sábado, 16 de outubro de 2010

2002











O estômago comanda e logo o espírito rasteja














1 de Janeiro


A uns disse que comemorava o "réveillon" num sítio, a outros menti igualmente. Senão como passá-lo comigo?


Eis-me, pois, só, o clã deitado e os gatos a olharem-me, depois de ter ido ver, um pouco às escondidas, o fogo de artifício no Terreiro do Paço. Ainda não surgiu o artista à medida daquela praça.


Pouco a dizer como se o acumular dos anos fosse retirando a importância aos comentários ou colocando-os no devido lugar.


2001 foi caótico e mudou-me a vida. Nisto foi útil.(Com a idade os adjectivos tornam-se raros)


Nas últimas semanas o desejo de fazer andou algo enevoado e fiquei muito tempo a viver, apenas. Falta-me o hábito do lazer. Talvez para depois de morto.










Em 2001, fui hóspede no "Inferno da Droga" (a expressão só parecerá literária a quem não saiba do assunto) deixei o professorado, reentrei - depois de longa paragem - na actuação, escrevi duas peças, encenei uma delas, sobrevivi a uma separação por razões estéticas - "abandono-te porque não és poeta" - expliquei a Raul - e morreu a mãe.


Ano cheio.










2 de Fevereiro


(No comboio para Barcarena)


Vai-se para o teatro, entre gente de regresso a casa que lê jornais cujas parangonas berram "Seja uma mulher moderna!" ou "Charlotte seduz Paris!".


Cansado já de estar à mostra, anseio o fim da temporada, se bem que o trabalho em equipa desenfastie da solidão da escrita.


Tenho sono - faltam algumas paragens para o meu destino - e a ideia de que, dentro de hora e meia, estarei à frente de três dezenas de pessoas - quantas comporta a sala - é para já absurda. E dizer o que direi e convencido disso!










8 de Fevereiro


Rui,


Não é frete algum ir fazer a peça à noite ou todas as noites. Ou é-o tanto quanto o pode ser diariamente sentar-se a uma mesa para escrever. Isto, claro, quando ambas as coisas se fazem com a devida profundidade e a energia lhes advém da mesma fonte: a da matriz.


Arte é ritual.


O "frete" - ou o difícil - pode, isso sim, ser o trabalho da passagem do profano para o sagrado. Mas a cada um encontrar a ponte da superfície ao tutano. No teatro o profissionalismo reside ai.


Beijo.










12 de Fevereiro


O estômago comanda e logo o espírito rasteja.






Leio este diário e confronto-me com um personagem. Sou eu? Seria levado a dizer que sim e no entanto... No entanto apetece dizer que o escrito é ficção ou - se não aspirar a tanto - que há verdade nas suas linhas mas que, e principalmente, elas são isso mesmo: estrias, construções, harmonias, coisas frias, outras quentes e, enfim, muita verdura. Pois que dizer? Se é que o pior não é ainda a tentação - justa? - de acrescentar folhas com novas acções do personagem, desenlaces, cenas! Mas não! A náusea à história é suficiente para parar de vez e dizer: findou, acaba aqui o diário, o diabo que o leve ou continue. Eu (quem?) parto de férias. Ou mudo de vida. Isto é: deixo a caneta. ("Se esta última frase fosse possível!" - apetece colocar em nota de rodapé) E no entanto estou, já não vazio, mas exangue. Espremido como um limão que do ácido só já tem a recordação: o resto foi-se. Devo calar-me. Tal como os cantores que, chegado o tempo, não pegam mais no microfone ou os futebolistas que se tornam treinadores. E porei anúncio no jornal procurando emprego, uma coisa do género "Ex-tóxicomano da pena procura lugar compatível. Dão-se referências e garantias de não reincidência. Muita prática em inventar intrigas, juntar palavras e criação de mundos. Aceita funções divinas na promessa de nada exigir dos seus súbditos."










