quinta-feira, 21 de outubro de 2010

1993

Nojo da minha obra.










Lisboa, 1 de Janeiro


Um diário escreve-se para alguém imaginário, perante quem é impossível não ser sincero, uma espécie de detonador da mentira. Mas o andar dos anos, a carga das coisas e a consequente perda da inocência fazem-nos, a nossos olhos, cada dia mais criminosos. E multiplicam-se-nos as máscaras. Um diário é um espelho... e não é fácil olhá-lo. A verdade faz-se na luta contra o adversário.






Processo no tribunal: a minha madrasta acusa-me, porque não assino um documento de herança, de impedir o acesso a bens que meu pai lhe terá vendido antes de falecer. Francamente, nada tenho a ver com esses bens, nunca os procurei e mantenho-me fiel ao que disse um dia ao meu progenitor ao deixar a sua protecção: "Guarde o seu ouro que vou percorrer mundo".


Mas o mundo é uma carraça e a advogada quer que lute pela "minha herança" da qual - diz - "o querem usurpar". Pelo menos em tribunal já estou.






Janeiro, 21


Nojo da minha obra.






Janeiro, 31


Perdido neste mundo onde se luta, vence, ou não, mas, em todo o caso, se quer. E eu que não quero rigorosamente nada! Será doença? Mas como lidar com isto, pois todos os dias há que comprar o pão? Lá o tenho conseguido, mas até quando?


Desfiz-me de tanta coisa para tornar a caminhada mais leve que, suspeito, só faltar desfazer-me da minha própria pessoa.






Janeiro, sem dia marcado


Não sei que diga, como dizer, para que dizer. E no entanto persisto, como se não soubera outra coisa. Sensação de andar sobre o nada, de construir vazio.


O pior é a desatenção, perder o instante em que a palavra se ouve. Depois ela passa, já não é, esquece, e foi-se. Não se esteve à sua altura.


Escrever e não saberem quem fui, não ter havido tempo para sessões solenes nem jantares de honra. E ter escrito, ter escrito, ter escrito...






Ilídio,


Querem que me comprometa. Não consigo. Lá consigo, isso sim, uns prazos "farei isto até tal tempo" e coisas assim. Como dizes "brinco", não sou profissional. Tão pouco o quero. Não me parece que a vida tenha sido inventada para ficar célebre, entrar em quermesses ou chegar a horas. Acho mesmo esta estrutura ou roldana imbecil. Que queres? Se entro nela é por puro engano, ou porque me esqueço. De resto, a esta hora há gente que seca de fome enquanto outra deita comida fora. Logo, os engenheiros ou funcionários disto (o mercado e as suas vantagens, a livre concorrência, o salve-se quem puder, etc. bem podem limpar - passe por uma vez o cliché - as mãos à parede. Ajudá-los, fazendo arte a metro? Não quero. Aliás, cada dia me acho mais clandestino nesta coisa artística e nem sequer desejo companhia. (Mas não sou suicida e, assim, também me obrigo a alguns itens. Como seja o escrever-te este esclarecimento)


Beijo.










5 de Março


Talvez não durma, talvez o motor não páre, talvez o fim seja uma explosão big-bânquica, quântica, tântrica, originando novos mundos. Mas a morte não é concerteza.


Possesso ou possuído por Diónisos.


Deus, vem!






Trabalha-se com a morte na alma porque Amor não aparece e quando surge engana.






A sensação de vivo é tal que tento adormecer com receio de que expluda. Acordo e transmitem na rádio "Desintegração" de Messian...






7 de Março


A sensação de pequenez nunca foi tanta, nem a impressão de inoperância tão grande. E todavia, levanto-me pelas quatro da manhã, faço e desfaço até anoitecer como se fora rei-do-fazer. Talvez para não pensar nas sensações que tenho.






8 de Março


Como isto tudo é difícil e resulta psiquicamente cruel. Impossível chegar ao fim da vida sem grandes feridas e a salvação é uma quimera. Falo nestes termos pois são os da minha cultura. O eremistismo talvez proteja a pessoa do mal comum mas sem companhia como descobrir-se a si mesma? Somos carrascos uns dos outros, e oferecemo-nos em vítimas para melhor culpar o parceiro. A Peste.


