas em globalidade, pessoas que, pelo seu vasto conhecimento, estarão em condições de estabelecer pontes entre os diversos fazeres e interesses sociais.



Uma tal escola formará pontífices da sociedade civil, obedecendo a um único credo: torná-la cada vez mais laica e democrática. Quer no bem quer... no mal.























Conclusão



Domínio de si, domínio da natureza, domínio do Outro, extermínio do Mal...

Mas o mal d' agora não foi o bem d' há pouco e o mal d' ontem não se identificou já com o bem de agora?

Desconfortável?

Certamente que sim para quem queira tudo estipulado e bem delineado, os campos distintos e a todo o tempo os mesmos: a mudança não interessa ao universo light a não ser que se efectue dentro do mesmo ou se situe no campo da máscara.

Desconfortável ainda para quem da vida só aceita o seguro, e, de preferência, um seguro ainda seguro num qualquer outro seguro, acabando a viver de tal modo guardado - e separado de si - que mais vive morto.

O correcto, e em acordo com o processo natural, é a integração dos extremos, permitindo que a dialéctica se consuma e dê ao mundo novos mundos. Porque o "Mal" não passa de uma abstracção e, di-lo a história, o humano aprecia que lhe lancem uma imagem, como ao cão um osso, e alguém grite, se possível ao som de um hino: "Eis o mal! Ataca"

A humanidade, cujo estádio de desenvolvimento se assemelha ao do adolescente que, ora acerta no cravo, ora na ferradura, nunca recusou o que lhe proporcionasse um menor esforço e o êxito da roda demonstra-o.

O light com o seu ideal de leve, ligeiro e espontâneo, invadiu a vida de todos os dias: temos a guerra ligth (a qual "só atinge o Mal" ) ganharemos, por própria necessidade da reforma dos partidos, uns tantos que serão light e, se uma revolução sem sangue é igualmente light, então a dos Cravos, em Portugal, foi um seu primeiro exemplo.



A liberdade, ameaçada pelo reino do lucro - utopia tão prejudicial e irrealizável como qualquer outra, a não ser que, para levá-la a cabo, nos dispúnhamos a sacrificar o planeta e com ele a vida humana - ou convence o Estado do dever de ser a sua guardiã, oferecendo ao cidadão mais frágil um leque de opções que lha permitam, ou casa os ideais anarquistas, instituindo de imediato a célula humana como sede de todo o poder. Mas esta última hipótese muito poucos estão em condições de realizá-la mais se identificando com o esforço dos primeiros cristãos: sós e dispostos ao sacrifício pessoal.



O cidadão comum quer ser rico, quer ascender à categoria de consumidor máximo e, por outro lado, aquele a quem essa via não interessa, mas consciente do seu poder, muitas vezes retira-se e cala-se, num viver à parte que acha solução, subjectiva herdeira da crença do "socialismo num só país".



Pensar desenvolve o pensamento e a humanidade só sairá da crise que todas as mudanças provocam, se ousar pensar tudo de tudo, pois só assim encontrará as soluções à altura dos problemas que enfrenta, inexistentes num pensamento censurado por séculos de vida clandestina.



Quem ousa descobre.





FIM



Janeiro de 2002