sexta-feira, 22 de outubro de 2010

1991



Não sou, invento-me!








15 de Janeiro
Dor pelo início de mais outra guerra pelo petróleo. Melhor digo: mágoa. Faço parte desta humanidade e no entanto distancio-me dela. Se fosse necessário viver à luz de velas para que ninguém morresse em combate qual o problema? Infelizmente isto não passa de um idealismo e quando o planeta inteiro tiver a mesma guerra o inimigo será ainda o homem. A ferocidade levará sempre à luta.


21 de Janeiro
Não sei. Perdi o rumo? À deriva. Desespero. Não acredito - ou muito pouco, qual luz muito ténue - no que faço. Nem n' Isto. Não me encontro. Sou uma carga de projectos, folhas que preencho a fim de que me digam quem me é. No limite não existo. Entre mim e isto (esta verborreia de escrita) perdeu-se a distância e não me distingo. Talvez seja assim mesmo, talvez nada seja afinal. Resta a vontade (ela ainda!) de preencher folhas, porventura por hábito, por horror ao tédio. Sonhei grandes desígnios, coisas incríveis! Pobre doido! Contenta-te porque ainda respiras!

Não largo, não largo a caneta e creiam - porque assumo este diário como coisa para ser lida - que já nada me leva a continuá-lo senão o vício, o entreter do tempo. Pudera eu expressar o nada, o zero, o vácuo que me habita!
A guerra na Tv como filme de terror em episódios que nunca acabam. Mas o desfecho adivinha-se.


Isto o que é? Movimento por preencher, tendências por seguir, coisas... Não interessa. Desespero. Desespero ainda apesar de tanta certeza, de tanta direcção apontada. Dois lados (ou dois eus): um indica, diz, doutrina; o outro vem de um fundo que só sente as vagas a invadirem-no. A morte chega? Esperança numa reunião metafísica. Literatura, literatura, literatura... Pegou-se-me à vida e não alcanço despi-la. Que merda! Isto é coisa que se me faça? Nem mais uma palavra!



Sem dia marcado em Janeiro
Hipótese zero. Caia o pensamento, sacrifique-se a vida, derrua tudo. Hoje não é dia de ser e existe-se por engano. Fui um equívoco, não vêem? Linha submersa no horizonte, afunda-se-me  qualquer caravela que saia do cais. O adeus é uma fadiga sobre-humana e a escrita a custo se sustenta: abaixo dela nada, a decomposição de um cadáver nos trópicos. Nenhum gesto, sentido algum evita o naufrágio que se prevê a pique. Amor, o que é? Família, que seja? Humanidade e nojo, fornos crematórios aos quais me abandono e onde já nasci: a minha memória são cinzas, arames farpados, fotos queimadas no tempo. Salvem-me! Salvem-me - diria o protagonista se fosse Sexta-feira. Mas o calendário é outro, os meses mascaram-se irreconhecíveis e as conversas desbocam. Uma bebida à frente, a esperança da perca, salva-vidas neste nulo. (Alguma coisa remói: a escrita?)
No ar, no éter, no vazio, tudo deflui e escorrega: mas a queda não se concretiza, o "splach" não soa e é a contínua suspensão sobre o abismo e a tortura: jacarés ou leões, que importa?
Agonia sem esperança, lá vou vivendo mais este dia.
Terrível espera.


Eu e Júlia: o conflito como lugar erótico da reconciliação...

1 de Fevereiro
Porquê esta vontade de ir mais além? E confundir isso com a celebridade! Ridículo. Ser reconhecido? A impotência é tanta que esse mesmo desejo cansa e afasta. A vida é uma maré que não se alcança.

Destruição. Anulação. Ser pelo outro lado. Ambição alguma. Não querer nada. Contemplativo, apenas. Peça de mobiliário deixada ao deus-dará não sei a quem pertenço nem o meu uso. Alguma coisa saiu errada. Agonia-me o esforço por chegar a parte alguma e faço o que faço por um azar que desconheço porque me obriga. Quero isto, quero aquilo - nada. Nada é o que me toma e desforro-me tão ôco como do lado de fora.
Cheiro a fim, a morte, a destroço. Ressuscito ou engano-me contando-me histórias? Teatro ainda? Tanta insegurança, tanto nada em tão pequena pessoa. E, todavia, outra coisa não alcanço senão continuar a subida (nem luta lhe chamo, pois não há força naquilo que se faz por impossibilidade de fazer outra coisa) disto que se arrasta dia-a-dia.
Desapareci algures. Sinto-me menos. Porquê? O meu eu é difuso. Acreditei que se tornasse intenso, poderoso, sempre presente e dissipou-se, espalhou-se pela atmosfera como polén levado no vento. Assim, face ao eu dos outros, sinto-me indiferentemente atraído, incapaz  de lhes opôr resistência. Então, restam certas normas que se tomam por conduta: não fumar, dizer os bons-dias, etc, ditadas pela mera sobrevivência. Não tenho vícios mas gostos. Alguns destes,  sobretudo os que dependem do Outro (nomeadamente a relação sexual) tendem para a anulação. É melhor não interessarem. Retiro-me em mim e já neste centro encontro repouso. Que as preocupações alheias não me contagiem, não venham a preencher um eu tão lasso e vago com problemas que, afinal, nem sinto. E terei paz, a qual não será  inerte ou aborrecida, desde que entregue ao estudo dos demais. Mas o próprio pensar aborrece. Então leio jornais como um contemplador de acontecimentos.

