sábado, 16 de outubro de 2010

1999









Fazer e andar










21 de Janeiro


Convencido, mais do que a medida habitual, da minha mediocridade. E isto desespera-me. Influência do narrador do "Manual" ou efeito secundário da quimioterapia?


















Furt in Odenwald (Alemanha) sem dia marcado, Abril,


Observo-me uma tendência para a cristalização a que outros - e eu também até disso me dar conta - chamam "idade madura".


Cuidado!


Depois de maduro o pôdre!














21 de Maio


Bloqueado.


Suspeito que a total má disposição em que me encontro deriva da quimioretapia, do “interfuron”. De qualquer modo sou ela.


A solidão viceja. Sem literaturas a envolvê-la, ou histórias a adoçá-la.


Fugir - diz um meu personagem a certa altura. Desaparecer - digo eu. Se o refúgio não fosse ainda o mesmo.


É tudo aqui.


















(Depois de tomar a injecção)


"O Interfuron interfere com tudo " - disse a médica.


Sei lá o que tenho feito este ano!


A reflexão pressupõe um universo coeso e discernível no qual se analisam os prós e os contras. Ora eu tornei-me vago, indistinto, nuvem. Onde a força da decisão, a sua mola, se é o corpo todo que, sob a quimioterapia, pensa, e só ele dirige? Respira-se, anda-se, reaje-se, em suma, mas a quê, é difícil de sabê-lo.


A lassidão sem o seu problema e mesmo a questão do "Que importa?" é já excessiva. É-se, provavelmente por um abaixamento geral da inteligência no que esta possui de distanciamento em relação ao que observa. As pontas do bisturi moles e inoperantes tornam-se desnecessárias. Analisar o quê, se tudo é o mesmo, uma mera extensão do nada? Oh sim, a realidade... Os outros...


(Os outros desagradam na exacta medida em que de mim, deste meu mar parado, me distanciam, incómodos como moscas aqui e além em braços desnudos. Mas esqueçamo-los porque a lembrança já deprime.)


Des-cor.


Desejos descarnados, bombons podres e sem papel que os cubram. À mostra. Coisas. O mundo coisa. O mundo de fora. Porque em mim é a deriva. E vago, vogo ou vagueio ao sabor de quê?


Nada, em mim, tem força bastante para se impor ao exterior e mantê-lo à distância. Assim, tudo comove, tudo requer intervenção e... irrita. E algo sussurra que o perigo espreita, está iminente, à distância que vai de mim ao Outro. Porque eu, simplesmente, vagueio e mesmo esta escrita prossegue sem objectivo, por mera inércia. Estou desperto? Vivo? Que interessa? O amor foi-se no hábito de olhar as coisas e o resto maça. (E resto é quanto me tiraria desta estúpida letargia)


Existo, ajo, sinto - e sinto tanto que à lembrança do mundo tremo e eriço, antevendo-lhe o embate - mas não me atribuo importância. Talvez porque sob o Interfuron a reflexão se torna um obstáculo, algo impossível, apesar da consciência de que, precisamente, só ela afastaria a montanha que esconde a luz, evitando a deriva num fatal enlevo dionisíaco. Mas a decisão surge longínqua e quase sonho.


Sem pressão interior não há decisão e sem decisão não há objectivo. E cirando vago, lasso, sensível, com tudo a fazer-me reagir mas a nada dando atenção. Disperso. Por fim, canso-me ou sento-me idealizando os idosos, cujo olhar parado tantas vezes observei. Absortos, afinal, na sua dispersão-desintegração como eu agora? E forço-me então a exercícios de consciência, a ser daqui e de agora. Mas consciencializar o quê? Um estado geral? O esforço causa-me já náusea física. Ou seja, quando me exijo encontro o enjôo, o informe, o longo mar igual mil vezes reflectido no espelho do horizonte. A ausência de um horizonte. Porque para tê-lo necessitava do desequilíbrio que me levasse à sua procura e, sob o interfuron, é-se tudo menos procura, desejo, energia.