13 de Fevereiro


Ultimamente surge-me em sonhos o apelo da pintura. O intento assusta-me tanto como se dissessem a uma mulher de cem anos "Vai dar à luz!" A graça é grande mas que trabalheira! E todavia o último sonho foi tão determinante que mal ouso colocar a hipótese de lhe desobedecer. Por sinal hoje vi uma mulher sentada à beira-rio a pintar folhas que tirava de uma bolsa de pano. Uma deusa iniciática mostrava-me o caminho? No último sonho esbofeteava-me mesmo por não levar a sério o desejo de pintar!










A morte é o sumo bem... desde que, do outro lado, a consciência se anule. Porque, já neste, os melhores momentos são aqueles em que a consciência se esquece: o êxtase.


Mas se houver mesmo Além, serão então lá felizes os que neste aquém não lamentarem a conduta. Não parece impossível.


Basta dar, aqui e agora, a vida.






14 de Fevereiro


Quanto mais vivo, menos pressa tenho.






Manter-se custa a morte.










15 de Fevereiro


Literatura e vida embrenharam-se-me a tal ponto que, a existência se me tornou um diário.










Ir sempre em frente não significa ir sempre a direito.










O "deixar tudo" que apetecia lá atrás, num dia de Junho do ano de 89, realizou-se sem necessidade de mudanças geográficas ou abandono de coisas. Sou nu. A peregrinação era interior e, na altura, não o suspeitava. A minha liberdade é maior hoje porque vejo mais claramente a diferença e ela não me assusta. Aceitei-me, e a aceitação permitiu ir mais longe no que apenas se anunciava: um modo de estar onde me reconhecesse. Esse modo foi-se instalando, primeiro sob o meu espanto - ou mesmo susto - e, finalmente, com a minha compreensão: hoje sou sem temores, surpresas nem foguetes.


Sereno caos.










18 de Fevereiro


Final da peça. Serviu de ponte entre o professorado e isto onde navego agora. De qualquer modo estava cansado das aulas.


Embora a actuação possa dar tanto gozo quanto a caneta, as suas condições são tão outras que, ou se faz sublimamente, ou não vale a pena. O aspecto clandestino da escrita permite-lhe o fracasso e as sucessivas tentativas.


A actuação é ou... não foi.










A posse atrapalha-me, engorda (ou engordura) deixo de sentir o mundo e, entre mim e ele, cresce uma plica anestesiante, um solofane que me sufoca e, por fim, perde. O dinheiro é coisa e coisifica. No entanto, reconheço que tenho passado períodos de carência. Mas não me arrependo por nunca ter ido a cada do meu tio rico que, sabendo-se proximamente morto, insistia: "Vem cá que te quero dar dinheiro!".


Não fui e, ao lembrá-lo, sinto o corpo lavado.










O "em si" realiza a matriz de cada indivíduo, o que nele mais se mantém no confronto com o mundo, o equivalente psíquico da sua impressão digital. A maioria de nós morre sem se consciencializar. Mas os que o fazem, conhecem-se. Um cristão talvez diga: “salva-se”.


O "em si", que não é definitivo nem fixo, pois produto de uma relação, afigura-se como o nosso "preço".










Ao passar a limpo o dia 28 de Agosto de 89 deste diário leio, a seguir à minha letra, o seguinte comentário, escrito a lápis numa caligrafia apertada e simples:


"Porque descemos? - Assim falam os Deuses. Que fizeste (fazes)? Escreves, sim”.


Ignoro de quem a resposta, quem, sem mo dizer, a escreveu. E a esta distância difícil será sabê-lo. De qualquer modo, hoje - em que uma transferência bancária atrasada me obriga a não ir à piscina e a dificuldade do percurso se evidencia - soube bem a descoberta daquela mensagem. A Ti que a escreveste, o meu obrigado.






Houve um período em que clamei por Deus, busquei apoio numa entidade a que dei esse nome. Talvez a solidão fosse muita, o deserto imenso e a fortaleza pouca. Hoje, no meio do maior desespero, sei que o Deus está em mim, no meu intenso desejo e fé em realizá-Lo, apesar de todas as aparências. Poderia sintetizar esta fé na frase " Deixa tudo e segue!" expressa em todos os catecismos religiosos, pois nenhum fala doutra coisa, senão do abandono de si para a prossecução de um desígnio, no qual somos meras setas atraídas pelo alvo. Ou seja, chegado aqui, difícil é explicar o que se passa e por isso não gosto da palavra Deus: parece-me - apetece dizê-lo - redutora.