15 de Fevereiro
Meti a mão pela saia, apalpei o santuário, sem medos nem anseios, gesto, apenas, a provar a sua existência. Depois, ali fiquei, já sem mão, sem nada, a sentir o tempo, a vida, o seu pulsar.
Se a juventude não fosse deliciosamente cega (ou redondamente parva) toda a gente se suicidava aos vinte anos.
Tudo isto é inútil, tudo isto é vão e no entanto não pode ser doutra maneira. Ou pode? Onde o cruzamento que não deveria ter sido? Não sinto. Perdi o caminho, são-me algumas coisas ou lousas que desconheço, e o que ficou foram cascas de noz, invólucros que mal se distinguem. (E quem é este que vê?) Não importa. Também o que se diz é tão pouco! Angústia. Ou medo? Pavor? Deixa lá! Não te mintas! Se não sentes não queiras sentir e mais vale uma má máscara que o nada na cara. E todavia... Mas a ausência é impossível e há sempre qualquer coisa - resquício de já não se sabe bem o quê, talvez cola, talvez... Oh, captar a primeira frase, a que, mal os ouvidos ouvem, logo ganha o concurso de chegar antes das outras ao papel. Intromissão permanente da escrita, necessidade de manter o gesto vivo para que a dita se faça, o eu não  cole ou, simplesmente, fuja. Ainda Estás aí depois de tanta batalha? Escutas? Vem a minha mão beber água! Vem!  E feliz, nesta felicidade toda beata, toda de continuidade feita, ouvindo afinal coisa alguma, ou já confundindo tudo, os ouvidos no ar ou no cabo do lápis, apenas. Que se escreve? Que se dita? Vale? Pergunta idiota! Aqui o mundo é outro e basta a sua existência. Rei do absoluto. Isto é: do momento.

Nada, salvo o incomensurável vazio. O difícil para o vulgo é construir conscientemente a vida. Tal tornou-se-me possível porque iniciei a viagem com um "não quero ter nada", passei pela acção para lhe ver o efeito e logo cheguei ao "mesmo que não sirva para nada, faz-se!". Hoje... hoje simplesmente, estou. A escrita face a isto?  Dá-se. A  serena disciplina tomou o lugar da necessidade. O absurdo já não incomoda.

Sem dia marcado em Fevereiro
Imprescindível a retirada. Reduzir-me ao silêncio. Não dizer. Ficar toda a vida mudo e que não me perguntem se quero pequeno-almoço ou vou ao cinema. Nem sou disso! Porque me confundem? E lançar granadas pela janela a cada vez que a abra, furar os olhos de cada pretendente a meu Leit@r. Ou escrever coisa alguma. Ser, apenas, e que nem isso se perceba ou comente entre amigos. E estes, para que os quero? Para as más ocasiões? Elas não existem ou são-no sempre nesta forma aguda de ser gente. Não me digam que  ganhe dinheiro ou entretenha a fazer histórias! A única coisa a  que assisto é tornar-me vítima de mim mesmo. Tudo menos disto é pouco. E ouvir, ficar num canto caladinho a escutar a voz que dita "é isto!" "olha aquilo" não permitindo que nada se intrometa entre mim e ela.
Nem Deus.

Sem forma para o meu nojo.

1 de Março
Entrámos na ilusão. A realidade, submetida ao "make-up" dos media, torna-se no modelo.

Vontade nula de fazer. Idade? Mau ambiente? Crise? Desinteresse? Não percebo. Ao mesmo tempo desejo de me isolar, fechar com livros, papéis e similares. Desdenho o exterior e o corte com pessoas e coisas acentua-se. Não todavia com o que me apela e exige. Mas não sei para quê ou porquê. Provavelmente a pergunta não interessa.
Sinto-me ridículo a inventar histórias e a própria ideia nauseia. Talvez me agradasse uma forma de contundir mais com o real. Possível que este tempo todo na clandestinidade, enquanto tantos se afirmam, me perturbe,  faça desconfiar da própria validade. Mas afinal: estou melhor em mim? Ou diluí-me, não sinto, como se o centro me fosse fora, os outros me preocupassem mais? Excesso? Generosidade? Fuga ao interior? No fim invento este diário apenas para ir escrevendo: a acção assusta, repugna.
Da editora X que vão editar-me. Se isso me trouxesse a independência económica! Sentiria que digo qualquer coisa que interessa a outrém, a segurança de que o meu código tem quem o descodifique. Porque neste nomento a sensação é pequenina e medíocre, como se os meus gestos, o meu próprio acenar fosse apenas de uma mão à outra. Não urgem a confirmação social ou o êxito mas o perceber que me ultrapasso, que deixo de ser privado. A sala de estar asfixia-me.

