quarta-feira, 20 de outubro de 2010

1996







Três prémios nacionais em dez dias




















11 de Janeiro


A minha questão, a partir de certa altura, foi a de me apagar, isto é, testemunhar sem a poluição da notoriedade.










2 de Fevereiro


A ideia de me divertir, no sentido de dispersar, é-me odiosa. Integrar associações ou grupos parece-me incomportável. O mundo e os seus acontecimentos interessam-me cada vez mais.










3 de Fevereiro


É contra mim que escrevo.














22 de Março


A usura dos dias. Desgosto-me, não porque faça mas porque uma parte se me vai em juros do que vivo. A usura da vida. Uma excrescência, um fole que fica depois do vivido e, então, já não colamos à vida mas ela lassa-se, e perdemo-nos nela, deixa de nos servir, não porque sejamos seus maiores mas porque nos ultrapassa, encontrando-nos pequenos para a sua medida. E isto devido à tal usura que, por fim, já vive sem nós, embora tenha saído do nosso corpo, crescido da sua acção: o feito torna-se nosso inimigo.


Nunca deveríamos "fazer" e a vida seria então brilhante. Ou, pelo menos, á nossa medida. A decepção não sobreviria e todas as manhãs teríamos a expetativa duma estreia. Um ideal. Seríamos os capazes, os potentes. Os... Como uma folha-de-flandres que o oxigénio não respirou. Assim, ouvimos o eco em vez do grito, a ressonância em vez da voz.














Sem dia marcado em Março


Fui um homem que quis uma missão.














A máquina humana necessita - e o computador mostra-no-lo - de um critério que a unifique. E a aderência tem que ser prioritariamente afectiva, neste aspecto não há mentira que resista.


Encher o depósito de pensamentos adequados.














11 de Abril


A idade, a proximidade da morte, torna-nos sedentos de reconhecimento? Mas estaria eu de janelas abertas neste rés-do-chão da travessa do "Peixinho" que ora habito, se fosse uma celebridade ou um "vip"? Não, é evidente, mas influenciaria mais a humanidade. E no entanto a hipótese, assim claramente posta, repugna-me. Como se o poder me tornasse impotente ou o associasse a uma castração.














6 de Maio


A todo o momento se espera que os marinheiros se façam ao mar. Mas o leme empanou.














Parti a corda que me ancorava no mundo. O que pensava ser meu, único, extraordinário, afinal foi-me cá posto por voltas e esconjuros, quer de Deus, quer do Diabo, e tudo num ápice se explicou. Não há heróis, nem loucuras e a estepe apresenta-se limpidamente pejada de erros. Eia, avante!










Sós no mundo - os pais morreram pela segunda vez - ressuscitamo-nos à força de compras e supermercados.














Lambi-o muito, imenso mesmo e, quando já não estava capaz de lambê-lo mais, pedi a algumas pessoas que me indicassem onde devia lambê-lo ainda. Depois beijei-o e disse-lhe: agora vai para os torneios a ver se fazes nome! Regressou premiado por uma tal "Associação de Escritores"! E consigo trouxe um editor! Por algum tempo a questão "Eu escrevo?" talvez se me acalme.


















Oração de um idiota: meu Deus, ajuda-me a ter um dia politicamente correcto.






















5 de Junho


Dói a vida, esta coisa de ser e não ser, andar e ficar parado, querer e não fazer. Dói a chatice quotidiana e os anos a que querem que vá e mal posso desejar "feliz aniversário"


Hoje não é dia que se apresente ou coisa de que se fale, desça a noite, faça-se breu e as estrelas digam o que a luz do Sol não deixa.


Não há mais, não há depois, há este agora que resta e soçobra, troco de uma jornada gasta em não se sabe o quê - leu-se a notícia do nosso prémio literário no diário oficial da “sociedade artística” - e a angústia esteve sempre presente, mesmo à beira da folha, no cair da letra. Começou-se novo escrito. Rotina? Ignorância doutra coisa? Cegueira e teimosia? Ninguém adivinha e, à porta, o porteiro fia as visitas chamando a atenção para o rendado da literatura.


Sem paciência.


Sem tempo.


Na rua, a voz de serviço na feira do livro que lá plantaram, debita o nome dos manuscritos do dia. O meu gato, alheio e solene, quer apenas calor.






















Surdo. Não ouço a voz. Entre mim e ela ergueu-se um muro de fel e os vómitos abafam-na. O que era claro e apolíneo virou espesso e profano: a vida abandonou-se e ficou sem mais nem menos. Parva. E giro-a como contabilista que deve apresentar a folha limpa: tantos feitos, tantos desgastes, a coluna dos ganhos identica à das perdas: nem a mais, nem a menos, e qualquer sabor de aventura conduz ao despedimento.