Obedeço cada vez mais à minha sina e derrubo o que se me atravessa no caminho. Como um cruzado digo que sigo "a voz". Sei lá que faço!


Outrora quis escrever e viver para escrever. Agora quero viver e talvez daí resulte escrita. Ou que, de tão interiorizada, nem dela já me dê conta. Segrego escrita como outros filhos, prestações a pagar, ou coisas assim.


No entretanto afasto-me cada vez mais do mundo e todavia compreendo-o. Não lhe sou contrário nem me anima má vontade mas não me apetece consumi-lo. Neste momento, por questão de encontrar silêncio, levanto-me pelas quatro da manhã deitando-me pelas dezanove. O efeito é algo acelerador: hoje pensava que já seria segunda mas é sábado.


Perdido o domínio da minha papelada. Ela é mais do que eu.






Sem dia marcado, em Março


Portugal: a gente chateia-se. Mas chateia-se à beira-mar.






A arte é o domínio do espontâneo elaborado.






Igor,


Quem és tu, esse eu próprio de que falas? Olha a serpente: muda de pele quando necessário. Deixemos também o que já não serve, mantendo-nos fiel ao âmago. O que obriga a ver além da superfície.


Quanto ao teu desejo de vir a ser escriba, bom, trata-se de um programa de vida e significa, também, uma certa morte. Como em tudo, aliás, que se vive profundamente. A constante entre quantos se dedicaram à Arte terá sido apenas uma: a entrega. Ora, quanto mais cedo soubermos a que dedicaremos a vida, qual a coluna do nosso ser, menos faremos esperar os deuses.


A boa disciplina não nasce do cacete, mas da vontade esclarecida.


Beijo






21 de Abril


Lutar é sinal de vida. A ausência de movimento é a morte. Por isso, enquanto tiver forças, lutarei. Contra quê não importa. Por um mundo melhor, onde a dor seja menor. A necessária, apenas.


A leitura deste diário deprime-me.






30 de Abril


Afinal o que é, afinal o que fica? O antes não tem obrigatoriamente que ver com o depois, o caos é a ordem que tudo arruma.


Um cantor grita "I'm a freddom men" e pergunto-me se ainda canto a mesma canção. Que fiz do que, lá atrás, se chutava ao som daquela letra, agarrado ao vício da agulha? Onde vou? Acaso tenho mais certezas, sei mais? O desgaste é maior e o medo também. Receio a perda, a morte, em suma. Que nojo, que miséria! Como se tivesse enfiado um fato que, por mais que puxe, não sai, e aperta, aperta até me sufocar. Que nojo, que medra! Sou o mesmo? Tenho a mesma coragem? Sou ainda capaz de deixar tudo? Ou essa possibilidade provinha apenas da juventude? E agora? Velho, ou quase? Continuo sem medo da sarjeta? Creio que sim. Seja eu o vadio tinhoso a quem, por medo de ficar pestífero, ninguém dá abrigo, seja um desses a quem nem Cristo, se tal fosse possível, estendesse a mão, eu a abjecção mais completa e que nem os da própria espécie reconhecem! Pois que posso querer senão ser outro que não este que tem casa e sai de manhã para tomar a bica na pastelaria da esquina, a quem dão um garfo para comer o doce, e o come, e regressa a casa e escreve a uma secretária, mas sonha o mar e as montanhas e a vida, enfim? Que homem é este, que ser é este que se me infiltrou? Devo vomitar, devo deitá-lo fora e partir de novo mas já não sei se sou capaz. "Integração" - é o nome? Mas que tenho a perder? Lama e esterco, pó e ferrugem. Quanto mais bondosa não foi a morte para os companheiros que levou, deixando-me a mim para me trair assim! Vejam as pantufas em que me transformei, o idiota de que me ufano, etc. etc. e etc. (Nem há paciência para contar a história, o relato desta miséria)


Morro de desgosto por mim. Eu (também o digo) é um outro.






2 de Maio


Igor,


A gente tem a vida que pode, não a que merecemos. Enfim, falar do momento, desta coisa que passa enquanto ela é. Um pouco abatido (será o termo?) face ao que sinto, que represento, ao que sou...