Tema da conferência: as intenções do artista ao produzir um objecto artístico. E eu com uma sensação estranha. Estava a mais? Era inútil o que ouvia?  Algo a ver com o ridículo.

Não fui ao concerto de Tal., artista tido como "agressivo". Doer-me-ia vê-lo a exibir a sua agressividade num palco. Deixar-se pagar por isso.
No entanto é normal  que o objecto artístico expresse agressividade, denote o mal-estar do ser vivo, sobretudo numa sociedade que, de tão globalizada, se tornou globalmente opressiva. No teatro, esta agressividade traduzir-se-ia, por exemplo,  pela morte do espectador. Ou seja: um teatro do qual se saíria renovado, incapaz de conviver com a realidade protocolar.  O choque como terapia, um espectáculo que afinal não se deixassse consumir.

6 de Março
O universo é-me inconcebível e faço parte dele.

20 de Março
Descubro a escrita para Teatro, e a felicidade com que me nascem diálogos na cabeça é assombroso. Como se todo eu fosse feito de disputas, conflitos, até rebentar deles. Se pudesse encenar o grito!
Sou feliz!
Quem dorme numa altura destas? A morte é uma coisa espantosa! Como se pode morrer depois de estar tão vivo! 


Só... acompanhado. Aguentemos. Há os amigos, o amor... Vontade de me desfazer, des-existir e, todavia, desejo de espernear como miúdo que acaba de nascer. Eia vida, estou aqui! Eis-me, faz-me o que quizeres, sê-me no que te aprouver, dispõe de mim e leva-me lá onde for preciso, ao cimo mais acima, ao cume dos cumes! Desintegra-me, oh desintegra-me em nadas e absoluto. O resto o que é?

3 de Abril
Juno,
Acabei a leitura da "Carta a Um Jovem Poeta" e não lembro escrito tão próximo do meu actual pensamento. Efectivamente ao saber que te ia encontrar, pensava falar-te do actor ou outro oficiante que se massacre com trinta mil ensaios afim de obter o que chamo, sobretudo, a supremacia sobre o seu vizinho, isto é, o reconhecimento da crítica.
Porque o domínio da expressão  confere prazer mas ele é exigido a um tal nível que o pobre que lhe obedeça só já se massacra. Falo, quer das escolas onde se sofre para aprender a pintar, quer dos ginásios onde "pretendentes" a bailarinos suam oito horas diárias para alcançarem um "pas de deux". É isto arte ou submissão à normas oficiais que exigem a uniformização de um saber fazer? Não desprezo o dominio técnico.  Chamo apenas a atenção para o lugar que o mesmo deve ocupar e que se não é prazenteiro...  Detesto carreiras, sacrifícios pela Arte e tenho um imenso prazer na vida e só ela (e mesmo assim) me poderá dar a medida.
A coincidencia entre a leitura de R. M. Rilke e o acima dito é ter intuido na "Carta a... "  posição idêntica.
Adeus e etc.

25 de Abril
Abandonado ao nada embala-se quem já é coisa ausente. As concubinas fogem do faraó envergonhado e o povo dança à noite na rua perante as estátuas deslumbrantes, o olhar descrente de quem passa e não sente. As estrelas no alto sorriem da mesquinhez humana. No deserto sem rumo nem água, a serpente assobia o hino que os xamãs entoam. Merda! - diz o sacerdote outrora do Sol e agora com a pila de fora em sinal de sabia demência. A quê? A pois? Nada, nada e pelo gargalo de garrafa caio lúcido noutro lado, num mundo ao contrário, igualmente insuportavel.
Lodo.

17 de Maio
Desânimo e gelo. Mal pouso o pé um pouco mais e logo a superficie se estilhaça, a disposição vai na enxurrada. Tento fixar-me num sorriso estereotipado e todavia ele não se aguenta. Penso - ou alguém pensa porque a ausência é-me a constância - que tudo isto, esta melancolia idiota há-de passar e rirei de novo. Sim, "ele" tem a certeza disso mas no entretanto alimenta-se de náuseas e calmantes. "A culpa foi tua!" - diz-se, amenizando o combate, lambendo a ferida que Amor deixou.  Mas o que é é, e ninguém pode substituir o tempo. Sofre, pois...  E  a raiva que isso faz.