Morte.


Pairo, vegeto e sinto uma colecção de reacções sem a luz da inteligência a comandá-las. Vou porque vou, digo porque digo, existo, oponho-me, etc., (e este etc. já denota o desinteresse em ir ao fundo do que seja), e tudo é acéfalo. Em mim mandam os mecanismos que, ao longo da educação melhor interiorizei, os demais fugiram à droga, levando consigo toda a história. Fiquei nu. No fundo, uma barata. Muito agitada, muito viva mas que não reflecte onde vai e, a todo o momento, se precipita sob a bota do carrasco. Não sinto, quero dizer, sinto um tremendo oco, mas tenho um corpo e sei que ele reage. Também não apetece que me perturbem. A energia da inércia.


Sob o Interfuron o mundo torna-se no inimigo, pois a ruptura do letárgico equilíbrio só pode vir dos que nele andam, desse mundo que corre, agita, vai, grita e come pipocas cuspindo para o chão. Que, diga-se, não me preocupa nem merece suficiente atenção. Mas que ameaça a total paz em que me tornei. Por isso, ao tomar a injecção me digo sempre "é a morte!", a pacificação do ser, o seu apagamento, embora algo imediatamente desperte, uma luz-vigia sobre o grande mar da minha mansidão apática: o instinto de defesa, a reacção ao "que é isto?" à mudança, sem que lhe meça mesmo as consequências: com interfuron não se pensa duas vezes, aje-se à primeira!


Sou um "mexe-mexe" que dispara ao primeiro alerta.


Interfuron é a droga da comunicação, da abertura às sensações, quer as do inconsciente, quer as que vêem do exterior. Porem a comunicação é desossada, já que no interior nada sobrevive e o cenário é de morte contínua. Massacrando tudo mata-se o vírus?


Lucidez química.


Interfuron retira a capa ideológica às coisas e deixa-as na sua realidade de coisas descarnadas de sentido e, apenas, com gasto. Ou desgaste. O sonho, a crença no príncipe encantado ou na bela adormecida por acordar um dia, quebram-se e o sapo, que se transformaria num querubim, é definitivamente um batráquio! Então, resta a memória de um qualquer outrora, lá onde o mundo era maravilha e pleno de sentido. Mas não passámos para o reino do Diabo, o qual ainda seria qualquer coisa. Não. Ficou-se apenas excrescência, na cidade que todos abandonaram. E intervém-se, não porque isto ou aquilo seja melhor mas porque, sob o efeito da droga, há que fazê-lo.


Acção química.


O deus foi embora, as missões mais as crenças acabaram e resta-se, sós e reactivos, num universo de coisas mexentes, ameaçadoras. Vazios de mitos - daí a lucidez? – e, logicamente, mortos. Oxalá o vírus tenha também desaparecido.


Eros contra Tanatos, o sexo desperta: Interfuron é afrodiasíaco. O organismo reproduz-se porque sabe-se em estado letárgico, em estado de equilíbrio paralizante. A sobreviencia obriga-o a deixar um testemunho.


Interfuron faz frio. O frio do congelamento. Nunca tive tanto frio como da primeira injecção. Um frio cósmico que nada conforta. Treme-se enquanto o universo se desmorona. Depois, habituamo-nos mas aí já estamos irremediavelmente sós. Mundo mudo. E, no entanto, tudo lá continua. Mas vesti-lo com que história, se somos átomos no meio doutros átomos, moléculas despegadas, ao sabor do acaso? Aliás, pelo nascimento de novos quistos sob a pele, por alguma queda de cabelo, também poderei dizer que a carcaça passou a ser um obstáculo à minha necessidade física de esvaziamento. Tudo em mim anseia por sair, desconcentrar-se, desunir-se. A debandada. O próprio ponto sanguíneo outrora no meu rosto disseminou-se. "Let-it-be" torna-se a norma. Irei também? Esta actividade de escriba talvez seja uma minha forma de ficar, concentrar, impedindo-me a partida.