Confusão!


E como se já não bastasse ainda nos constipamos!


Que te digo? Que não me sigas o exemplo, que não passo de um parvo a quem só outros parvos dão importância. (Desculpa se te ofendo)


Triste por ser assim e mais apreensivo, ainda, por não me ver emenda ou saber como ela se faz.


Sem alternativa.


Beijo






4 de Maio


Dia miseravelmente artístico: ensaio de manhã e á tarde com os alunos do Passos Manuel, à noite com os colegas no teatro: mas nem num nem noutro consegui o alheamento que permitiria o voo, e fiquei sempre atento, à confusão envolvente no primeiro caso, ao frio da sala no segundo. E por detrás de tudo a preocupação com o dinheiro... De bom, um doce que surgiu abandonado quando não podia comprar nenhum. Providência? E todavia devem-me ter evocado e aplaudido na estreia dos miúdos pela noite. Fria glória.


Também a sensação de que não pertenço a nada, senão a mim mesmo, à minha voz, a isto que alguns chamam Deus, consciência ou coisa assim. Livre. Capaz de tudo sem me ater a nada, desde que essa voz me ordene que a siga. E este sentimento de não dever obediência a mais coisa alguma faz-me, finalmente, feliz.






6 de Maio


Igor,


O que senti (e sinto) agora que cheguei a casa depois de um malfadado casting. Ridículo. Apenas ridículo. De tal modo ridículo que me apetece chorar e não aparecer a ninguém.


Não presto, sou uma nulidade e, ainda por cima, sinto-me mal perante a segurança dos outros, dos seus óculos escuros cheios de importância. Parvo até não mais.






7 de Maio


Venho escrever a ver se melhor (me) entendo. Talvez não seja alheia a isto a reportagem que vi sobre esquizofrénicos onde um dizia que, em tempos, se atribuíra como dever a pacificação do mundo. E eu? Tenho alguma tarefa especial a cumprir? Não a distingo. Houve o desejo de escrever... Passou? Digamos que sim. Mas, ainda na primeira fase, logo ao início, aí pela adolescência, desejei o Nobel: deve ser normal a escriba em início de carreira! E agora? Serei de facto escritor? Neste momento sou levado a pensar que sim, pela simples razão de que amontoo papéis com coisas escritas por mim. Ora isto assusta-me: é sê-lo da pior forma. Aqui compreendo Kafka. Mais vale destruir tudo! Sim: corro o risco de vir a ser um pequeno escriba que, enfim, lá foi rascunhando coisas. Isto quer dizer o quê? Que não me imagino "grande"? No fundo há sempre a esperança. Uma esperança sem crença? Ou acredito porque "tudo é possível"? No limite (face à impossibilidade de discernir o assunto) passo adiante. É isso: não consigo saber. Até porque sou confrontado com a recusa sistemática dos meus escritos. "Eles não têm valor" é a conclusão lícita. E no entanto não desisto. Porquê? Por hábito? Ou porque, no fundo, a escrita é um entretenimento e viver sem ela seria bem pior? Essencialmente será isto. Mas também é verdade que escolhi a vida e não uma profissão, um hobby. Logo, se outra coisa me preencher, a escrita desaparecerá. Não mantenho o que quer que seja apenas "porque sim".










9 de Maio


Situação de perca, despoletada, quer por mais uma recusa de editora, quer pela súbita falha do emprego. A vida amedronta-me. Outrora vendia na rua e afizera-me a isso. Depois, com o dar aulas deixei de fazê-lo e agora custa-me voltar à venda ambulante. Que fazer? Atravesso um deserto e já não sei se chegarei à água. E o sentimento de que isto é tão clássico: "Artista Sem Meios". Mas sê-lo-ei? Não serei antes uma forma?






10 de Maio


(Depois de um espectáculo de Serban Andrei)


Depois de uma boa obra todas as complacências que permitem as coisas menores desaparecem.


Nos últimos tempos - fruto do teatro que me obriga ao contacto com outros, ao invés da escrita que me coloca apenas perante mim mesmo - ganho gosto em enfrentar de viva voz as opiniões contrárias e em afirmar a minha.