19 de Maio
Não esperar nada. Não querer nada. Apenas ser correcto e seguir a voz da consciência.

Sem dia marcado em Maio
O problema é retomar o hábito que, se não se traíu, pelo menos durante algum tempo se deixou. E saber que aquilo que se vai dizer não há-de agradar ao próprio e - evitava confessá-lo - fará doer. Mas tem de ser por amor (ou vício) deste projecto de me liquefazer em escrita.
A traição... A constatação que um homem da minha idade (começo a tê-la) não deve investir senão em si, o esquecimento disto algures e a decepção, a ressaca. Ora, reencontra-te!
Retorna lá onde te separaste e permitiste que alguém se erguesse entre ti e a obra. Nada podemos fazer pelos outros, senão tornarmo-nos nós próprios. O resto é inútil e decai, apodrece como fruto envelhecido na árvore. Sê, portanto, e unicamente. E que te não impressione se a tua vida lembra a de um eremita, monge ou rato de biblioteca: todas as coisas são  mesquinhas ou pelo menos ridículas.

3 de Junho
Por vezes (ou quase sempre?) sinto-me idiota, saco de promessas não realizadas, qualquer coisa que devia ter acontecido e que, por mera distracção, não sucedeu. Papéis, coisas, tinta... e eu, o que queria a expressão a rasgar os olhos, a ferida  impossível de esquecer. Afinal... Desfaço-me em pequenas coisas, olhares de horas, pequenos-almoços por pastelarias - aquele é o fulano Tal, vem cá todos os dias... - actos que me são, sendo eu fora. E até já existiu um Fernando Pessoa  que sentiu o mesmo, de modo que nem a inovação me agracia. Porque não sinto qualquer coisa apenas minha, em vez desta sensação de experimentar o que os outros já passaram? Não tive coragem, limitei-me aos gestos que já sabia, cujos efeitos vinham no livro. Copiei como menino de escola sob o olhar do professor. E todavia que vontade de rasgar fronteiras, partir vidros, mastigar criancinhas! Seco neste fato-de-todos-os-dias. E que escrevo? Onde a fibra? Apetece é fechar-me em casa, no buraco mais escuro, fazer companhia às baratas e, mesmo assim, deixando-as ir sozinhas de madrugada. Porque com os outros ainda existo menos e a tal ponto que me admira se ainda me dirigem a palavra. E onde de facto estive? Na solidão mais ruidosa, no momento mais limite quando, entre mim e o nada, a confusão foi o que ganhou. Depois... depois há apenas um fazer de coisas -  preencher papel sobre papel, inventar-me entreténs como quem, sózinho, joga às cinco pedrinhas - com momentos, é verdade, onde me convenço que, sem mim, isto não existia e faria falta a alguma coisa. Mas a cegueira - ou o desespero - são tantos que continuo de caneta em riste, da mesma forma que um assassino trilha vítimas apenas para dizer que existe, que algo lhe sofreu a influência. Não é Arte o que faço e a própria palavra indigna. Apetece o suicidio, o total, o único, aquele que nem memória deixa no vizinho, ainda que seja ele a descobrir o corpo. Mentira é o que todos os dias construo, sentado a uma secretaria imaginando-me importâncias. Livros leva-os o vento... E de novo  a impotência, a raiva, um tédio-nojo capaz de engolir o mundo, começando por mim mesmo. Não sei quem sou, ou o que faço, e resta observar-me, mas de longe, para que o mal não me contagie. Isto ainda durará muito? Até quando o fedor deste espectáculo?

27 de Junho
Companhia japoneza de bailado: um ritmo que se processa sem pressas de chegar ao apogeu e este o culminar de uma série de presentes saboreados.

10 de Julho
Teima de existência que se quer afirmativa e é, afinal, nula.
Os lábios cerram-se, os olhos vêem e fico mudo: mal sei se sou, dentro é o silêncio, mais a incapacidade de entrar numa conversa onde não caiba ou que não me transcenda. Nenhuma segurança no pensamento, a sua automática perda, a dissolução no nada omnipresente. E no entretanto os outros falam, dizem coisas, a vida passa. Não sei que valha (acho que quis valer alguma coisa) e conforto-me com uma soberena gargalhada rindo de tudo. Mas não me sobrevive qualquer sentimento de "acima dos outros" ou tão pouco inferioridade: eles são e eu sou. Porém, os papéis não colam, as palavras não se perfilam em frases e é o desconchavo. No fim, passo por "pessoa calada" certamente estranha, mas a estranheza é toda entre mim e mim: o primeiro espanto é meu. Consciente disto desejo ir mais fundo ainda, cortar de vez as âncoras,  vagar no mar que desconheço. O facto de uma palavra me ser mais conforme que outra faz-me suspeitar no entanto que é apenas escrita o que quero, sendo-me ela o jantar, o almoço e, por fim, eu mesmo. Como quem escreve para se ver na fotografia ou se olha ao espelho para dizer que existe. Imagem de que sou o único juiz, desconfiando no entanto do próprio juízo. E assim os dias, assim os meses, os anos, por fim a vida. História de doidos sem médico nem cura. Ainda por cima decepciona-me o que escrevo.