Nada anima ou desanima. Sou. Falta a "voz" de outrora, a que falava da "missão" e me igualava a um anjo do além ao serviço de um aqui. Agora... Tornei-me científico? Vejo o mundo como ele de facto é?


Mas se não ouço a "voz" tornei-me um... palrador.


Interfuron dá vontade de falar. Dizer, dizer e dizer ainda na consciência, porém, de que nada se diz, pois de que servem as palavras se o deus morreu? E tudo se iguala e os vocábulos não passam de barulhos que evocam coisas longínquas, elas mesmas fantasmas de outrora, sombras de um mundo alegre, claro e agora submerso. Falar? Para quê? No entanto diz-se, é-se mesmo incapaz de parar de dizer. E fala-se já com fastio: afinal quem fala é ela, a química, o Interfuron. Fala para camuflar a ausência do sentido, a mudez que a tudo invade.


Não importa.


Fala-se com quem quer que seja, desde que possua aparelho auditivo, embora na boca logo surja a espuma pela inutilidade dita. Diz-se o que vai "na alma" (na verdade, a alma disseminou-se, morreu, e as palavras são a sua mortalha, o luto que evita o silêncio da verdade) num dizer impossível de dizer outra coisa, embora os lábios se abram para dizê-lo mas logo a fala se torne outra: o discurso comanda o processo e o corpo, incapaz de se concentrar, encontra no cordel da conversa o fio de Ariadne que o levará para fora da sua prisão: a pele estala, o cabelo solta-se, o corpo dói. Tudo quer ir embora e filas intermináveis de palavras aguardam umas atrás das outras a vez de serem ouvidas, de fazerem história, na qual porém não acreditam, ou apenas o interlocutor crê, porque desconhece a sua origem perversa, sintética. Todavia elas, as palavras, vêm de baixo, do âmago, do dentro, disso não haja dúvida, e cada coisa é dita com o peso, o som da sua existência; aliás, ignora-se qualquer outra dimensão, qualquer voo de imaginação. E tanto mais urgente se torna a palavra quanto menos se escuta a alheia. Ou como há-de ouvir o Outro quem não fala de Si? Quem perdeu o cordão que o ligava à universal cornucópia?


O silêncio também sucede, e tão opressivo quanto a fala: no meio do discurso, súbito, ele instala-se e nada o evita, sorriso algum o mitiga. Olha-se o interlocutor, incapaz de uma palavra de conforto, de proferir o que é pedido e só nós sabemos, mas que não sai, não acontece, apesar do impulso (ou da sua lembrança) como se fosse de todo impossível a reunião das duas ou três sílabas que fariam a resposta - ou a pergunta - e sendo a nossa vez duma ou doutra - necessária ao estender da conversa, ao seu bom rumo, à sua exposição á luz do dia. Não. A ponte cai e a verborreia doutras alturas suspende-se já no vazio, e na pior altura, lá onde era necessário precisamente um pouco mais de dizer, de companhia, de som amigo. Mas não surge e, em sua vez, ergue-se viscoso um tremendo "vale a pena?", seguido de um rotundo "Não" - a que, por não importar, nem já se responde - logo, porém, patente no abandono da conversa, no deixar o parceiro à sua sorte. Calo-me e, dentro de mim, regurgita no entanto a fervura, a ânsia da frase que afinal se censura, a qual anda doida às voltas na boca e, por fim, se enevoa no vento que a esvazia. A queda no abismo, no mundo-coisa, no meio do maior acabrunhamento.


Uma droga com tais efeitos secundários aconselha-se a quem, olhos nos olhos do deus, à pergunta "Quem sou?" aguente sem pestanejar a divina resposta:


- Uns poucos quilos de carne e, com o que tomas, ainda emagrecerás.






