Vontade de actividade política, de colaborar com uma organização do género. Devemos acentuar não a solidariedade mas o egoísmo esclarecido, como lhe chama K. Popper.






22 de Maio


Dia entediado.


Ela apanha-me ao telefone e saímos juntos. "Apenas beber um café" - digo, já a defender-me de longas estadias. Encontro-a. Vem, como de costume, elegante. Diz-me "Já provaste as pastilhas X?" A pergunta soa idiota e lembro que já me aconselhou a comprar uma campainha para a porta de casa, substituindo o sino que lá está e que, pelos vistos, não lhe agrada. Gosto de badalos! – respondi. A conversa entretanto faz-se de coisas de nada: ela não sabe apreciar a natureza e tornou-se uma debitadora de publicidade. Subimos a pé o Chiado, é domingo, na rua passeiam outros que não puderam sair da cidade ou já nem sequer pensam nisso (ao cabo de algum tempo a miséria faz pensar pequenino) e o ambiente é tudo menos festivo, embora todos os que cruzamos festejem o dia santo, a pausa na escravatura do "trabalho para pagar as prestações".


Como não podia deixar de ser, penetramos num centro comercial. Leva-me ao café do terceiro andar. Num tom que se pretende de fundo mas endoidece os ouvidos um cantor em voga matraqueia uma "música". "Faz muito barulho" digo. Ela não percebe a alusão e escandaliza-se. "Barulho?" - Afinal nem tinha intenção de dizer mal do sítio e a apreciação fora inocente, senão espontânea. Mas afaço-me e continuamos sentados. O café é péssimo e entretenho-me a pôr-lhe água para dentro, ao mesmo tempo que o provo como quem faz experiências no laboratório. Por fim aquilo acaba - falamos de quê? Nem o lembro! - e saímos porta fora. Numa galeria há uma exposição e ainda tento salvar o dia. Mas as pinturas não têm qualquer brilho e a única coisa que registo é a foto da pintora, no catálogo, bonita e vistosa. Nascida em Paris - diz a biografia.


Cá fora levo a minha acompanhante ao transporte.


- Telefonas?


Digo uma piada idiota e sinto-a fisicamente atraente. Poderia ser uma despedida romântica mas é apenas um alívio.


Se não me instalo brevemente em silêncio e só, soçobro.






As pessoas a saírem de debaixo do chão, do túnel do metro, prontas a funcionarem. Nunca viveram e na fábrica, no subterrâneo, aprenderam comportamentos, adquirindo de imediato um aspecto usado: velhos, adolescentes, crianças, meias idades, etc.






1 de Junho


Valha ou não, tenho direito à minha afirmação.






18 de Junho


Uma distinção num concurso dá-me a possibilidade de publicar numa colecção de teatro.


De dia, monitor numa colónia de férias, experiência traumatizante por ver os miúdos reprimidos e (mal) controlados. De noite "Feira do Espectáculo", estádio 1º de Maio, numa tal "Floresta Negra" onde me visto de "Morte" O público entra e nós... assustamo-lo. Uma pessoa chega a adulto e… é isto!






Passei quinze dias numa colónia de férias, a cumprir horários em horas de ponta, a aturar gente - adulta - com quem não escolhi conviver.


Trabalhar - uma coisa que engloba o atrás dito – é odioso. Se o tivesse de fazer não sei se não preferiria a vagabundagem ou o suicídio. Assim, vivo num abismo onde o dinheiro falta sempre mas, ao menos, respiro mais fundo.


Cecília chamou-me "criança assustada". Talvez. Mas o que me aterroriza no mundo é o que as pessoas fazem para o tornarem pior.






20 de Junho


Não consigo ser normal, pois mal deixo a sensibilidade expressar-se "normalmente" logo me vejo fora do normal.






Mais uma vez recusei alugar um apartamento para não me preocupar com uma mensalidade que seria maior que a desta casa familiar.


Misérias.






4 de Agosto


A droga é o domínio do não fazer. As ideias surgem, o desejo existe mas a realização não é levada às últimas consequências e, em suma, não se efectua. O drogado sonha o sonho que o desfaz.