20 de Julho
Deixar acontecer. Indiferente, observo e vivo os acontecimentos achando-lhes piada. O futuro são apenas as coisas que hão-de suceder. Manter a cabeça fora da corrente e deixar andar. Nenhum interesse salvo o da observação do processo.

30 de Julho
O reconhecimento dos seus próprios arquétipos é essencial para a autonomia da espécie humana. Se não a liberta do seu próprio passado, pelo menos, relativiza-o.

5 de Agosto
Escrever é cada vez mais violento. (Ao início era apenas prazenteiro) É tirar do nada (as minhas certezas - para além de uns tantos pressupostos ético-sociais - quais são?) significados, construir sentidos. Pavor... Pavor é o que me toma quando vejo que não posso adiar o momento do me pôr à mesa. Porquê? Ganhei a noção da "responsabilidade" pelo que digo? Ou, simplesmente, o vazio é agora mais claro e, do mesmo passo, a inutilidade do fugir-lhe?

6 de Agosto
Nadas. Absolutamente nadas, coisas de brincar e crer, que em si, nada valem, e todavia fazem de qualquer um herói: aqui o catolicismo, além um outro credo, tudo serve para lutar contra o inexorável e dar sentido à vida.

Só me reconheço na solidão. Em companhia a sensação é de perda, alheamento, mistura, fuga. Só sou concentrado.

7 de Agosto
Na sala de uma longa espera, cheia de esperança, a chamada finalmente vem mas o nome é nulo. Nenhuma crença, nada a que me agarre. À minha volta a vida dos outros enche-se de etapas e a minha permanece inócua, inútil, inofensiva. Derrotado sem nem sequer ter ido à batalha, veio-me a constipação no dia em que saíria a triunfo. O que devia dizer afinal foi dito e resta a repetição contínua, um sabor constante a falso. Nem choro! As lágrimas logo me devorariam os olhos. Quedo, escrevo isto e aguardo a hora. 

3 de Setembro
Sob o olhar compassivo de um Cristo muito areado, várias máquinas. Uma mulher de gestos rápidos, uma virago de cabelos revoltos vai e vem. Concorrendo com o Senhor cartazes publicitários: o galo de Barcelos, uma procissão em Fátima, paisagens  de belas praias. A sala, cuja alcatifa esverdeada condiz com um odor talvez de mofo mas que lembra urina - ou vice-versa? - segrega bafio e doença. Abro a janela e entram as vozes da vizinhança. "Vamos esperar um bocado a ver se chega mais gente!" - diz o homem que há-de guiar a camioneta.

9 de Setembro
As frases não saem tal e qual os sentimentos. Por vezes insinua-se outra coisa - a mentira - e elas deixam de transmitir o que se pensa. O combate contra a mentira é permanente e tanto maior quantas mais palavras se conhecem ou relações se têm.

19 de Setembro
A arte não se alimenta de bons sentimentos nem histórias exemplares. Tão pouco de fofas cabeceiras. Não sei onde vai buscar a sua força mas deve-a ao caos, à lama, à degradação, à morte. Porquê? Talvez porque não se compadeça com aparências e debaixo do mundo envernizado e bem esculpido subjazem o sangue e o informe. E a arte, sendo sublimação, estetiza estes elementos.

As piores alturas têm sido aquelas em que o deus se cala. Em que nada dentro de mim faz sentido, em  que sou bocados dispersos que se não ajustam, coisas esquecidas da unidade. Nesses momentos, entre mim e o cosmos instala-se a animosidade e sou-lhe alheio, alguém que  veio cá fazer nada, talvez apenas estorvo e ruído.
... Mas das outras, das vezes em que sou uníssono e harmonia, quem delas dará testemunho? Tudo é então aquém.

Sem dia marcado em Setembro
O ruído da solidão.

16 de Outubro
A vida a tomar formas que nos são, por ora, apenas ameaça mas que nos hão-de aprisionar, tornar seus definitivamente.

20 de Outubro
De novo a força e a determinação. Fim do período da conciliação, da tentativa de diálogo com Júlia.  Neste percurso - iniciado pelo desejo (ou pelo medo de ficar sozinho?) cansei-me de falar uma língua alheia. Só se é totalmente. E mais vale só que des-ser.