Se não nos convencessemos do nosso fogo e da razão que lhe assiste, não teríamos força para evitar que a saliva da multidão o apagasse; a ilusão suporta-nos e, ai de nós!, se falha. Mas, se não é certo que tenhamos um destino a cumprir, já é um facto podermo-nos atribuí-lo. A vida de gratuita passa a necessária na justa medida em que, sem a nossa acção, o mundo seria diferente.


Podemos fugir à gratuitidade.










19 de Fevereiro


Treinar o desejo sem que, por excesso de exercício, ele nos torne indomáveis, ou definhemos à sua míngua.










De novo perdido no mundo dos homens, embora senhor de mim. Mas esta minha senhoria deixa-me cada vez mais vago, mais distante, como se algo me fosse que não eu, uma sensação de diluição onde o ser apreende mas o filtro deixou de ter proprietário. Alguém sente, é, faz, vai e mexe. Mas quem? Eu? A palavra "eu" revela-se cada vez mais estreita e pobre. "Eu" é o lugar da reunião de umas tantas sensações. Mas não se coadunam umas com as outras e este "Eu" é percepcionado como mero exercício linguístico. Eu... Onde? Talvez, sim, neste diário que, de repente, me surge de uma utilidade que nunca lhe vira: a de conjugar no mesmo local - esse tal "eu" - o que doutro modo andaria disperso.


No diário vejo-me, em mim não me sinto.










As coisas não têm qualquer problema em serem como são. Nós é que encontramos problemas na sua disposição.






Por maior que seja a comitiva morremos sós.






Sou alguém que não quer nada - ou deseja o poder que a posse do nada prodigaliza - e que, no entanto, se mete em tudo.


Chatisse!










1 de Março


Olho este diário como se fosse doutrem e trato-o com o rigor de um bom revisor. A sua leitura perturba-me.










Tanta mais lucidez quanta maior a distinção entre as coisas. Até ao limite delas serem, simplesmente. Por si e como que para si. A raridade deste etapa fá-la divina.










O "aqui e agora" é sempre uma opção entre todos os "aquis e agoras" num determinado indivíduo e momento. Cada qual possui o presente, o futuro e também o passado a que tem direito.










2 de Março


Aqui e agora a razão é a capacidade de atribuir números às coisas. Há porém um quid afectivo que radica, entre outras coisas, na identidade entre quem avalia e o avaliado - o qual, por não ser quantificável, é irredutível à uniformização que a quantificação exige. Este quid é suficientemente forte para alterar um total de parcelas puramente racionais. Logo, a avaliação feita apenas com a razão é falha, pois peca por ausência de informação.


Somos cálculo e instante.










3 de Março


Tudo soçobra e o dia cheio e inovador torna-se sombrio e decadente, incapaz de além. A vida emperra e fico com ela nas mãos sem com que a entretenha. Tudo vão. E que me aguente! Vou ao cinema, olhar na tela como os outros fazem, e nem quero pensar que são bonecos de feira.










8 de Março


De novo as estrelas iluminam e a estrada leva ao mar, depois de dias e dias de tempestade e cegueira.










9 de Março


Passo a limpo o diário de alguém que não quis nada e nem máscara, no sentido tradicional, criou. E viver sem máscara é insuportável senão impossível. Dai a necessidade de escrita para se tapar.










Enquanto a estética de "Chien Andalou" é a do belo clássico, a de David Linch no seu primeiro filme é a do repelente. A insuportabilidade de Buñuel/Dali deve-se à crueldade - plano do olho - enquanto em Linch ela se alcança pela feiura, pelo desgosto. De um filme a outro vai um tempo durante o qual o cinema desceu dos píncaros à terra, dos mecenas aristocratas aos patrocínios Mcdonnalds.


