sábado, 16 de outubro de 2010

2001







O mal é inferior ao bem












Madrugada, 1 de Janeiro de 2001

O mundo razoável e cordato desaba e os olhos mal vêem além da lama e porcaria.

O Sol não nasceu, a mãe já foi, a ponte quebrou e não há cântaro que humedeça nem Lionor, cuja insegurança já a minha fraqueza soa altiva, que sorria.

Acordei só e a boca do Amor, ou o calor do corpo na noite, não me tirou o frio do olhar nem a tristeza das palavras.

Só.

Nem sei que faça senão sentir as grades que me limitam, as fronteiras que se alicerçam.

Sento-me, deito-me e espero.

Talvez passe, talvez seja assim mesmo. No entretanto aguardo que venhas, incapaz de esperança, fé ou futuro. Aqui e agora, sem graça alguma. Sem graça.

Descangalho.







5 de Janeiro

O mal é inferior ao bem.

Podemos sofrer infinitamente o bem mas não o mal. Daí que este seja inferior tomando como critério a amplitude da coisa: é mais amplo o que sofre menos limitações.







21 de Janeiro

Vive-se de novo acompanhado por um outro lado que nos semelha, um corpo que nos abriga, o conforto contra os papões e os tigres da Noite: Raul.

Tanto tempo a pisar pedras que os pés se desfizeram no sal das águas, nas ondas enroladas pela triste alegria. Tanto ir e descer por crateras sabe-se lá onde mas sempre dentro de nós.

Beethoven evoca madrugadas despertas, quando os limites ficaram aquém em sucessivas correrias e éramos crianças de embalar em busca de mães meninas, mulheres roseiras que sabíamos num além de poços frios e estrelas candentes.







11 de Fevereiro

A disponibilidade para este diário ficou obliterada pela vinda de Raul, pois viver com alguém ao cabo de dez anos de solitarismo causa diferença e perturbação.

"Paulema" foi recusado pela editora e no entanto a minha confiança na sua escrita não ficou abalada. Gosto do livro e acho-o interessante. Mas cada vez me alheio mais do factor publicação ou da publicidade ao que faço. Como se nascesse para clandestino numa sociedade que apregoa a asneira. Distancio-me do mundo e, de certo modo de mim, quer dizer, vejo-me a fazer coisas mas não as sou, fugindo-me o ser para partes cada vez mais incertas.

Alheio.

Se o sentimento, lá atras, foi o de testemunhar um cenário devastado, o ruído de outrora calou-se e olho, sereno, as ruínas. Sem esquecer que a transmutação a tudo preside e o novo nasce do que morre. Mas a boca sabe a cinzas.

No entusiasmo de Raul, finalmente de veias limpas, depois da desintoxicação a que se submeteu e por que lutei, verifico que a vida subsiste e a esperança é de sempre.







5 de Março

A incapacidade para gerir "convenientemente" as coisas agudiza-se e a distância entre o possível e a prática adensa-se. A vida não me tratou mal, eu é que fiz tudo ao contrário, embora possa afirmar que fiz o que devia. Mas cansa, e giro apenas o desastre.

Agnóstico, repugna-me todavia o suicídio.







6 de Março

Os dias acumulam-se e o seu exercício habitua-nos ao poder.







10 de Março

Aníbal enviou-me os escritos que lhe oferecia quando ambos éramos companheiros de turma e de carteira. O passado visitou-me e não encontrou um homem muito diferente do adolescente que lhe deu origem: preocupação com o Outro, desejo de ser útil e... único.







14 de Março

Lassidão, sem contudo desleixar um milímetro as opções e os percursos. Como se não importassse que tudo acabasse e a ferocidade com que se continua a batalha fosse agora mais marcante e sofrida.

Talvez necessite de uma pausa.







