sexta-feira, 22 de outubro de 2010


1989

Decantação...





2 de Janeiro
Ser. Ser intensamente algo e que todos no-lo apontem a dedo. Porque a sensação de ser coisa alguma capaz de tudo, essa é derrubadora.

28 de Janeiro
(Depois de ler no jornal o preço de certas obras artísticas)
Impressão de vazio e de valer nada. 


Dia não marcado, em Janeiro
Resignar-me a que não faço senão escrever e nem sei se o faço. Todos os outros compromissos que tomo, ou penso tomar, deixo-os perder e a sensação de perdido no caos é desesperante. Mas no caos que me sou, encontro  sintonia com o que me é fora e, por momentos, a avassaladora união é quase insuportável. Como se o humano não fosse feito para tais alturas.

Terei ao menos vivido?
Tornar-se é o resultado de uma enorme teimosia conduzida por um objectivo.
Sensação de apenas ser o que já foi vida de outros.



De novo às voltas com Paulema. Trabalho de noite, de madrugada. O silêncio em redor é um sublime prazer.
"Ladrão de Alcofa" de E.L.. Dá vontade de pertencer ao mundo dos smokings e vestidos compridos, a tal ponto L. no-lo pinta espiritualmente, cheio de belas palavras. Como custa rodear-nos de beleza se o dinheiro não abunda. 
As estrelas são gratuitas.



3 de Fevereiro
Não me interessam os normais interesses das normais pessoas. Comer, beber ou deleite físico deixam-me indiferente. Mas cumprir o que devo exalta-me. Seguir o destino, ganhá-lo, tornar-me nele, sê-lo.



26 de Fevereiro
Silêncio.

28 de Fev
De novo a luz irradia e o mundo vale.
Acredito que escrevo.
Quem  pretenda a algures deve atravessar o deserto. Objectivo que o não inclua não merece a pena.
Fazem-se coisas para não se ficar doido. Embebedamo-nos nos pequenos gestos, nas colecções sem interesse algum - que não acabam nunca - nos doces que  enjoam, nas avenidas infindas. Marcha-se na vida como outrora se servia a Pátria: com afinco, disciplina e abnegação, sabendo que se acaba morto.
A existência cerra-se sobre o que ela unicamente possui: o ser.
Os acessórios diluem-se nas lavagens do tempo.
Decantação.

Com o tempo dever-se-ia melhorar. Infelizmente sucede o contrário: ao rigor da adolescência e (talvez ainda maior) da infância, sucede a cúmplice complacência.

O discurso partiu-se, fragmentou-se, explodiu. Restam destroços, bocados soltos, e as próprias sensações também se transmutam; quem as sentia tornou-se alheio.
Há  efeitos no ar que se não sabe de quem são.


Escrever é estar comigo e estar comigo é estar com o todo de que faço parte. Nesta medida sou tudo menos só.




29 de Março
Viver.
Ter extâses, orgasmos, aborrecimentos.
A morte é a factura.



Ver, simplesmente ver, sem projectar sombras ou fantasmas no 
visto só é possível a escassos. A maioria vê por entre uma confusão de forças, impulsos, apetências e, no fim, vendo mal, cansa-se.

A pretensão de fazer grandes coisas, de falar do "grande problema", tratar do "importante assunto"...
Ser, apenas.
Hoje não há palavras.

Rompimento com Miguel. Simplesmente falta de paciência ou antes: o achar que há melhor onde utilizá-la.  Se uma coisa se arrasta  por inércia é mau princípio continuá-la.



9 de Abril
Caro Secretário-Geral do Partido "Tal",
Vou com toda a probabilidade inscrever-me ainda para 1989. No entanto aproveito para dizer o seguinte: não estou minimamente interessado em fazer parte de qualquer grupo responsável por este ou aquele sector, não desejo subscrever nenhuma ação (além da que a inscrição já implica) ou seja, não desejo ter actividade militante.
O objectivo da minha inscrição tem a ver, exclusivamente, com a necessidade de aceder a uma janela política sobre o mundo, dado a minha actividade se centrar sobretudo na relação entre mim e uma escrita. E porque ela assenta num código comum, veícula bastamente o meu posicionamento no mundo, levando-me a prescindir de intermediários.
Como se depreende, a minha contribuição para o partido é nula e poder-se-à dizer que sou alguém que paga a quota "apenas" para se sentar na sala de espera e conversar com quem lá esteja.
Porquê o partido "Tal"?
Porque o considero um movimento de opinião (influenciador de outros partidos e, nesta medida, um laboratório) que não pretende cadeiras no poder. Tal como eu.
Cumprimentos, etc