A cena do olho em Buñuel não necessitamos de vê-la para que arrepie. Basta que no-la contem. Mas ao monstro de Linch temos que olhá-lo. A concepção de "Chien Andalou" é mais radical.










15 de Março


O artista realiza um acto político - afirmar-se cidadão artista - quando assina um objecto comum e o torna arte.










24 de Março


Sem paciência ou, dadas as actuais circunstâncias, pior ainda. Porque não posso chamar os "criados" - este nome já é todo um passado - melhor diria, não posso mandar amarrar os escravos e, para minha mera distracção, neste dia estúpido que teima em não ter história, atirá-los, às dúzias, aos leões. Assim, resta-me, sensato, democrático e muito politicamente correcto, entrar numa pastelaria e, com uma fúria que o meu quase inaudível "se faz favor" mal disfarça, exigir meia dúzia de pastéis de nata. Cinco minutos depois, saio da loja curado: o enjôo no estômago substituiu o desejo facínora.










27 de Março


A consciência de que neste percurso fui várias vezes ao tapete levado pela entidade a que sói chamar-se Deus. Tenho de compreender, pois, os que se lhe agarram, de contrário não me teria servido de nada a experiência. Ela subjuga-nos, quer quando não sabemos explicar convenientemente o que nos sucede - muitas vezes de agradável - ou, mais facilmente, quando saímos de uma experiência dífícil e a gratidão nos toma. A quem agradecer, parece ser o problema.


Na verdade sou tão religioso que a intromissão de uma entidade, ainda que sob o status de "divina", no todo de que faço parte me choca e perturba. E quando digo que, por várias vezes, Deus me pôs K.O. afirmo concretamente que o aceitei sem saber o que queria dizer, sem ser claro para mim o significado da palavra. Hoje diria que a palavra me é ateia, a tal ponto prescindo do tratamento que lhe dão os demais. Mas há sem duvida algo que tem a ver com o sentimento de uma plena integração no Universo. E este tem obrigatoriamente que se escrever com maiúscula pois é nome próprio, o nome de tudo o que existe. Muitos chamar-lhe-ão Deus.










A passagem deste diário incapacita-me a sua escrita, salvo para comentá-lo. O olho exterior contaminou-o e o que era do domínio do privado, tanto quanto a relação entre confessor e confessado, morre de morte lógica, exterminado pela leitura. Eu próprio era confessado e confessionário e a relação manteve-se enquanto vingou o segredo. Descoberto um, o diário dissolve-se como sais na água.


Um dia escrevi que o actor se perde no personagem para se reencontrar, como que estremunhado, no som dos que o aplaudem. Se outros se identificarem com o meu percurso - ou pelo menos o aceitarem - talvez a minha perda se justifique, não seja acto nulo.


De contrário resta o confessor surdo mais um confessado que disse em vão.














28 de Março


Fui criado para servir. Para ouvir o látego no ar a condimentar-me o passo. Uma missão como meio e o Poder por meta. E a dor justifica-se pois, neste contexto, a felicidade obtém-se pelo suor.










Em Abril de 92 escrevi: "Entre a felicidade química e a dor prefiro a dor".


Na altura não sabia que o humano se solidariza na dor e que sem ela não reconhece o Outro. Ou seja, eu exigia a humanidade em mim, reclamando a dor para que a minha paixão não fosse gratuita. A razão porque fazemos as coisas nem sempre é clara. Mas a sua ignorância, desde que ninguém mais a sofra, não deverá inibir a acção. Felizmente fui.














31 de Março


Vá, pequeno homem e pequena mulher, faz as tuas piruetas para ficares na história! Lança os teus foguetes e não esqueças de ir buscar as canas! O Processo bem se borrifa para elas e, em todo o caso, elas e tu são-No.


Uma coisa no entanto ninguém te tira, ó minúscula criatura: o que fizeres do ínfimo espaço que te é dado nesta vida. Olha, percorre-o! Faz com ele o que quiseres! Mas faz, desgraçado! Tens um segundo para mostrares quem és e metade para seres lembrado!










A expressão "em si" aplicada ao humano expressa comummente uma camada subterrânea ao "eu", que o informaria, seria o seu mais fundo substracto.