Sem dia marcado, em Setembro


Sofia diz-me que se a instalação que preparo não sai nos jornais não poderei repeti-la noutro sítio. Submeto-me e respondo: pois sim, faça-se então luz! (Isto é, publicidade) desde que outrem que não eu dê a notícia, etc. Porque de mim nada se deve esperar além da coisa. O resto não interessa e nunca fui além do meu interesse. Preso da minha pessoa, trabalhei no entanto uma linguagem comum. Ou seja, que me divulguem mas não mo digam. Que fazer com a popularidade?














8 de Novembro


Os projectos desfizeram-se em mil cacos e a realidade, que ganhou à melhor fantasia, brinca às decepções no pátio das mentiras com a verdade e a máscara, nenhuma sabendo quem é, em si, a outra. E dançam ao compasso frio de guilhotinas e castanholas. Olá! Olá! No desconchavo do que não tem remédio, e só desconcerto, rompem as aves nuas de todos os voos. Ir para quê? Chegar onde? Tudo é isto. O grotesco rame-rame que diariamente se pinta, e logo enferruja, embora anuncie "pintado de fresco". Chiam os abutres no campo em busca de sangue novo. A palavra, e não apenas o gesto, doem. Deixem ir o que já não é, morrer o que só por desleixo e atraso subsiste.


Seja.


















O mundo fecha-se e o nevoeiro plana, humedecendo os contornos. Mais densos, mais presentes mas tudo baço, sem brilho ou perspectiva. Outrora a luz, o raio, o frémito. Agora a falha, o ser apenas isto e… mais nada. Opaco como cimento, negro como se basalto sem todavia o vislumbre da natureza. As coisas puseram-se assim e não disseram, a graça fechou a loja e foi embora. Na rua a chuva sem um só chapéu que a ampare. Queda-livre.














Over-dose de real e ele não se transforma em nada, nem diz ou desfaz. Fica ali, a ser-nos, a vazar-nos os poros, a passá-los e, por fim já nada côa, tudo os engole. Os dias. A vida. O nada. A morte para rimar com... Tanta palavra possível. A criança sonha às escondidas, o adulto quer a vingança. O adolescente distrai-se nos espelhos vazios de si mesmo. Eu... Que tédio! Que impasse! As coisas ganharam uma espessura obscena e não sei onde a aprenderam. Talvez na história. Mas eu não estava lá e, afinal, nunca fui embora. Milagre. Ou não importa. Em todo o caso o Mcdonnald's vende a batata frita e os cães - os vadios - olham com desconfiança as embalagens vazias. Humano sempre à distância.


















12 de Novembro


Acabada a quimioterapia, aguardo que o mundo fale e de novo me invadam as 400 mil histórias que por momento me contava. Porque olhar e ver a materialidade que nos rodeia sem que ela cause maravilha ou espanto, não é desagradável. É parco.


















Sem dia marcado em Novembro


Ontem - ou anteontem - senti vontade de cobrir com um manto um sem-abrigo que dormia na reentrância de um banco, perto da minha casa. Hoje, pela uma da madrugada, desço com um “anorak” - cujas manchas na gola impedem que o use na escola, pois escangalha a "boa aparência do profesor" - que escola! - e decido-me a largá-lo sobre o primeiro desgraçado que encontre. Mal chego à rua uma mulher ligeiramente coberta para o frio que já faz, de sacos na mão, pede-me um cigarro. Avio, pois, depressa o manto.


Ela esperava-me? Ou fui eu ter com ela? Tantos ses e coincidências sucedem que, de prodígio em prodígio ou de enlevo em enlevo, acabo por achar tudo natural.


















No geral as pessoas gostaram da minha instalação. Pergunta o jornalista "Porque a fez?" Respondo com toda a sinceridade: "Para brincar".


















8 de Agosto


Talvez o mais difícil tenha sido adquirir a indiferença perante a asneira. Ouvi-la e continuar adiante.