10 de Abril
Não amo a ninguém em especial e a minha atenção vai para cada ser como parte de um todo. Gostaria de ajudar a uma vida melhor, pois a época é difícil. Mas não sei como. Esta vontade de ser útil talvez substitua em mim o amor particular a alguém e, ao fim e ao cabo, me ofereça os seus salutares efeitos. Porém um sentido exterior é-me estranho. Deus existe? Se sim, que exista, se não, também não Lhe sinto a falta.
Alheio.



Provoquei Miguel de modo a que me fechasse a porta. A minha resistência à sua lassidão ameaçava soçobrar, pelo que o obriguei a uma atitude que eu tivesse depois dificuldade em desculpar...
Mais só e... mais forte?
No meio deste mar em que, na esperança de chegar ao rumo, ora tomamos um barco, ora o abandonamos, o momento é de olhar as estrelas para não sentir o vazio em volta.  Mas o meu sentido  é a literatura. (Para quê? E porque tem de haver um sentido a expressar?  Importante é que funcione e se viva o menos mal possível). Palavras, papel, tinta... Que a minha arte distraia minimamente  os outros do caos da vida, os leve a olhá-la de uma maneira mais consentânea com o prazer, menos dolorida. O comprazimento na amargura é  estúpido. 
Isto não tem sentido? E depois?



20 de Abril
"Sinto-me estilhaçado." - esta frase que ouvi ao personagem de uma peça aplica-se-me. Reúno os pedacinhos com a cola de um projecto - a escrita? O ser? O...? Soa sempre a falso.



21 de Abril
Noite com Clara. A redescoberta da mulher. Regresso lento ao que já fui e, no entanto, este d' agora olha o doutrora e pergunta: repetir para quê? Insinua-se cada vez mais o prazer do texto. Da solidão. E também de uma companhia meiga. Exagero: passo perfeitamente só.




22 de Abril
(No avião, a caminho do congresso do partido Tal, em Budapeste)
Há um escrever todo de paciência feito, vagaroso, sem fim ou objectivo, igual a si mesmo e calmo, autónomo, que se observa no fazer de cada letra, cada palavra de que usufrui. Produto de uma forma de vida, há que tê-la para que essa escrita exista. Pelo contrário, a escrita apressada em dizer ou contar, faz-se na mira do objectivo, da chegada ao fim da página, da história por narrar. Mas para mim não há futuro, meta ou enredo e a vontade de chegar é nula.
Como na vida.



Budapeste, 23 de Abril
Congresso do partido "Tal": dispostos a pagar caro as quotas pelo simples prazer de nos ouvirmos defender o que defendemos.


Não há objectivo quando na vida se escolheu escrever. Quer dizer: escrever não pode ser o objectivo do escritor sob pena de se pressionar a um "fazer para " em vez de fazer, simplesmente.  A escrita passa-se ao nível do desejo, conjugado no presente. Desejo escrever agora mas não posso desejar uma situação (a de escrever sempre), dado que condicionaria a vida (e a escrita) a esse objectivo. O que contraditaria o acto de escrever ou o ser do escritor, pois este necessita de um presente não hipotecado. O espírito não pode estar ao serviço de nada, nem mesmo o de servir uma arte. A liberdade é a sua condição.




Budapeste, sem dia marcado, em Abril
Porque se instala o vazio? Porquê esta ausência mesmo de pensamentos como se o cérebro os repugnasse?
Espanto.
Por detrás do vazio alguém olha e se surpreende: eu.
Nesta viagem a Budapeste falhou trazer a máquina de escrever, os papéis. Sinto-lhes a falta, os dias ficam menos preenchidos, mais inúteis, e a sua vacuidade torna-se mais visível.