Mas a essência é ainda uma declinação do Processo (só em conceito este se apresenta no caso nominativo) e a busca do "em si" a procura do seu motor. Não de uma forma primeira ou original mas do que, em todos os sub-processos do Processo é constante.


Esquemáticamente dir-se-à que entre o "eu" e o "em si" há a relação existente entre um conjunto A e outro B que possuem uma parte comum. Pode-se viver na parte A sem que o seu possuídor - o "eu" é um apropriador de dados - se dê conta da sua zona de afinidade com B ou, pelo contrário, o "eu" pode centrar-se na parte em comum com o "em si", identificando-se então ambos. Nesta altura, face à imensidade de experiências que advêm dessa conjugação (parafraseando Jung o "em si" contém a "memória da espécie") é bem possível que o "eu" passe, quer a crente num deus, quer, simplemente, a sentir um grande respeito - religião - por essa zona - a do "si" - que ele intui conter a história anterior ao seu ponto de mira, à do seu apropriador eu. Neste caso, o eu, ao descobrir o manancial ou fundo que o integra, fica finalmente capaz de uma "gestaltchung". Lógico que o século XXI - onde tal ocorre - seja religioso. O problema é que provavelmente se tornará crente. Neste caso, em vez de evoluir, regressa ao medievo.






Sendo proibido fazer asneiras - ou mesmo andar sem laço – não havia, em casa, diferença entre o privado e o social. Prepararam-me, pois, para a vida pública, a qual incluía, naturalmente, a privada mas, de facto, a menorizava, pois nesta não havia o confronto com o Outro, ou seja, não sentia o eco do meu ("bom") comportamento na visão alheia.


O privado foi o "eu" e o público o "em si".










Que relação estabelecer com os que não suportam a caminhada e se refugiam na vivência dos sentimentos estereotipados, das frases feitas, das mil e uma fugas a si próprios? Aceitá-los ao mesmo nível da exigência que para comigo tenho, não posso, pois faria tábua rasa da minha via dolorosa; desprezá-los também não devo, pois não sei, precisamente, porque razão cada um é como é, além de que o desprezo retira ao Outro a convivência e, logo, a sua salvação. Mas não devo igualmente ignorar a recusa de si, pois ela põe em perigo a sociedade ao instituir, em vez de coisas concretas, abstracções que matam: a Pátria, o Bem, o Mal, o Amor, Etc..










Navego em águas que, mais uma vez, não atinjo como sempre sucede quando não sei o que faço, mas lá faço, por impossibilidade de não fazê-lo. E há-me o sentimento da fatalidade: os dados foram lançados.














5 de Abril


A minha vantagem foi ter vivido sempre sem esperar nada de ninguém. Nunca me perguntei o que X queria de mim ou pretendi agradar-lhe. Nisto há inconsciência mas incomensuravelmente mais, e a tal ponto este "mais " é grande que anula a inconsciência. O extraordinário, porventura - vejo-o agora em velho, consciente do mundo e seus perigos - foi ter assente essa independência, não em dinheiro mas na sua ausência, no seu repúdio. Tão independente quanto um soberbo déspota cheio de tesouros mas, na realidade, absolutamente cheio de desejo de nada. Vazio. Ora este vazio material veio a unir-se ao nada espiritual de que a escrita, o seu fazer, me encheu. Daí a impressão de irrealidade, de um real irreal?














9 de Abril


Por vezes vê-se. Doutras...










Não se desistiu mas a solidão é tremenda.










10 de Abril


Devo a lhaneza da minha religiosidade a minha mãe que me ensinou "Entre Deus e nós não precisamos de ninguém!" Mas eu acrescento: nem mesmo de Deus pois... somo-Lo.










10 de Abril, no Tejo


No barco - descubro-o ao fazê-lo - sento-me de frente para um fulano verde, de óculos sombrios, igual a mim. Sinto uma pressão maldosa no estômago, um pouco de veneno no meio do ameno quotidiano e mudo de sítio. Junto de um casal, mais ou menos asséptico, mais ou menos incaracterístico, recomponho-me.