Sem data marcada em Outubro
As coisas chegam a um ponto onde deviam ter uma saída. Mas não. Júlia afirma-se "de principios" e é, de certeza, de programação estabelecida, não deixa que as situações se desenvolvam e acaba por ir passear só. Eu, que sinto o mesmo, que sou tão humano quanto ela mas tenho a coragemn de perceber o que acontece e assumir que o corpo manda, fico então entregue à noite que me engole e sufoca. Sozinho igualmente. Para que serve construir pontes se cada qual  se fecha na sua fortaleza? E os meus sonhos são já de morte, de vida que se intui inutilizada. Naturalmente Júlia tem pesadelos. As caixinhas oprimem.

8 de Novembro
"És uma puta, uma oportunista, uma falsa!"
"Sou isso e muito mais! E já o sabias!"
O meu nojo é sem medida por Júlia ter entrado na minha vida. Tomo uns comprimidos a ver se o choque por descobertas tão pouco épicas se atenua. Naturalmente, deixei de acreditar no valor artístico de Júlia. Pessoas que põem o câmbio acima da Arte não são artistas. E mesquinha a sociedade que as incensa. A arte tem um único preço: a vida.

1 de Dezembro
As nossas "verdades" radicam antes de mais no nosso corpo. Associamos "harmonioso", "uno", "belo" (ou "Deus" como  sua projecção máxima )  às sensações que o corpo nos prodigaliza quando funciona perfeitamente. E o caos e os seus paradigmas quando sucede o contrário.  O corpo é a nossa prisão. Tornemo-la dourada.

Falar dos últimos tempos é referir a noite, o amor, a paixão, o sexo, por fim o desencanto mais o desgosto.  Durante anos longe das atribulações do "senso" fui, a partir do encontro com Júlia, possesso - e de certo modo ainda o sou - do que pensava já ter feito em mim história. Assim, eis-me curando um afecto não correspondido, a braços com a solidão mais aguda que alguma vez senti (a noção da meia cama vazia é agora constante) e um desespero nunca antes atingido. Ando como bêbado que perdeu a porta de casa mas lembra que, ao abandoná-la, vivia em paz: uma paz árida, sem afeição, comigo no entretanto de imaginação seca,  revendo coisas d' outrora...
Agora...
Agora a inconsolável inquietação e a escrita de novo sai: a mãe que a páre chama-se Tortura.
E não sei que prefira.
Mas é verdade que lá atrás, cansado da monotonia (divina monotonia: aulas, natação, revisão de escritos)  desejei que me sucedessem coisas, pois, pouco a pouco, o encanto desaparecia, nenhum conflito me dava a medida.
Agora...
Agora é a dor por alguém que ainda amo, cuja impossibilidade é objectiva e uma sensação que há muito não tinha: sofro como qualquer mortal por um amor ido, o deus distante e frio quebrantou-se e vejo-me a braços com a vida, o seu sabôr. E como  acontece escrita (e não uma sua revisão) dou graças pela mudança que, por amor à pena, lá atrás desejei. Venha, pois, o mal que por este quinhão me cabe. Mas preterir literatura (que palavra!) não posso. A dor seria ainda maior. Eu e a escrita somos o mesmo.

23 de Dezembro
No metro entre conversas frias, ponho uma perna em cima da outra para me aquecer, e tento que a memória não me conduza lá onde um dia morou conforto. Oh minha estrela,  alumia-me!

25 de Dezembro
Talvez precisasse de ver a minha escrita nos céus, como expressão da minha ligação ao Todo, para acreditar que escrevia... Assim, parece-me que apenas conto histórias. Porque o problema está no contá-las fazendo que o conto se torne outra coisa. Viver é tão estranho! Felizmente, de vez em quando habituamo-nos...

27 de Dezembro
Não já para sair da depressão mas porque "há resultados espectaculares" o Luis, o meu médico, falou-me da possibilidade de um fundo depressivo não curado em mim e que, livre dele, me  sentiria melhor. Também referiu a possibilidade do artista ser o resultado de uma depressão latente e que, se me receitasse, poderia  pôr em causa a criatividade... No entanto, ao  cabo de tanto tempo de escrita, antevejo um período no qual os meus trabalhos surjam por  mero dever de ocupar os dias. Ou seja, de mim já pouco há a dizer. Liberto, calmo, há-me paz de espírito. Se esta se acentuar debruçar-me-ei sobre os problemas das minhas personagens mais como médico que os analiza do que como sujeito que os sente e projecta.
Depois, não acho que o  importante seja  a produção de obras mas a vida. Esta, sim, será a obra. Tomei o primeiro anti-depressivo há pouco.

Sem dia marcado em Dezembro
No caminho da recuperação. Satisfeito por me  separar de Júlia, conseguir fazê-lo. Só em mim encontrarei a paz profunda de que neste último ano andei afastado.