Lá atrás, pensou-se que a humanidade era toda ela brilhante e as más condições é que a tornavam bruta. Afinal, o mal é intrínseco ainda que, verdade seja dita, o código civil faça pouco por melhorá-lo.


Adiante.


















Sem dia marcado, em Agosto


A união com o Universo passa pela colaboração com o Outro. De contrário é vazia.


















12 de Setembro


Período de grande perca. Não sei quando começou mas talvez desde a última vez que escrevi aqui. O desencontro inicia-se quando nos dizemos diferentes para fugir a nós mesmos. Cobardia, a mais das vezes. Depois, os caminhos da perda são insondáveis. Inclusive nas frases feitas. Mas hoje - talvez porque vi um filme sobre a cegueira - fiquei mais lúcido.


















9 de Outubro


Amália Rodrigues!


















10 de Outubro


Pertenço a um projecto cósmico de execução infinita. Mas a brevidade da duração humana não me permite grandes demoras.


Fazer e andar.


















11 de Outubro


Abro a folha da escrita com a mesma convicção que um condenado a caminho do patíbulo: se pudesse, fugia.


















14 de Outubro


Tem-se sempre uma história e o mesmo fim: o universo, donde afinal nunca se sai. A variação reside no que conta a narrativa. O critério da sua validade - se tal fosse possível - deveria ser o do como ela foi posta ao serviço do geral, sem jamais anular o próprio.














31 de Outubro


Dos Ingleses retive a fleuma, dos Franceses o estilo, nos Jesuítas achei rigor e na Dinamarca percebi a massa.


Portugal deu-me a saudade. Ou o ideal.


















Sem dia marcado em Outubro


Os que vencem, primeiro a prova da juventude, depois a da meia-idade, sucumbem fatalmente à velhice.


















Adoro perder-me e só na derrota me ultrapasso. Não saber, não possuir, ser do outro lado àquele onde estou e nunca chegar, apesar de ir. E vou porque não posso estar parado, senão nem me mexia para não haver a menor probabilidade de encontrar. Quero a perda, o desencontro, o desconvacho e o desnecessário. Não sei porque o sucesso me repugna mas aceito-o com a resignação do monge que se sacrifica pela glória do Senhor. Nada interessa e o vazio preenche-me. Na verdade, não sei como conciliar este estado de coisas com uma sociedade que me exige a todo o custo o êxito e a (auto)idolatria.














A Criança é cega e precisa do adulto.


O Homem descobre-se mas despreza o mundo


O Velho olha o Todo e nessa visão se desintegra.














7 de Dezembro


A minha vida de artista é gerida com o rigor de um cientista. Nada faço que vá contra a minha consciência. Sigo inteiramente o desejo e utilizo o rigor para torná-lo mais feroz.


















15 de Dezembro


O Nada e a sua comadre a Perda. Então sai-se à rua e compra-se. Na colecção de objectos sacia-se o desejo da ternura que não há, o frio do corpo que, apesar de tudo, se tem. Como marca de uma existência que se gostaria etérea e outra, fora destes acasos de carência, onde tudo se desmorona, e não há glória ou aplauso que resistam.


O Nada.


A colecção de medalhas, os cheques, os afectos ausentes.


O telefone mudo, a dor e o silêncio, os olhos do gato que nos vêem e quase enjoam por serem os únicos a darem-nos atenção. Ou não. Eles...


As palavras rareiam.


O Nada mesmo.


Suicídio, vem!


Mas resiste-se - teimosia de ir sempre além - e rabisca-se uma folha - esta - veste-se o abafo contra o gelo e lá se vai, como qualquer outro, para o ensaio.


Sobrevive-se. Ou é-se o ponto de si mesmo.


Vá! Ergue-te! Caminha!


A morte um dia anulará tudo. Ao Nada inclusive.






