Não é todos os dias que nos surpreendemos.










19 de Abril


A minha vida é um sonho que copio para a realidade ou uma realidade que transporto para o sonho? Adormecendo sem saber o que fazer à vida, depois de um sonho perturbante, acordei com um outro, na altura em que um rapaz me entregava um relógio e uma aliança, sob pretexto de que a polícia o procurava. E dizia-me: "Rouba!"














26 de Abril


Pior do que falhar é falhar sem tentar.














12 de Maio


Não te assustes, Carlos, tens quatorze gatos! Nasceram cinco esta noite mais os cinco nascidos há quinze dias e os quatro que já cá vivem, fazem isso mesmo: quatorze felinos! Mas encontrarás quem adopte os recém-nascidos.


Não te assustes!














24 de Maio


Olho o gato que nasceu ainda não há um mês e observa a tudo no ar de querer saber o que é. Os nossos olhares por momentos fixam-se. Vertigem de pensar as coisas ao contrário: eu na pele dele e ele na minha.














Somos caos que periodicamente se organiza










Sem dia marcado, em Maio


As diferenças impõem-nos os limites.














A vida é um problema que tentamos resolver adiando o mais possível a sua solução...














Uma educação sexual perspectivada reprodutivamente conduziu a que não possamos - ou não devamos - mostrar as zonas mais próximas das conectadas com a reprodução da espécie. Porque o desejo, esse, dissemina-se por todo o corpo.














1 de Junho


Sem paciência para contar histórias, concorco com Jorge Luís Borges quando prefere resumir em cinco linhas o que poderia dizer num romance de um mil páginas














21 de Junho


Sensação de um patamar onde nada é seguro mas que se sustem porque o suporta a aceitação do caos. E vive-se tranquilamente junto ao vulcão.














29 de Junho


O pride de ser homo correspondeu a uma época. Não há qualquer orgulho em ser homo, hetero ou bi-.


É-se, simplesmente.














30 de Junho


Faz-se porque sim.










30 de Julho


A voz, a minha voz interior, perdeu a fanfarra. Não habituado à sua nova expressão - exige agora mais atenção visto que sem clarim - por vezes não lhe ligo. Outrora, o sentimento de algo por cumprir surgia claramente como um dever; agora disfarça-se numa tal naturalidade que quase se despercebe. Há tempos que me perguntava por que não ouvia o que antes era evidente. Compreendi-o hoje.














Só o escravo desiludido de atingir o senhorio no sistema esclavagista combaterá eficazmente a fábrica de escravos e senhores.










Sem dia marcado, em Julho


A humanidade vive a sua adolescência. No entanto uns poucos, mais maduros, são indício do que poderá ser uma humanidade sábia.










19 de Agosto


Perder-se no Outro para se reencontrar a si mesmo.










Sem dia marcado, em Agosto


Entre o caos e a incerteza.










6 de Setembro


O écrã, o deus da sociedade tecnológica, cria para descanso de todos nós as nossas próprias vidas que pagamos para vermos reproduzidas. Não o fazermos é aceitarmos que no limite nem existimos.






Sem dia nem mês marcados


O fascismo é álacre no topo e cinzento na base.










Sempre pensei no íntimo que um dia voltaria á droga dura, depois de levar a cabo o que, de modo algum, podia fazer sob efeitos químicos. Passaram vinte e sete anos e ainda não sucedeu. Viciei-me nisto?










As coisas têm o preço do meu desejo.










Os outros.


Outrora não os queria e hoje sinto-lhes ternura, englobei-os em mim. A noção de que há caminhos que levam à paz e outros nem tanto. Se o meu foi o despojamento por que recomendá-lo? Uma vida não se diz, vive-se.














19 de Setembro


Três gatos mortos em menos de vinte e quatro horas: a Pia, a Pinta e o Ki-Yu. Se, com a Pia não chegara a estabelecer uma relação, com a Pinta ela iniciava-se e o Ki-Iu já aprendera a ronronar. A morte. Sempre ela a causar o espanto e, por fim, o nojo. Sabemos da sua inexorabilidade e não a aceitamos.