 A realidade sempre aquém do sonho. Escrever é menos do que "ser escritor" e a escrita não tem gosto.
Terei sido aquele que não fez senão escrever perguntando-se se o fazia...
Viajar é cansativo e só a morte da consciência deverá, enfim, ser o repouso. Nesta medida o observador está-lhe mais perto, pois não corre atrás dos impulsos. A sua diferença em relação ao puritano é que não os despreza.
Sou um viajante parado.


7 de Maio
Esgotada a casa da Rua Augusta como local de escrita. Não me excita e mesmo nauseia.
Continuo a querer-me só em relação ao mundo. Doutra forma não o sinto.



Momentos difíceis, muito dificeis mesmo. Mas pressinto a água. Sim, a água!


Inebriado por esta sensação a que desde há algum tempo retorno: sem família, credo, e muito menos culpa.



10 de Maio
Cada vez menos me sou, e todavia cada vez mais de mim.



17 de Maio
Qual a vantagem de ser lembrado?
A vida salva-se consoante o fim que se lhe der. Não  vejo vantagem em tornar-me conhecido.



Enfim, respira-se melhor: Otelo foi libertado.

Acho o mundo - de dentro da minha loucura - louco. Porque correm? Porque se enervam? Porque gritam? Querem objectos. Querem o tempo!
Doidos.
Mas é verdade que sentir a vida e o seu definhar, olhá-la de frente na sua perecibilidade causa vertigem - angústia - provavelmente medo. Pavor de ser porque este se esvai e somos impotentes. Então, num outro plano, surge a necessidade de criar coisas, arte mesmo, algo que nos ultrapasse e deixe a marca. Mas também esta se revela vã e não percebê-lo é iludir-se. Ou ainda que o não fosse...  Por que ficar na história?


21 de Maio
Fala-se do escritor da década de 70, do escritor da década de 80 e amanhã falar-se-à do de 90...
Droga, sexo e dinheiro vendem. Ou qualquer coisa desde que provoque escândalo.
A época é fútil (como todas as épocas) e o lado positivo desta é que ninguém, pelo menos no Ocidente, está disposto a morrer pela "Verdade". E no entanto a guerra está por todo o lado.  Há assim dois cenários: o da sociedade rica, cujo problema é o tédio, e uma outra onde a questão é a subsistência. A primeira embriaga-se e compra. A segunda sofre, vende-se e, mal pode, vinga-se.
A arte desistiu de ser política. É "apenas" expressão. E o que o Artista deseja é que o deixem entreter-se, mesmo que para isso se torne famoso. Os que desejam exclusivamente a fama, esses conseguem-na também à custa da arte, senão das artes... A técnica vende e é bem cotada. Tornamo-nos todos objectos em moda por algum tempo e naturalmente vendáveis. Os políticos esbatem a sua identidade ideológica. É o reino da indiferença, do "gadget". E todavia do indivíduo, do eu. Mas ai de quem seja realmente!
Calar-me tem sido a aprendizagem.

30 de Maio
Dói a queda, a falta, a míngua. É em mim que o Sol se suicida. Sou o mar que o afoga. Escassas as palavras para esta secura de sentido, este deserto de ternura. Palavras... Palavras... Mas com elas me levanto a cada novo dia. Não sei que fiz ao amor. Evaporou-se o sentimento,  resta o sabôr.
Escrevo para esquecer que existo, enquanto a morte não chega.

Sem dia marcado em Maio
Clara,
Desgosto, minha cara, por não ser igual aos outros, que possuem o prazer da cama, enquanto eu sinto o da escrita, o da prossecução de um objectivo (Arte? Deus? Absoluto?) que, não sendo carnal, é todavia erótico. Sim, como gostaria de ser normal e pedir-te para companheira no resto da vida.
Sou feliz.
Beijo.



Dia de compras: a certa altura vomito.



1 de Junho
Sou o meu obstáculo.



6 de Junho
Escrevi uma carta a X, requerendo-lhe apoio no Conselho de Leitura de que faz parte para a representação de "Dilúvio". Afinal quero ou não ser conhecido?  Sim, há momentos em que, no frenesim das celebridades, me toma a febre de me celebrizar também. Um dia, por um intento destes que me atacará e que surtirá efeito, ficarei irremediavelmente célebre. Bem feito.