1 de Abril

De novo a cegueira no caminho e o que parecia o horizonte torna-se baço e escuro. Onde ir? O sonho desvaneceu-se e, na manhã ranhosa, do lado de lá da janela, o nevoeiro cerrou as portas e não há chave que as permita. Sem movimento, sem espaço, sem alento nem alegria. Mas ri-se. Por hábito mesmo de voar no abismo, embora desta feita as asas se hajam desfeito a meio caminho. Olha-se para baixo, o percurso continua mas parece já só ter um sentido: o da queda a pique na realidade pequenina dos contratos a prazo, a vida preenchida por contas bancárias e uma mesa satisfeita. O sonho dilui-se no ácido da vida e resto-me, cheio de tempo - ou de futuro, outros diriam - falando sozinho, no supermercado dos dias.







28 de Abril

Tarde de sábado com uma mosca em volta do candelabro - comprado na feira da ladra - e o companheiro - que veio para se desintoxicar e, afinal, recaíu - embriagado de vida e perca. E eu, no entretanto, sem saber porque ou como, mas cheio de boas intenções à espera que o devir mas compre.

No caos, em plena borrasca, mas o leme ainda guia - ou funciona - e o mar alia-se.





4 de Maio

A mãe no hospital e Raul (finalmente, ó deuses!) também num hospital mas a desintoxicar-se! Poucos saberão o que significa acompanhar alguém em carência de heroína, lutando por que os bens da casa não desapareçam nas mãos de "dealers", abutres da absoluta necessidade.







15 de Junho

Certa acalmia depois de um Maio em que enterrei a mãe, internei o Raul, fiz obras na casa, escrevi "O Feudo", assisti a duas gatas grávidas, investiguei sobre Teresa d' Ávila e dei aulas...

Enfim, arrasado.

Mas vá lá dizer-se à nossa parte mais doce que mais vale só que mal acompanhado!





Como se no caos a produção só aumentasse ou o seu antídoto fosses a caneta.





E foi de facto o caos, com muito pouco tempo de paraíso, ou nem isso, ai um mês onde a cura pareceu estabilizada, até descobrir que Raul de novo se drogava, nem já à custa da sua profissão de “arrumador de automóveis” mas do desbarato a que vendia os pertences da casa, a máquina de filmar, o gravador, etc.

Borrasca.

Sensação de casa a saque "quando chegar ainda terei computador?" e, no entanto, vontade de levar a bom termo o que me tinha proposto: tirar o “desgraçado” do buraco onde ele, mais a vida, se haviam metido. Mês e meio (até haver vaga nas Taipas) a suportar o insuportável, a andar para o Casal Ventoso a fim de comprar a dose que o aguentaria sem que me vendesse mais coisas ou fosse à rua assaltar alguém. Mês e meio onde a carência não poucas vezes deflagrou, ou quando a dose adquirida afinal era falsa, ou o dinheiro para a sua compra também carecia.

Caos, caos de uma espécie que nunca tinha tido, não ocasionado por opções de vida mas por arrastamento num barco alheio, mal apetrechado para os mares onde navegava e sujeito a temporais que desconhecia. Pois se a minha experiência da droga lá atrás me deu a conhecer, sobretudo, o paraíso das sensações filtradas pelo exercício de uma potência pura, a vivência com o Raul, apesar de nunca o ter acompanhado no seu vício, deu-me o conhecimento do Inferno, dos degraus últimos a que pode chegar alguém, quando algo lhe é indispensável e não o tem. "Ofereço-te o cu e dás-me dinheiro para a dose" - disse-me Raul, num fim de tarde, na sua linguagem de prostituto, num dos muitos momentos do seu enorme desespero. E eu, que não poucas vezes lhe admirei o belo traseiro, levantei-me da mesa onde me concentrava e, com a força da minha mão, esbofeteei-o uma e duas vezes.

Ninguém se prostitui sozinho.