Júlia,
O dinheiro e não a luz dá nome a tudo. Mas a memória insiste no interdito. Não quer voltar lá onde era feliz e prefere brincar à beira do precipício. Desengonçada nas escarpas do interesse, tornou-se sua prisioneira e da sua grandeza restam distantes histórias. Assim, a amarga lembrança envenena os dias abortando-lhes o futuro. O que podia ter sido não me deixa como se, com tal cuidar, tudo fosse de novo  possível... Ilusão de quem não aceita o avesso das coisas e insiste no seu lado mais belo? Não podia ter sido doutro modo? Mas tu chegavas e não havia no rosto a alegria da chegada. Era assim e assim se aturava. Porquê então? Procuro a todo o custo converter em graça o que não teve graça alguma. Esforço-me, em vão, porque os milagres não se fazem sem boa terra. Talvez a aridez me regue a escrita e crie literatura: eu e o nada somos contrários. Quis deixar-te porque do mal não reza o Belo. Por isso te despedi. Agora, despenhado no abismo onde me lancei, aguardo que o futuro me ponha terra. E tu, com a tua ausência e desprezo só mostraste  que a minha decisão era certa. À vitória da atitude correcta somou-se o desgosto pela sua (re)descoberta.

Neste momento nada interessa e só desejo que o tempo passe, espasse, se esfume. Não quero coisa alguma nem penso possível o amanhã. Indeferencio-me - ou desimporto-me - e o que for, será. A distinta lembrança da tua figura embaciou-se para sempre  no quebrar do espelho. E a fissura, deixando entrever pelo seu escuro abismo, o outro lado do afecto, o interesse frio e calculista, nunca mais terá sutura.
Que pó e tempo cubram a ferida.

Fui de rua em rua, olhando de carro em carro, de esquina em esquina e tudo te parecia. Mas quem és senão a pior imagem que já encontrei, o reflexo do mal que afinal em mim há? Procuro-te, não te quero encontrar, e sou o Inferno.
Na mesa ao lado a pílula que te esquecerá: adeus dor, adeus amargas lembranças. Quando de novo acordar será outro dia, e tudo  apenas uma miragem ou melhor dito, um pesadelo viscoso e escuro. Ou nem isso: lembrar-te-ei como a uma casa igual a tantas outras entrevistas do combóio, confundida por fim  no casario. Exististe? Foste em mim?  Nunca, até ao momento, quisera matar uma memória. Mas à que me deixaste desejo a pena de morte, esforçando-me por não ta desejar também a ti. Traição é a palavra que me recordas. "Tenho por ti uma amor profundo" - ouvia e, no entanto, não acreditava. Não sabia porquê mas soava a falso. Depois, a verdade, que nada excelentemente, veio ao de cimo. Tinhas por mim, sim, um amor puramente metálico.
E tão grande é o choque que algo em mim exige que ele repercurta por todo o cosmos. Infelizmente não sou senão humano e só sei explodir em escrita. Mas a raiva e a impotência são-me tantas, e tão infinitas, que temo para sempre deixar-te marcada: Júlia, a que trocou o amigo por melhor dinheiro.
Ao demo quantos como tu trocam o humano pelo tilintar de um mealheiro!
Exausto findo aqui. Paz à minha memória. Já não te encontro nela e desse tempo restam as cinzas. Tão míseras que nem sequer merecem o falar delas.

Entre  mim e as coisas há pelo menos a caligrafia e quando já nada houver alguma coisa haverá ainda. Assim, sem mais nem menos, a frio e sem anestesia, é que não quero entrar no que me rodeia e fere. Não sou daqui, vim d' algures mas perdi o ponto do regresso. Agora,  só passando pela morte é que me livro disto e pergunto-me se, em todo o caso, ela me levará lá donde vim. No entretanto vivo.

Qual a palavra? Qual a acção? Informe, descronometradesregulado, eis como me sinto neste fim de tarde obsceno, onde a própria escrita nauseia e irrita.
Nada.
Silêncio.
Atirem com o mundo para o lixo, não o salvem e, sobretudo, não me façam leituras ou me achem isto, aquilo e muito menos génio! Se isto é ser, não o desejo ao pior inimigo! Venham a surdez  e a cegueira mais completas, o sofá frente à tv comigo rindo a bandeiras despregadas! Não tenho forças, falta a paciência (ou nem ela) e todavia sobrevivo, não me mato, teimo nesta vã glória de me sentir tão afastado, tão incapaz de chegar a quem mais desejo, de dizer o quê e o como. Amei e não fui correspondido, tive a possibilidade de comprar esse amor e recusei. E agora a solidão afoga-me e a minha integridade mata-me. Oh felizes, felizes os que podem aceitar  uma festa comprada e num ledo enleio viver tal quotidiano. Por que me fiz assim, se sofro como um miserável rato de cano, encurralado por uma qualquer decisão camarária? Não. Enganei-me, cri-me  doutra forma e não passo de um igual, de...
Deus, mata-me!
Leva-me para onde não sinta que a morte deve ser isto. Errei.  Não estou à altura daquilo por que optei e morro de tristeza pela companhia que orgulhosamentre recusei. Mas está certo: vá! Vai até ao fundo da solidão, embebe-te nela e vê o que resta. E nessa altura dá uma gargalhada. Vá, ri de ti mesmo enquanto preparas a corda. A vida que é senão uma comédia? Caia o pano sobre a tragédia.