14 de Agosto


Figuração especial num filme de D. Se tivesse apostado na actuação para agora fazer aquilo... Assim, como preferi a escrita, lá acumulo pretextos para me manter vivo.


O actor trabalha na primeira pessoa, o escritor com a terceira. As diferenças de possessão das - e pelas - personagens são diferenças de grau.






Tudo me desvirtua, tudo me tira de mim, até as normas que considero.


A partir do momento em que Caim sobreviveu a Abel viu-se que era mais fácil ser Caim que Abel.






Sem dia marcado, em Agosto


A ciência, ao determinar a capacidade de dor nos seres vivos não humanos, contribuirá para a formação de uma ética


Andei tão perdido, tão fora de mim e de tudo, tão misturado, que não sei se algum dia terei o tempo necessário para regressar.


Uma boa disciplina é o nervo central de um bom trabalho.


Que ninguém se intitule intermediário entre Deus e os homens. Que cada humano sinta o seu mistério sem “auxílio” de profetas.






Paris, 3 de Setembro


Deixo-me ir como o herói que ora escrevo. Tanto importa e isto que digo é também nada. Se me fizesse entender!






Paris, 17 de Setembro


Louise,


Paris cansa-me mas é talvez a sua fadiga o que procuro. A literatura aprecia o "estrangeiro", seja de si próprio, seja do lugar. Alojei-me em casa de Antoinette. Podia lá ter feito família mas faltou o desejo.


A maior parte dos escritores escrevem livros da mesma forma que comem. Não consigo. É-me difícil (não pela escrita em si) mas porque a dita me sai do corpo.


Desde que nos vimos fui monitor numa colónia de ferias, trabalhei em teatro e cinema. Mas houve uma altura em que, enfim, não houve emprego. Felizmente não pago renda de casa. Escrita, sim, tem havido. Um escritor, a não ser que se cale, tem sempre trabalho.


Beijo










25 de Setembro


Igor,


Num tempo de imensa dúvida, pedes-me que extraia da minha experiência alguma sabedoria. Ora ela não surge automaticamente com a idade, pois conheço velhos que, no seu perfeito juízo, são perfeitamente tontos. Mas desde que tenhas os meios para deslindar, em mim, o certo e o errado, acho que sim, que aprenderás comigo. A questão é, pois, de método. Mas que outro ensinamento é mais útil? Não dês o peixe, ensina a pescar - diz o chinês.


A tua última carta fala de suicídio. Haverá um suicídio útil e outro tão parvo como ridículo ou estúpido? Os estóicos defendem que há que saber viver e, igualmente, morrer. O que pressupõe, em determinadas circunstâncias, que melhor é a morte dada do que uma vida que se desmente.


A estupidez, a banalidade, o “não ter partido” estão em moda ou, melhor dizendo, as circunstâncias assim o aconselham, pois a época é de crise e a fluidez cerebral ajuda à adaptação.


O mundo não é cruel ou bondoso. Simplesmente é. Agora, se lhe aplicarmos categorias humanas Artaud tem razão ao fazer apelo ao rigor: o exemplo vem da natureza.


Beijo






3 de Outubro


Apreensão.


Não se sabe o que acontecerá, o trabalho certo não ultrapassa os seis meses e perguntamo-nos pelo que segue. A insegurança tornou-se a norma e a maior parte dos meus contemporâneos vê-se, sem o desejar, no barco que, por gosto, há muito tomei.






7 de Outubro


A vida é um combate sem tréguas. Felizes os que sentem “Deus”. (Desde que não me obriguem à sua felicidade).


Não gosto dos outros nem da sua companhia mas não faço senão viver com eles.


Sou um mundo que escreve.


Solidão terrível e grandiosa.






14 de Outubro


A minha vida é uma linha que rasguei, que chora pelo que poderia ter sido e não sabe o que fazer de si, embora não se desvie um milímetro do sentido que se traçou.






16 de Outubro


A arte dissolve-me. Porém esta tarde fui uma excrescência.






18 de Outubro


Ainda não entreguei a peça de teatro recomendada para publicação e isso já foi há quase três meses... Acabei ontem um escrito. Comecei... que interessa?