Tanta coisa passou neste entretanto entre a minha integração (falhada) como “escritor profissional” – d’ “A Escada” nem se venderam cem exemplares! - e este agora, comigo no meu novo espaço - abri o sótão à casa e da nova janela vejo o castelo - que bem gostaria de sintetizar em poucas palavras o ocorrido. Mas quais? Amadurecimento, sem dúvida, e lassidão também.

A relatividade das coisas acentuou-se e, dominando a tudo, a morte como destino que, se ao mais não iguala, porque o valor é um dado tão humano quanto ela, pelo menos em bastante abate a soberba autonomia.







20 de Junho

A questão não está tanto no que se vive nas na qualidade com que se faz.





31 de Julho

O nevoeiro persiste rente aos olhos e, no trás da cabeça, instala-se a cegueira dos sentidos. Um vago "Para que..." sobrevive entrincheirado em teimosia mas, ao redor, os braços já caíram e as sepulturas fremem. Nada para qualquer dos lados. Restam as coisas mais minúsculas, a viagem no comboio dos arredores, a travessia da ponte, o café do pequeno-almoço, tudo isto erigido em desígnios de uma vida.

Paciência, procura-se.







Comparada com a de Raul a minha toxicomania nos anos setenta não passou de uma viagem de cruzeiro, perigosa sem dúvida e igualmente cheia de risco mas, em todo o caso, um cruzeiro. Também comprovei - se já o não soubesse - que não deixa a droga dura quem quer. Há apoios indispensáveis e, sobretudo, mentalidades que ajudam e outras nem tanto. As condições em que a pessoa foi criada - e que de si já a conduziram ao desejo da experiência - condicionam, quer a entrada, quer a saída. E muitas vezes, senão na sua maioria, permitem a entrada e não a saída. Ou impelem à recaída o que vem a dar no mesmo.







O último tempo foi de gatas.







2 de Agosto

E cá estou, de novo em Agosto, sem dinheiro para grandes afastamentos e sentado à mesa.

Revejo este diário, questão de limpar-lhe a poeira sem o trair.

Estreei "O Circo da Santidade” numa colectividade do Bairro Alto.

Suporto melhor os cumprimentos - que trabalho imenso não fiz sobre mim! - e já digiro um minuto de conversa elogiosa sobre a minha pessoa sem que chore. Mas, mesmo assim, ainda tento desviar a conversa para outro tema, embora, num último esforço, me contrarie até porque, assumindo-me publicamente "escritor", necessito de ouvir-me o eco.







15 de Agosto

A fossa depois das estrelas, impossível aceitar o absurdo por mais que o ser o queira. A educação não o permite, ou o passado, a história, o que se fez de si.

Inútil o orgasmo na ponte do equívoco. Quando se faz o caminho da verdade só o absoluto satisfaz. O mais é medíocre ou, pior do que isso, escangalho.

Vim-me com quem não era e o castigo caiu sem remissão ou atenuante.

Vazio e pecado.

Des-ser.

Desencontro, e a palavra é parca para a imensidade da catástrofe.

Chove lá fora, como se o Universo carpisse a minha perda, o meu muito mal de me fazer o que já não posso, nem me é permitido.

Fiz-me deus e desobedeci-me.

Amarga lembrança, e ténue esperança, de que a memória não esqueça.







17 de Agosto

"X" - diz a jovem mulher quando volto atrás na rua e lhe pergunto o nome do perfume em que embebeu o cartão que me ofertou.

Adoro flores, os seus odores, delicia-me o ballet gasoso das bolhas do champagne subindo no funil da taça e delisquesço sob o brilho de jóias. Levei tempos - anos - a conceptualizar estes gostos. Do resto, só o amor me diz, pelo que não sou imune a pessoas. Quanto à arte trata-se de mera sobrevivência. Não conta. E os fins de tarde nostalgiam-me de uma saudade de ideal. Não sei que lhes faça como se o Sol me morresse nos braços ou fosse eu o seu mar. Ah, um redondo seio intumesce-me o olhar como se perante soberba aurora. De resto, de resto...