Tudo me é estranho. Fiz bem? Fiz mal? Não sei o que fiz. Mas fi-lo porque não me sentia bem. Agora aguardo uma ida não sei para onde, parece que comprei uma viagem para Paris.

Carta a quem?
Escrevo-te em grande lástima. Apetece-me chorar e as lágrimas não caem. Cansaço, enjôo e mais do que isso: náusea.  Se não houvesse em mim ainda uma certa parte de pessoas e coisas suicidar-me-ia e seria um alívio. Saturado deste não encontrar quem, ou começar a perceber que as pessoas se afastam porque nõo se corresponde a uma imagem, a um não sei quê. O meu asco por tudo (e por mim mesmo) é insuportável.
Cansado do chegar a casa e haver sempre a solidão dos objectos, a imensidade das coisas em que me ocupo e gasto, numa azáfama de não dar pelo vazio em redor, onde só o nada responde. Hoje no entanto não consigo interpretar a comédia - sou um actor exímio - e as lágrimas brotam... brotam.
Oh uma pistola e um pouco mais de estar nas tintas para tudo, inclusive para ti!
Tão farto e, todavia, nem consegui contar a quantidade de gente que deixou mensagens no gravador! Tenho que mudar de vida? Esta não dá prazer - é a unica coisa que sei. E todavia aqui mesmo, neste texto, emendo uma palavra... Que significa? A boa expressão ainda me diz? Não passo de um personagem de literatura?  Mas quanto custa!

O incómodo de ser homem.

A poesia ao alcance dos vagabundos ou multimilionários. Mas uns e outros habitualmente perdem-se. Restam os artistas.

És tu que te feres nas pessoas, não são elas que te ferem.
O artista cria, além de obras, a própria vida. Mas a este último nível raros chegam. Faz-se de vontade e ela é divina.
Tristeza no coração. No centro tradicional da sensibilidade. Então a vida pesa e a gente arrasta-se como na lama. Nem a respiração funciona, além do indispensavel, nem nada luz. O luxo escoa-se, desaparece e fica o imprescindível, o que não pode ser doutro modo. A grandeza, as asas, o vôo... Memórias que foram e cuja lembrança torna tudo ainda mais ôco, vazio, sem.
Talvez amanhâ passe ou agora mesmo. Ensaia-se um sorriso mas ele cai e olha-nos do chão. Apanhamo-lo. Colamo-lo. Mas não podemos  rir  senão ele despega-se e, neste trabalho, esquecemos a tristeza no coração. A nossa preocupação agora é a boca.

Na espera de uma análise. O som da Tv com as pessoas falando. Sobretudo a recepcionista que vai dizendo só um minuto, só um minuto, minha senhora. Uma dama distanciadamente fina equilibra-se na cadeira olhando o nada. Chamam-na. É a sua vez e ela vai. Gritará? Nada se sabe da capacidade humana mas a morte tornou-se vulgar.
Na Tv discutem se o homem veio ou não do macaco, “nunca se achou nenhum elo que o prove!”, eu penso na relação fracassada com Júlia, porque me meti com o impossível?, dá  vontade de ir comer bolos, bater punheta ou qualquer  outra coisa que obrigue o corpo ao excesso, sentir o físico para anular a morte, deixar de ser pesar, apenas, algures gaivotas piquenicam esvoaçando no rio, a poluição torna-o cor de prata, cardumes de asas sobre enxames de escamas.
Esquecido do que conto, dos meus planos ou mesmo da sua ausência, corro a pena como quem, no devido quarto, deixa deslizar a merda, o até ai seu dentro.
Não sei se caio, se vôo.
Em todo o caso existo e penso:  vivo, morro ou apenas escrevo?

"Artista santo"? Que importa?

Sem dia nem mês marcados
Cansaço e todavia é mais o conhecimento desse estado que senti-lo, como se até a sua posse exigisse qualquer coisa de que já me despojei. Ou tiraram - resta saber. Ou que, na urgência do resistir, nos despimos dos confortos que os outros se podem ainda dar. Cansaço? Onde? Quando? Quem?
E, no entanto, a memória sabe que seria "cansaço" que neste momento teria, se algo, que ela também já não lembra, existisse.
































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