Sensação de que não existo, que sou mera marca doutros em mim, e apenas pelo espaço da intensidade com que ma imprimiram. Depois, outra se segue, ou fico no vazio, na minha enorme capacidade de prescindir de tudo. Despojo.  E eis o "mundo coiso", desnecessário, inútil. Que querem? Quem são? Porque os sôfro? Sociedade?
Solidão.



O objectivo dos outros, a sociedade dos outros, as preocupações dos outros, os outros, em suma, cada vez me são mais insuportáveis. E todavia a minha capacidade de escuta aumentou e, mesmo, a ternura que nutro pelo mundo. Enfim, uma displicente compreensão. Que no limite não compreende. Ou que nem considera tal importante para atribuir a alguém o estatuto humano.
Este desinteresse pelo que me cerca não é incompatível com o querer saber como os outros vivem. Mas enjoa-me o mercado da Arte e raramente consigo ler uma entrevista de um qualquer "deus" em moda. Aliás, "o que se faz" é-me indiferente e, quanto à minha produção, desejo conservá-la até mais tarde possível ao abrigo do público. Não quero público.
N e Y convidaram-me para a sua banda. Querem-me uma vedeta-rock?



10 de Junho
Paz.
Nenhum conflito, desejo contrário, vozes clamando proibido. O que é, é. Nenhuma preocupação em aparentar o que quer que seja, o fazer de, mostrar. Sou, apenas. E este ser compraz-se em si mesmo sem desejos.  E nao há luta por um primeiro lugar ou nome nos jornais. Daí adviria sobretudo dinheiro mas, face a ele, a atitude  é de sensata distância. O que se pretende, ou melhor dizendo, se faz, é olhar a tudo como quem passa pela primeira vez por um sítio de que lhe disseram "é digno de se ver" e onde se tem a sabedoria de não nos envolvermos nas disputas dos autóctones.
No meio disto, desta sensação de levado pelo vento, da fluidez que me é, ou em que me tornei - excesso de reflexão ou efeito de leitura que nunca passou? - há algo de perene: a escrita. Sou um acto de linguagem, uma espécie de máquina que transforma sensações em linhas. E apaziguo-me. Ou seja, fui atingido por uma doença que me devora e se chama "literatura". (A  dúvida "mas eu escrevo?", é o meu Satanaz.) Porém não há "A" escrita e a minha é, simplesmente, uma. Sou enquanto a produzo. E ambos, autor e obra, não passam de acidentes. O pó vence sempre.

11 de Junho
Massacres na China.
O retrocesso de uma parte ínfima que seja (e não é o caso) da humanidade à barbarie afecta a evolução de toda a espécie e põe na ordem do dia a besta que nos reside.
Entre certeza alguma e uma verdade que condena não há escolha possível, pese ás indecisões e ao tédio. Aliás, velar pelos direitos da vida não é já em si um programa? Nesta questão, mau grado o meu vazio, sou inabalável em reconhecer que aquele só é possível em regime de liberdade. E o meu choque, o meu desgosto pelos eventos de Tianamen são reais.
... E todavia, uma minha parte - ancestral - compraz-se no sangue derramado, goza com o sofrimento, ceva nele, sente que o massacre lhe pertence e a aclama.  Eu, que me assisto decepcionado, confio mais no "meu" gato que neste humano.



13 de Junho
Primeiro a escrita. Depois a sobrevivência económica.



23 de Junho
Não vender nenhuns dos meus momentos de silêncio, não ser a boca ansiosa de palavras, nem a orelha sempre à escuta.
Ser, apenas.



No limite tudo o que o escritor escreve tem interesse literário dado que nele a deformação literária (falo do "veterano") torna-se natureza. E é essa perca de si que ele busca. O vazio. Para ficar, apenas, a construção literária. Então há duas ordens: ele (ou a sua ausência) e as palavras, a sintaxe. O modo como se organiza essa relação é o estilo.



Sem dia marcado em Junho
Isto é um nojo.
De que me serve a vida? Para ganhar dinheiro? Ou para passá-la, preenchendo-me? Mas este meu preenchimento é tão desrazoável que assusta. Que há em mim que apela a deixar tudo e ser peregrino? De quem? De mim mesmo? Indo ter com o que, então, serei? Caminho para mim? Sim, um dia virá em que não enganarei mais esta vontade de deixar, e seguirei.