Escrita, escrita e mais escrita. Ou a fuga deste mim. O tal que ajoelha às jóias, se liquefaz no champagne e adora flores. Impossível eu que só travestido se suporta?

Champagne, flores e jóias...









19 de Agosto

Continuo a passar a limpo este diário. Vou em 1989. Chatisse e ao mesmo tempo conforto do reencontro. A primeira porque lá tenho que me aturar, agora a palavras, e conforto porque reconheço que o meu hoje sedia em algo que lhe dá consistência. Possui tradição.

Em todo o caso a leitura do diário já não me ocasiona, como anos atrás, um desejo irresistível de fuga, a impossibilidade de me ler sem quase estoirar de pulsão. Habituei-me ao magma?







21 de Agosto

Difícil conter o pulso da vida. Em jovem, nestas alturas, dizia que desejava uma explosão que me desse a medida. Como expressá-lo agora? As palavras continuam fracas e sabendo delas o que já sei...

A ideia de querer dizer alguma coisa com as minhas obras enoja-me. Alguém poderá dizer que faz um filho para que ele venha a falar disto ou daquilo? Só os ignorantes - ou os perversos - dirão que o artista faz "para".

Faz "por".







Sentado no sofá. Manhã cedo. O tic-tac do relógio de parede. De resto, os gatos. E uma ameaça de zanga interior. Mas o dia parecia calmo. Levantei-me, fui à Brasileira da Rua Augusta "Os pastéis estão quentes?... Um se faz favor..." e as coisas decorreram regularmente. Tenho a impressão que foi o jornal. Não posso lê-lo em "horário nobre", isto é, logo pela manhã: dá-me cabo da disponibilidade. Como se me enchesse de tanta coisa alheia que fico de imediato sem lugar para as minhas. E assim a escrita, a passagem deste diário lá se vai - ou foi: deixou de apetecer e mesmo mexer um dedo, ainda que do pé, tornou-se já utópico. No entretanto a cabeça - se fosse ela só! - pensa, sente, e as ausências, as desgraças, os amores acabados, infelizes, erguem-se todos do buraco da memória. Que pena! E a manhã que prometia!

Olho em volta, vejo as amantes e os amantes partidos, quebrados como restos de bilha outrora formosa, as paredes frias e o mundo aterrador. Apetece voltar à cama, fechar-me nos lençóis - os gatos lá dormem como que a incentivarem-me - e...

Coragem, gente!

Mas que fazer? Com que cara encarar as teclas do computador, aceitar a posição de sentado a escrever? Não é tudo já ridículo, inútil, simples distracção da dor de estar vivo? Como manter, assim tão às claras, tal mentira?

Pego no livro que alguém me enviou. Leio um capítulo. Até podia continuá-lo mas a acção assusta-me. Ser tornou-se impossível. As coisas cresceram - foi a leitura do jornal? - e o mundo abafa-me, tornou-se um monstro que não domino, nem mesmo a pena. Resta o quê? Esta linha e continuá-la sempre? Mas também o seu movimento há-de acabar, a folha atingir o fim, a carga esvaziar-se...

Socorro!

Momentos em que a morte seria a única visita perfeita.

Viro a página.

Lembro que fiquei de fazer umas coisas na escola, questão de escolher um vestiário, faltam uns suportes. Vou embalar-me em compras? Até que elas me causem tal náusea que o dia reapareça nu, a vida sem pretexto nem utilidade?

Quotidiano cru.

Comer... Dormir... Amar... Falta amor. Sem ele isto não se aguenta e nem o melhor deus presta para alguma coisa!

A lembrança anima-me. Imagino telefonar a Antónia. Será possível? Não é muito cedo? E que quero eu dela? Contrabalançar o meu muito "azar" dos últimos tempos, a minha incapacidade para encontrar alguém "a sério"?

Não sei que faça.