30 de Outubro


A minha vida não passa de um sonho que idealizei e a que, dia a dia, dou forma, na maior incerteza quanto à sua realidade. Mas, se páro, sinto-me pior e, entre mim e o Nada, fica apenas a poeira. Assim, ergo palavras como quem constrói muralhas da China. Por favor, não me leiam! Não passo de um desastre.






31 de Outubro


Ao início o indivíduo importava-se mais naturalmente com a colectividade. Queria servi-la. Depois vem a servir-se a si mesmo. Individualiza-se. Onde o levará o individualismo? Ao reconhecimento da especificidade da sua espécie. De novo, pois, no colectivo. Tratar do seu papel no universo é o fim último do humano. Fá-lo-á, individualizando-se, permitindo a cada qual o máximo de realização pessoal e da expansão do próprio ser. O apuramento da espécie só é viável no máximo respeito pela dignidade de quanto é sujeito de sofrimento.


No dia em que as circunstâncias nos derrotarem é que não fomos dignos do problema que nos puseram.






Eu e o universo.


Que a solidão se extravase em acto artístico e o Nada me seja mais perto. Não mais amores, reminiscências, ou sombras que se iluminam.


Na solidão serei universal.






14 de Dezembro


Preferi a escrita à vida. E só vivi a segunda na indispensável medida em que me proporcionou a primeira.






Sem dia nem mês marcados


Um livro escrito é um livro a destruir. Não propriamente um arrependimento mas uma dor de cabeça.






Sou um louco tão são como os demais que testemunha a loucura através do que a sociedade intitula Arte. E assim me desculpam. Porque ser, simplesmente, não é permitido.






Tanto tempo sem dizer nada. Não ando comigo? Sim mas também com mais gente. E até com algum romance ou idílio. Todavia, é no meio desta companhia toda que me encontro mais ao lado, menos fazendo dela parte. Ou seja, quanto mais mundo, maior a distância. Na solidão me sinto, no seu sabor me afio.






Uma terra plantada de árvores de fruto e ervas comestíveis não é impossível. Pelo menos só trabalharia para outrém quem o quisesse. Porque a questão reside também no que se faz sem vontade, cuja consequência é a auto-repressão que, não sublimada, logo exige vingança sobre o Outro.






Júlia,


Impossível voltar ao antes por mais que nos doa. Perder a paixão é quase tão triste como não ser correspondido. Assim, sofro duas vezes mas já não posso reviver a alegria que sentia no teu corpo, na tua presença. Neste momento, talvez infelizmente, não respiro senão no meio artístico ou religioso. E onde esta dimensão for ausente falho.


Beijo






Tudo se desmorona.


Quando acordo não me encontro e a noite não sei onde a perdi. Quem me acorda e porquê? Fazer é gesto inútil e a morte é o que me chama. Não me interessa vencer. Não me interessa sequer o interesse ou o seu contrário mais a apatia. Ser atormenta.






Até agora o pensamento ocidental serviu para dominar a natureza. Chegou a altura não só de nos defendermos das intempéries mas também de uma tal cultura.






A chatice parda, pesada e gorda do tempo, como marca que um chicote deixe. E somos, a cada chibatada, a cada passagem do ponteiro no mostrador, qualquer coisa sempre mais falha, desgosto, apenas. E resta-se. Porque o relógio se automatizou, porque a coisa cresceu em nós e já a somos, deixando ao Nada a praia que o mar recusou.


Desgostos, amores - que nunca o foram - sombras que apodrecem na ilusão de terem sido. Tristeza pela igualdade dos dias no sistema democrático das castas.


Repugnância.


Abismo no estômago por já não ser suportável a visão das coisas eternamente perecíveis. "Vento! Ar! Coragem! Precisam-se!" - Os candidatos não deverão ter mais que dez anos.


Na bruma sebastiânica nada cresce nem os fantasmas apascentam. O culto dos antepassados na última prateleira do mercado e, por falência de procura, o ritual foi substituído por uma máquina de "flippers" Crianças chucham nos dedos e desaparecem dentro de si. "O meu filho desforrou-se!" - constata uma mãe aliviada.


Algures uma chávena de chá seca por falta de lábios que a acariciem.






Não escrevemos o que queremos mas o que podemos.



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