Sem dia nem mês
Saída do partido X. Quero votar onde quero votar e não onde me digam para fazê-lo. De mal portanto com a chamada disciplina partidária.





Infelizmente uma vida não é suficiente para que se atinja o aperfeiçoamento em muitas actividades. E se a expressão não existe sem a libertação da canga técnica, quantos mais campos artísticos se experimentem, menos domínio se terá em cada qual. Alcançar rapidamente a sensação do absoluto, a libertação da gramática.
A técnica é para esquecer.




19 de Junho
Duro como o diamante e dúctil como um verme para levar a barca ao cais.



Os outros são a nossa prova.


Nós escolhemos? Sem dúvida. Mas a vida processa-se por entre escolhas e determinismos.



Se algum dia a compreensão da obra, a sua acessibilidade, interessou, esta é a altura em que a tónica acenta exclusivamente na possibilidade que essa mesma obra oferece ao seu autor de chegar ao estado de "deus", isto é, à harmonia que alguém alcança quando de bem consigo.



Porquê arte? Porquê ser artista? Quando lá atrás decidi não ter, aderindo, como a maioria da jovem "intelegentsia" de então, ao comunitarismo, era ainda o despojamento que buscava, o abandono do material para alcançar o puro espírito.
Hoje, vinte anos passados e desfeito o sonho político, busco na arte a medida, a ultrapassagem das dificuldades inerentes à matéria, (no caso a linguagem), com vista à simbiose entre dentro e fora.
Ao pôr no papel uma gama de desejos, características, formulações, sinto o obstáculo do código linguístico, a dificuldade em transformar um cortejo, tantas vezes de obscuras pretensões, em sons límpidos, através dos quais diga o que quero  como se, finalmente, tivera atingido esse objectivo por mero acaso.
Tornar o trabalhado "natural", o informulado ordenado, o caos em despojado sentido.

Na vida não se pode ter medo de ousar.
A sensatez nunca inovou.

1 de Julho
O meu erotismo satisfaz-se cada vez mais no olhar. O belo passa  para a categoria de conceito e não imagino tocá-lo. Seria torná-lo real. Depois, há uma sensação que se apura e é a do vazio. A queda. A esta ampara-a ainda a literatura.
Mas sim, gostaria de encontrar o grande amor. Mas perdi a crença nele. A este nível o real não admite sonho.
Sou uma espécie de monge da expressão artística.
A minha obra engana a morte.



6 de Julho
Disposição zero.
Os ensaios com a banda de música continuam. Ser ao máximo, desenvolvendo todas as potenciais capacidades. Viver pode ser agradável e simples: sem pressas, com amigos, boa companhia e a morte que venha sem grande drama.



7 de Julho
Nenhuma necessidade de deixar marcas para a posteridade. Esta soa-me ridícula.




11 de Julho
Desespero.
Leio e revejo os meus escritos tentando perceber se valem para além de mim mesmo, se há claridade no que faço. E há sempre uma emenda possível... Necessito de acreditar que escrevo, não consigo fazê-lo, e desespero porque outra coisa não me interessa. Tudo o resto é passagem de tempo, vaidade, distracção.




12 de Julho
Carente. Carente. Carente.

Só o nada me envolve e... asfixio.




A descrença no meu destino literário atinge o apogeu e  sinto-me como crente abandonado pelo deus.





Capaz de me apaixonar pelo que minimamente me ofereça o pretexto, tal o vazio que me assola e estoira.
Vontade de chorar sem já ser capaz. O choro está-me aquém. Não o aproveitei.




12 de Julho
Desfaço-me. Literatura, caminhos, suportes, tudo isso ruíu. Ficaram o mundo e eu, quando entre ambos havia outrora a Arte.




No fundo o desespero anima-me, pois de tanto senti-lo sei que ainda vibro. A vida resiste.

15 de Julho, São Martinho do Porto
Vim aqui a ver se melhorava.
Fazer música na banda  não resolve o problema de base, isto é, a necessidade de que me reconheçam como escritor. De novo recordo uma frase de Luis Pacheco: "quando se escreve e não publica rebenta-se pelas costuras." Será isto?




17 de Julho
Uma gazela é comida pelo leão deixando as suas crias à mercê dos inimigos, uma formiga é pisada pelos nossos pés, etc. Onde a justiça?