Só, com meia dúzia de gatos - nem jogam ao xadrez! - é que não quero! Não quero, já disse e não estou habituado (lá está o relógio de parede a badalar e eu de novo a associar o toque das horas com um sinal de que o que penso é importante! "Tão certo que merece música!" Endoideço? - enfim, é apenas mais um problema!) a aturar o que suspeito possuir ainda alternativa.

C' os diabos, quero ser feliz com alguém! Impossível?

Malditos gatos!







24 de Agosto

Chegado ao ponto em que novos vícios emergem porque a idade - e o curto tempo que resta - lhes retira a gravidade. Que fazer? O que é grave atenua-se noutras circunstâncias? Sem dúvida. Resta aferir - se um objectivo existe - se essa gravidade o impede. Ganha-me, creio, a expressão no seu todo: a existencial, pura, e a aplicada, digamos o Teatro, a escrita, o conhecimento.





26 de Agosto

A minha arte é-me a doença.





As coisas recompõem-se. Mas as noites continuam problemáticas. A única coisa que mas sosssega é uma amada presença ao lado. De resto...

E faço por ir para a cama cedo.

O dia é mais suportável, pois a luz encandeia.







2 de Setembro

Vários caminhos para alcançar a paz consigo. O amor - dizem uns. A fé - dizem outros. Uma missão - e etc. Que une a tudo isto? A entrega? Não haverá paz em si sem ocupação do espírito? O ocidente laico responde que não. O Cristianismo indica o caminho da contemplação, o estar com o Senhor. O zen afirma que o espírito é vazio. E que estar nele - equivalente a estar no Senhor para o cristão - é estar em si. Sem amor, sem fé, sem missão. Ser, exclusivamente. Igualar Deus.

“Divina indiferença”.







11 de Setembro(Ilha de Tavira)

A conversa elegante e inteligente é óptima. O pior é que a grande maioria passa mal e o nível do paleio logo baixa. E chega mesmo à guerra suja.





Foram às orelhas ao Grande Irmão e os manos menores sofrem, a um tempo, do sentimento de satisfação - já por várias vezes o "velho" lhes bateu e eles, claro, não puderam recalcitrar - e, a outro, da sensação do espanto e horror: se alguém ousou bater no mano grande - o mais forte de todos! – com quanta facilidade não castigará um dos pequenos?

A vida tornou-se mais frágil ou seja, a guerra instalou-se em todo o lado e nem na casa do mano velho se está a salvo! Que este veja bem o que faz, porque passou a doer a todos.







13 de Setembro

Readquiro o acontecimento, a sua capacidade. Estive morto algum tempo, senão mais do que um ano. O cansaço, o uso, a má companhia ou a solidão (mal) acompanhada. Este jejum de gente tem-me feito bem.





Uma das consequências negativas do envelhecimento consiste no alongamento do tempo que vai do pensar ao agir. Se conseguirmos evitá-lo manter-nos-emos em parte jovens, desde, é claro, que... o tenhamos sido.





Estamos bem quando entre o pensamento e a acção não dista mais que o tempo necessário.





"Deus dá e se Ele não der, eu procuro"





Ontem, um jovem abordou-me na sombra nocturna do parque de campismo.

- Está tudo bem contigo? - Quis saber.

- Sim.

- Tira os sapatos.

- Porquê?

- Porque és muito discreto e não condizes com o barulho do pisar das solas.

Para quem acabou há pouco de escrever sobre Teresa d' Ávila como não há-de isto fazer sentido?







25 de Setembro (de regresso a Lisboa)

Se a procura de si não conduzir ao Outro é que se tomou o caminho errado.





26 de Setembro

Carta da Escola a dizer que não me quer lá este ano, ou seja, fiquei em terceiro lugar no concurso.

Se contestar a decisão não será senão para assinalar, preto no branco, as minhas actividades ao longo destes seis anos de secundário.