Sensação de ser uma conta-corrente que alguém um dia saldará colocando a tampa na urna.






Recebem-se muitos convites mas não se vai sempre. Senão anda-se em tudo - já sem o bonús do completo anonimato - e estragamo-nos de tanto uso. Os outros gastam-nos e nós ajudamos.






Sem dia marcado, em Junho


A literatura tornou-se-me um destino, a actuação um desvio.






Sem dia marcado, em Junho


Três prémios nacionais no espaço de dez dias - o literário e as estatuetas de um primeiro e segundo lugares num tal Encontro de Teatro Jovem (encenei dois grupos e a minha alegria foi bem real, já que nunca poderiam obter ambos o primeiro lugar!) numa outra aldeia talvez dessem direito a um telefonema pedindo uma entrevista. Mas não tenho conhecimentos nos jornais e pelos vistos os jornalistas... (Sensação, aliás, de algo que se repete: não passei, lá atrás, da venda na rua à escrita para a Tv no máximo silêncio?)


E dizer aos outros o quê? Que gosto de estar calado?


Bem-dita confraria!






Paris, 10 de Julho


Isto é um todo e o caos num sector implica desarranjo noutro. Mas a lentidão das reacções ou o seu entupimento também se deve ao tempo, ao envelhecimento do corpo. E o económico origina uma panóplia de oportunismos.






Paris, 29 de Julho


Ontem surgiu uma viagem até Atenas e por razões económicas não fui. No fundo não ousei. Isto explica porque nos últimos tempos me vejo rodeado de medrosos, cobardes, gente que vive em estado pequenino: os semelhantes aproximam-se.






Sem dia marcado, em Agosto


Porquê esta impressão de que a perfeição não dura? Porque ao equilíbrio sucede o desequilíbrio? Neste caso não há que ver mau agoiro no pressentimento de que o bem-estar finda.






Tens que acreditar em ti, na dúvida e na certeza. Manter a cabeça fria.






De mim já pouco resta. Tornei-me escritor.






Carta a Louise.


Foste apanhada pelo espírito geométrico. Fechaste a porta ao infinito. Com que direito afirmas que não há além? Ou que há? Se não sabes, não sabes.






Lisboa, sem dia marcado em Setembro


Nojo, náuseas, vómitos, diarreia, explosão das entranhas e revoltas intestinais. Sucos e salivas. O nada, o avesso, o forro, as vísceras. O palato desgostado, os lábios mordidos. Nada. Apetece nada.


A custo continuo e não me adapto aos embrulhos ou às fitas cor-de-rosa.


Quero-me só, sem companhia.


Levanto-me, deito-me, faço o que devo e sabe a nojo: um outro apodera-se-me, consome-me as horas e as esperas. O artista expõe-se, aluga-se, exibe-se, possui-se, espreme-se para mais valia. Depois, resta o quarto, a gaveta, a não saída, a não vista, a não Tv, o não-estar-para-ninguém. E escreve-se, sua-se, aparam-se os lápis, afiam-se as penas.


Não estou, nem sei onde me escondo.


Desaparecido.






9 de Novembro


A lucidez submerge às marés vivas.










Sem dia marcado, em Novembro


A superstição é a ignorância que, em vez de dirigir o indivíduo para a biblioteca, o dirige para o medo.










O cansaço exige dispersão e barulho. O trabalho estúpido exige, nas horas vagas, mais estupidez ainda, para que a estupidificação se complete e o ser se anule. Eis a realidade da maioria que habita o planeta ou a aplicação da lei do menor esforço. Cortar a inércia só está ao alcance de alguns.






8 de Dezembro


À parte a minha salvação - realização do meu ser no que verdadeiramente ele é - nada mais me interessa. Fora disto simplesmente não me entendo e sou desvio e barafunda.










Sem dia nem mês marcados


Falta algo e nem sequer é o amor. Ou a paixão. Um vazio - talvez? - cheio de tudo, pássaros - sim, asas. Dêem-me asas! Quero asas! Asas transparentes através das quais veja o mundo. Porque não é voar que quero, é mais além e o pior que pode acontecer é a sensação de fazer um poema. A arte pura (ou a morte súbita com a paraíso à sobremesa) o cálice do champanhe que não esgota nunca, a bebedeira lúcida. Asas, asas, e mais os cumes do mundo. E flores, muitas flores... Depois... Depois é isto: escrever, escrever, escrever este corpo que não diz nunca.









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