Um sistema de pensamento enquadra o imprevisto. A desvantagem desse sistema é a de retirar o jogo à vida. Mas como a morte nunca se anula resta sempre jogo q.b.




19 de Julho
Não olhar para trás. A seta não quer que a detenham.




20 de Julho
Vim há pouco do "Frágil", depois do jantar comemorativo de um último dia de filmagem.
Amanhã ensaio de música... Experimento papéis sociais... 




29 de Julho
De novo na escrita sem atender a mais nada: o resto ameaça tempestade.




30 de Julho
Outra vez de bem com o mundo, mesmo a sua parte  desagradável. Os conflitos e as contradições em fase de harmonia: compromisso. Nestas alturas apetece recolhimento, silêncio, observação muda e grata.




1 de Agosto
Estarmos no caminho e não o vermos..



2 de Agosto
Dou uma ideia idiota de mim. Porque o meu percurso esteve certo, teve os atrazos que lhe competiam e as coisas são o que são. Ora, ando a dizer - disse-o a X - que perdera tempo, que recusara este e aquele convite e que, por isso, não estava na situação tal, etc., etc.. Ora o que recusei, fi-lo apenas para escrever, e quanto ao resto foi sempre uma forma de ganhar dinheiro para sustentar aquele interesse.
Ser livre pressupõe a possibilidade de romper a qualquer instante. Neste social peganhoso, que cria ratos e aventureiros pelas mesmas razões, tudo leva à instituição.





3 de Agosto
A vida é uma aventura íntima.


A curiosidade é o mobil da acção 
Cazotte



12 de Agosto
Cada dia, vigia!



28 de Agosto
Não sequer tristeza mas o denso mar onde alegremente mergulhei. Acima de tudo, não se sabe se valeu a pena, enquanto riem os que sobrenadam. Porque quizemos vir ao fundo? Que aconteceu? Onde o céu e as estrelas?




2 de Setembro
Algo em mim se cala. A minha necessidade de dizer é menor, talvez porque haja compreendido o valor da palavra. No silêncio me guardo.
Acabo o pagamento da casa, cumpro certas tarefas que me impus para me dar apenas à escrita. Esta, apesar de já não me ser obssessiva ainda entretém: aliás, a construção da frase talvez me atraia agora mais, pois não a vivo com tanta paixão. No entanto, ao escrever isto, sinto que minto, que posso passar tempos infindos fechado no quarto colando palavras. No entanto a crença no meu "futuro literário" modificou-se. Agora, escrevo, apenas.
Continuo sem atender o telefone.



20 de Setembro
Há um ser fácil, cómodo, que nos defende dos gestos de maiores consequências, de mais árduo esforço. E ficamos pequeninos e domésticos.




28 de Setembro
Deixei tudo para escrever. Mas só agora me apercebo da dimensão do deixado.
A paixão cega.



Sem dia marcado, em Setembro
Escrevo e risco. E deito fora. Depois retomo e, por fim, escrevo aqui. A escrita, porque se faz  com algo para além da superfície, há que desbastá-la para que surja. Então sim, sabe a coisa indispensável e insubsituível. Mas até que se atinja esse nível é mero passatempo, entretimento sem consequências, leviandade, apenas.



Não tenho escrito. Demasiada exposição aos outros (a começar por esta rua que habito e onde mal saio, logo encontro conhecidos) demasiado contágio da doença da comunicação. E a minha gentileza a levar-me a dizer sim, sim, sim...



Mergulhados no que fazemos somos meros animais. (Mas quanta felicidade neste "meros"...)




Cada vez mais a vida como missão. Mas a profissão da maioria é só uma: enriquecer. Sem se darem conta são, única e exclusivamente, garimpeiros.





5 de Outubro
Tentar que não me chateiem. Um diário não pode ser escrito pelo seu autor com a impressão de que há-de ser lido. Nas tintas. Existe-se, logo, diz-se. 
Namoro Tomé. Rimos muito. Creio-me capaz de despojamento. É uma vantagem. Não me interessa uma vida de "prazer". Faço por aprender.
Escrever é entregar-se a um código linguístico, provocando-lhe uma tal explosão que ele se revela, e a nós nela.
Entre mim e a escrita a relação é de luta.
A arte é uma segunda natureza - terei lido isto algures?