Sem dia marcado, em Setembro

Vai-se descendo alegre e descontraídamente. Um degrau agora, outro lance depois e para tudo se arranja justificação. A falta de maturidade ou a precocidade, enfim, o que seja!

Até que um dia, perante um acto finalmente revelador, percebemos que atingimos o fundo e que a luz se tornou invisível.







11 de Novembro

Há algum tempo que não faço o saldo, mas 2001 tem sido caótico para além do razoável e apetecível. Porque eu gosto do caos, o caos revigora-me e é meu familiar senão uma origem. Não sei onde vou buscar esta afinidade com o desarrumado, o incerto, ou mesmo informe mas ela existe e conforta.

Durante 15 anos fui professor, seis dos quais no ensino secundário. Que retirei da experiência senão alguns - poucos, muito poucos - afectos, resultantes da convivência com os alunos e alunas, como quem comprova que os amigos se contam pelos dedos de uma mão só? Entrei a horas, saí sempre aos sucessivos toques da mesma campainha e repeti vezes sem conta, tentando que fosse sempre "a primeira vez", meia dúzia de informações. Pelo intervalo destas ter-se-á perorado sobre o mundo, as coisas, a vida, as pessoas, ao mesmo tempo que corriam amores, os seus respectivos abandonos, os devidos reencontros e por aí adiante. Vida. Embalada em recibos - primeiro verdes de quem se diz liberal e por conta própria - o tempo do IFICT - e logo depois subscrito em contratos de funcionário público, sucessivamente renovado e cada vez mais gasto. O cansaço, a chatisse pequenina a insinuar-se mas a derreter-se ao menor passo no recinto da escola onde, afinal, me senti como se peixe na água.

E agora?







Há quinze anos troquei um grupo de teatro pela escrita, a luz de cena trazia-me a perda como se a claridade, o seu halo, tivesse o condão de me diluir. Ser outro, por tanto me afastar do próprio, não me estava ao alcance? Não sei. “Estar à vista” profanava-me o sentimento religioso, ou talvez fosse a noção de perda em repetidos ensaios para obter efeitos que então achava fátuos. Mas talvez o facto de, por aquela altura integrar um grupo sem objectivos económicos, me tivesse afinal tornado atento à questão: que faço numa cena? A arte teatral não me interessava - procurara-a apenas como terapia para uma toxicodependência - embora desse por mim, depois do pano caído, feliz pelo dever cumprido.

Interrompo: ensaio obriga.

(mais tarde)

…Pois, já se viu, regressei ao Teatro ou... isto é apenas um emprego útil do tempo, vago pelo abandono do ensino? Não sei mas que mudei, lá isso mudei.

Mudar perturba e, especialista em mudanças, sei-o bem. Ao fim e ao cabo estava cansado do professorado, talvez lá volte depois de um intervalo - a educação interessa-me e é o elo fundamental da sociedade - mas por agora queria uma mudança. Ei-la. E agora... Bom, agora trata-se de ganhar dinheiro noutro lado, pois quanto ao essencial não haverá grande mudança: escrever... escrever... escrever.

Chegado porventura o tempo em que a escrita me alimente, pois lhe dediquei arte e engenho.







13 de Nov.

Não estar ao alcance de qualquer, sob pena de ficarmos inalcançáveis para todos.







15 de Novembro

Uma mulher, sentada sozinha à mesa do restaurante, junto ao vidro da montra, ergue a taça de vinho e brinda, enquanto do lado da rua eu passo. Ela brindou a qualquer coisa que só lhe diz respeito mas ao vê-la, lembro: comemoro hoje o meu aniversário.





Respondendo a anúncios para encontrar um ordenado. Mudança de rumo pela meia centena de anos.