17 de Dezembro


(Estreia absoluta de "A Perca", em versão para marionetas, num clube popular, por ocasião do lanche natalício, oferecido por festejada mulher da Moda, às crianças do bairro onde possui o espampanante atelier)


A festa outrora com acordeon e bailarico, tem, em sua vez, uma aparelhagem último modelo - onde toda a gente mexe sem ninguém entender como funciona - num maquinal alheamento (jogo de espelhos?) a qualquer sensibilidade - inclusive à do próprio emissor - sintonizado lá onde a publicidade e a cacofonia são a regra, servindo de fundo à piedosa confraternização. E todos - as crianças, a comitiva da benemérita, o seu jet set, e a própria espampanantemente posta, gente outrora camponeses, agora apenas sócios de clube - todos saúdam a Caritas, enquanto bebem por latas o refrigerante em moda.


Camponeses.


Senhores de si e da sua verdade, hoje títeres de plástico nas citadinas manjedouras de que são a matéria prima. Perdidos do ritual, da noção da sua nobreza, os camponeses trocaram o natural que os fazia por meia dúzia de penicos de casquinha, metal dos pobres na sociedade que os exclui e consome.


Camponeses.


Na pressa com que já fazem tudo, na venda em que se viram envolvidos - e amassados - na leviandade com que se venderam, no esquecimento dos seus deuses cruéis, mas que davam o exemplo do rigor e da exigência, desprezam já a cerimónia, o trabalho, o ser. Venderam o galo de Barcelos pelo néon do aviário, o esforço do sino pela batida electrónica.


Camponeses.


Perdidos, reencontram-se coisas e como coisas se tratam, esmagando o que ainda encontram de sério e grave, qual filho pródigo que nem a casa do pai reconhece, pois perdeu o rumo e as raízes.


Na festa de Natal, cheia de miúdos emporcalhados na cegueira adulta, não havia compostura, aprumo, ou mesmo uma toalha branca na mesa.


Nada.


Tudo nu.


Tudo pornográfico.


Ao fim e ao cabo, apresentei "A Perca" em versão-marionetas num cenário devastado, de luzes fosforescentes, sem qualquer candeia, nenhuma vela, calor de lareira: a perca na perda. E ao aviso "A peça é para gente crescida", os adultos retiveram que "marionetas" não lhes dizia respeito e fugiram para a sala ao lado, a da Tv e do futebol. A perca, em versão fantoche, no meio de crianças afinal perdidas, num texto que não lhes era dedicado.


Estreia de "A Perca"


Perda absoluta.


Em casa, ao chegar do cansaço e do desgaste (na memória duas meninas a brincarem com os bonifrates depois do espectáculo) perguntam a Almerinda e o Horalves, os dois camponeses que conservo a meu serviço como relíquia contra o mau olhado, para que também eu não me perca:


- Então como foi?


E incapaz de contar (eles riam tanto ouvindo os ensaios) da perda dos seus conterrâneos, minto - "Oh riram muito!"


- Eu já sabia! - Comenta Almerinda.


Sorrio um sorriso que ela, na sua madura ingenuidade, não percebe triste, mesmo muito triste, e fujo rápido do seu olhar.


"A Perca"...


Estreia absoluta.


















24 de Dezembro


Por vezes é difícil, as coisas falham e a vontade emperra, a energia vira-se para dentro, não se projecta, sobrenada-se na tentativa e não na execução. Nestes momentos a quem pedir ajuda senão a si mesmo, à partícula que se é do Universo?


Levanta-te e caminha! Pois, mesmo que não vejas, o normal é o movimento, por isso, vá! Anda e faz! Confiança? Aplauso? Para quê? Ora, sê superior e nem esperes apoio! Não és tu próprio o líder?


Vá! Ergue-te e vai além de ti mesmo! Ultrapassa-te!


















27 de Dezembro


Época natalícia, vivida com a nonchalance do hábito e a prática destas coisas.