7 de Outubro
O meu objectivo na vida era viver. Mas, em dado momento, para escrever sobre droga, mergulhei nela. Então recuperei-me e pus-me a funcionar. Agora, mercê desse funcionamento, tenho impostos por pagar e... devo funcionar ainda mais para satisfazê-los.
Voltar ao primeiro objectivo: viver.



Je crois que je deviens plus lucide devant la nature
Cézanne




Os artistas são os autores da humanidade. Captam as novas direcções e mostram-nas. Entramos num novo classicismo. Nem muito disto, nem muito daquilo mas o equilíbrio, dado que "a" verdade é uma ilusão e um excesso.



12 de Dezembro
Observo-me na carência do amor.
De vez em quando o olhar sente e o tumulto invade. Noutras alturas é o sereno seguir de um apelo.



Quero a verdade, apenas a verdade e nada mais que a verdade. E coragem para a perfilhar.



O medo de perder o mundo fez-me fugir de mim, de ti, ó Deus.
O medo de ficar só fez-me preferir a má companhia, e afastei-me. Sózinho teria ficado Contigo.



Sem dia marcado, em Dezembro
Entediado com a vida (aulas, casa, natação) deixei-me atrair por Tomé. E ganhei a intranquilidade por salário. Mas arranjei ao menos novos temas? Aprendi mais? Estúpidas questões. Ah sim, o calor dos corpos, a inquietação dos afectos. Que eu já não sentia coisa alguma, salvo a vastidão da alma, a sua aridez. Agora... agora espero ansioso um telefonema e desgasta-me que Tomé não goste de mim. E etc.. Ou seja: de novo a dança dos sentires. "Il senso"...
 E o enjoo disto como se o Nada onde já quase me perdia  de novo me faltasse. Mas o regresso ao mundo afectivo ajudou a avaliar melhor onde estava.
Escrever, escrever sempre, e sempre arranjar espaço nas linhas de uma folha. Cada vez mais em baixo, cada vez mais no fundo, perto da fonte donde tudo brota. Ser literatura, frase, a perversão absoluta.




Caça ao intelectual para as eleições, com cada partido a querer mostrar maior número de exemplares. Mas política e busca da verdade a cada momento não se conciliam. Talvez sejam mesmo contrários.




Procurar-se e reencontrar o Nada. Esvaziar-se. Depois nem uma sigla fica. Ou todas cabem.




Senhor, quero crer no que tu queres.
Santo Agostinho




Sem dia nem mês marcados
Incapaz de amar?
Para uma simples descarga física as máquinas são mais práticas e roubam menos tempo.

Tudo é o mesmo. A perspectiva é que muda.

Silêncio: lembro a palavra para recomeçar. 

"Título", sete anos depois da estreia, na inauguração de um bar no Bairro Alto.
Actuar é vertiginoso. Dado o sinal de partida - a entrada em cena - a todo o momento pode vir o despiste e eis a emoção, o desafio. Levados nas frases, nos gestos, voluptuosamente embriagados, por um lado sabe-se o futuro, e, por outro, ignora-se se o alcançamos.
Posso amar homem ou mulher e tenho por limitado quem não seja capaz de imaginá-lo. 



Prezo o domínio sobre mim mesmo e esta capacidade me distancia dos animais. Embriagar-me ou perder a lucidez desagrada-me e desgosta-me.




A premência torna-se dia a dia maior. Os anos passam e cada segundo não utilizado na realização do que se pretende é vida deitada fora.



O corpo envelhece.


Não confundir as coisas. Importa é ir escrevendo. E ser só. Eu e o mundo. Preciso desta relação para me sentir. De resto, o silêncio.



Para bem agir precisa-se de abandonar todos os propósitos egoístas. O homem não veio a este mundo para ser unicamente feliz: está aqui para ser honesto, realizar grandes coisas pela humanidade, alcançar nobreza e ultrapassar a vulgaridade com que quase todos os indivíduos arrastam a existência. 
Vincent Van Gogh




Queda do Império do Leste. O mundo creceu e há mais esperança.


O dia em que só for possível a entrega... E fazer apenas o que me reflicta a cem por cento, sem entraves de espécie alguma. Escrever? Pintar. Não fazer?
O que for, seja.



Deuses, auxiliem-me! Quero chegar!