1 de Dezembro

De novo actor num grupo de teatro. Por um lado serve de ganha-pão dada a ausência de contrato com a escola e, por outro, apraz-me. No entanto é verdade que algures a inquietação se agita: e a escrita? Ao mesmo tempo, porém, a descrença na minha literariedade acentua-se, aliás, como em tudo o mais: a fragilidade cresce. Mas, enfim, queria mudar de vida, estava farto de ser professor e há dois meses que não o sou. E sobrevivo!



A medida que a sociedade se nos imiscui mais difícil é saber o que sentimos. Leonel escreve o seu diário na terceira pessoa - ele faz, ele disse, ele foi... A forma não deixa de ser interessante mas, pela minha parte, ainda consigo o "eu".



Não me satisfaço já na diferença. Isso era na adolescência. A ponte é o que ora me atrai. Quero sê-la.



Sem dia marcado, em Dezembro

Se queres uma obra assim, faz-te assado.





Os prémios são úteis para destacar, retirar alguém do anonimato. Mas porque há-de ser o próprio (a quem um prémio já distinguiu) a concorrer a outro?





Pertencemo-nos ou ao que pretendemos de nós?





Carta ao meu manuscrito Cristiannia,

Sei que o pó se acumula nas tuas linhas, invade as tuas folhas, penetra nas notas de música da tua escrita, vigia ameaçador a tua palavra. Mas mesmo assim, minha sobrevivente e amiga, peço-te que não desistas e num gesto - último? – de resistência, me procures, me dês a tua atmosfera e sabor. Sei que os anos destruíram as nossas crenças - éramos então belos e inseparáveis e, por fim, o próprio Universo se solidificou em bocados de gelo, sob a aparência de um mar uno e líquido. Mas ainda gostava de voltar a ti, colocar-te aqui e além uma nova palavra, uma vírgula ou um sorriso, apesar do desastre e da devastação dos corpos que no entretanto apodreceram. Será possível? O teu nome é tão grande promessa. Deixas? Consegues? Que os deuses nos prodigalizem o reencontro!







Não apetece dormir, deitar ao sono a vida que excedeu, a fala que não se libertou.

Gritos. E berros. Estertores de palavras trancadas sob faringes secam. Medos. Teimas obscuras, marés que não vazam e flores murchas em mãos estranguladoras. Hinos - precisam-se! Alvores. Júbilo. Festas e cores.

Escuro, não.

Crianças presas à linha, adultos encerrados no armário das conveniências. "Minha filha, o teu pai engata pelas esquinas marujos de sexos sujos mas a fachada, como vês, é toda respeitável e granítica. Segue-me o exemplo."

Hipocrisia.

Aprendida no berço e cem vezes repetida para que a língua obedeça e o desejo se exerça, sob a vergonha e o medo, vergando a Pluto o outrora grande e livre. A beleza emoldurada e pequenina.

Burguesia.

Poder.

Sensatez dos autos de fé para gáudio das famílias domingueiras e conservação da espécie, violação do lucro que torna os pobres prostitutos e os justos idiotas de exibir em feira.

Na câmara ardente, com a mãe no caixão, enquanto não chegavam os restantes acompanhantes, ficámos sós. Cantei-lhe canções, dancei a valsa para ela ver - ensinou-ma - e, enfim, durante duas horas tive a sensação de que me escutava. Também tentei o milagre, dizendo-lhe para se levantar. Mas acho que não acreditei na possibilidade. Ou não o desejava?









“Manifesto”

Farto dos mesmos artistas: estes já têm borbulhas e pus!

Não aos partidos xexés: quero inscrever-me em vários ao mesmo tempo!

Não aos políticos a preto e branco. Políticos a cores e sobretudo nus!

Não às máquinas disfarçadas de gente.

Fome de intestinos, vísceras e coração!

Não às drogas sintéticas! - Viva a bebedeira terrestre!

Não aos pobres e ricos! - Papel higiénico de luxo para todos!

Não aos animais superiores e inferiores! - O gato que mora comigo é uma pessoa!

Não à "democratização do pacote"! - Sim à democracia avulso!

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