Outrora, para festejar o fim de um trabalho, e pois que o físico mo permitia, embriagava-me. Agora... Fui à rua, subi o Chiado e parei á porta da "Brasileira!”, entusiasmado por me confundir com um seu frequentador, imaginar que alguém vinha ao meu encontro, ou eu lá estava para satisfazer um "rendez-vous". Nada. Depois, o jogo saturou-me e vim embora. Em casa, com o telefone no regaço, como quem quer dar à luz mas o bébé sai mudo. Telefono a T. Afinal pensava que eu estava fora e o mesmo pensava eu dela.


Trivialidades.


Um dia, pelo Natal, imaginei-me Cristo e o que ele diria. Hoje resumiria a coisa com um: "Bolas! Mais do mesmo?!"


Apetece sair. Perder-me pelo intervalo das pessoas. Há no entanto a languidez do trabalho por começar, o sabor do momento antes do novo salto no ar.


Há dois dias que estou para ir para qualquer lado. Fechar-me num quarto, algures, com intervalos de passeios pela paisagem. Mas ainda não consegui tomar o transporte e lá chegar. Viajar tornou-se difícil: sem quem nos espere, adia-se sempre a partida.






















Sem dia marcado, em Dezembro


Por vezes dói. Pura dor ou sofrimento em estado não aplicado, o mal, apenas. Algo como o suor da vida. E custa.














Porque não manter alguns tabus se, de qualquer forma, teremos sempre que nos submetermos à disciplina para sermos humanos?














Ski, em Pas Las Casas, Andorra


Dói, sobretudo, as vezes em que me demiti.














A ausencia deste diário deveu-se a ter andado no mundo. A edição, a tentativa - ou atracção? - por deixar o "convento" (o retiro que observo) trocando-o pelos "hit-parades", "jet-sets", perca. Também a quimioterapia. E ainda o resto, tudo isso fez esquecer a minha estrela e, se lhe obedeci, devo-o apenas à inércia. Ou ao não conseguir outro modo.














A não-vida de Fernando Pessoa foi a não-vida da maioria dos portugueses no tempo de Salazar. F. P. justifica-a com o inútil da actividade. Os outros aceitaram-na "porque sim".


















A pobreza é uma limitação. Limitei-me propositadamente para perceber o que era ser pobre, não ter, usar as “portas do cavalo” - e mesmo essas quando as há - possuir, enfim, os acessos bloqueados como sucede à grande maioria. Ora, a partir do momento em que as vias se me abrem, sou mesmo chamado em vez de ter de estar nas longas filas, ou até delas arredado, a limitação findou. Deixei de ser pobre. Tenho recursos, isto é, poder. (O meu voto de pobreza foi precisamente contra o excesso de poder que me impedia o mundo.)


Continuarei a recusar a riqueza?


Não.


Mas não admitirei - já por questões políticas, isto é, de projecto social - a excessiva riqueza. Esta, a partir de certa altura, deve reverter inteiramente para a sociedade que lhe deu origem.


















Eu não era humano. Agora penso como a maioria. Perdi a missão, a crença. O meu último despojamento. O que faltava.














Quero crer que a todo o momento o deus de novo falará e que não sou um anjo definitivamente caído! Que estou em serviço aqui, e a comunicação um dia reatar-se-á. Posso mesmo dizer-me (como gostaria de acreditar nesta história!) que me deixaram só para melhor construir a minha obra. Ou que ainda hoje, quem sabe, ouvirei de novo a voz que me acompanhava e que, nas alturas mais difíceis, sempre dizia: não estás só! Estou contigo!














Por um triz não soltei uma gargalhada na sessão final do julgamento da herança de meu pai. Ainda funguei mas contive-me. De qualquer modo vi-me livre definitivamente de algo que nunca desejei.


“Guarde o seu ouro!” – disse-lhe um dia. E logo parti a correr mundo. (A corrida ainda não acabou).

































































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