Entre a lógica e o absurdo.














Deixar as coisas por enjoo. Nunca por menos.










16 de Novembro


Ontem fiz anos e como pedi aos poucos que o sabiam para não me fazerem perder tempo com festejos, também nada apontei aqui. No entanto a intuição da Almendina fê-la logo pela manhã vir perguntar-me: "O Senhor faz anos quando?" E lá me confessei, eu que já tinha posto o telefone longe dela para não se repetir o sucedido pelo meu cinquentenário quando uma amiga lho comunicou. Depois de adulto, foi a primeira vez que senti a idade, com todos a felicitarem-me pelo meio século!


Meio século!


Quantos séculos num só dia e quantos dias de tempo algum, brancos e assépticos como só a vida permite, com o ónus ainda das tensões acumuladas, do stress, a darem a ideia de um viver preenchido e, afinal, apenas um frangalho de nervos a recordá-lo.


Não.


Continuo a ir devagar - agora faço uma especialização em Teatro, ou seja, mais do mesmo para acompanhar a época ou, finalmente, apanhá-la, depois de haver espalhado corpo, paciência - sobretudo nos trâmites das inscrições - por X universidades, conhecido N professores e guardar, afinal, a memória de um - em Paris - que surpreendi em pleno delito de pensar ao vivo. De resto, cassetes, de qualidade excelente umas poucas, diligente preencher de tempo até que a aula acabe, noutros, e um misto de entretimento e estudo de sebenta em tantos mais. Mas também, nalguns raros, o rigor, como no jesuíta que me ensinou sociologia, em Évora, ia eu então na primeira faculdade. Agora, na oitava - numa nem apareci e noutra ganhei mesmo o epíteto de "aluno mistério" - convenço-me de que sim senhor, este curso é para acabar, como aliás prometi na entrevista da entrada:


- Mas que certeza podemos ter de que vai nisto até ao fim? - perguntava a lente-porteira.


- Sabe – disse - de todas as outras vezes segui o desejo que me incitava a ir espreitar isto e aquilo. Agora... bom, agora foi a vida. Afinal, nunca fiz outra coisa senão teatro e este curso já não sou eu que escolho: fui escolhido! Ou seja, resigno-me! E - poderia acrescentar - Que quer? É a decadência! - Se, no fundo, não me convencesse de que chega uma altura em que aceitamos a força das coisas, ou porque baixamos os braços, ou porque ela se revela mais sábia que todos os esforços em contrariá-la. No meu caso deu-se a segunda hipótese?


Não sei.


Talvez, muito simplesmente, a decisão que cedo tomei de me fazer escritor doutra forma que não a que todos esperavam. E no entanto... Valeu a pena? Aprendi mais ou escrevo melhor? Simplesmente fiz outro percurso e, inclusive, arrisco a nem entrar na galeria dos notáveis, pois como me diz o meu editor. "Para fazer carreira de letras há que estar no meio… ser jornalista, por exemplo!"


Que se lixe!


Talvez não haja carreira alguma - ou apenas a da vida com o caixão, como para todos, na meta - mas que segui o desejo, oh isso, ninguém me acusará de ter traído!


Quanto a seguir o espírito, ou a “voz”, como outros lhe chamam, designando por ela o impulso que, acatado, nos põe de bem connosco, (e quantas vezes de mal com o mundo), quanto a isso já depende de aprendizagem mais dura - pelo menos para mim assim foi - e durante anos e anos - levado por teorias e manias - fui de todo contra mim, surdo profundo. Valeu-me, creio, a decisão da escrita e o ter-lhe, apesar da mouquice, sido sempre fiel: ela substituiu a mãe que deixei ou o pai que não tive e foi, sem dúvida, uma amante exigente e cara mas sempre, ao fim e ao cabo, reconfortante. No fundo, à semelhança da voz interior que nos manda fazer isto e não aquilo, a literatura também me exigiu a entrega. E um dia, ia já nos vinte e muitos anos, o desejo e a voz começaram, finalmente, não a entender-se mas a saber um do outro, a desejarem o reencontro. Não eram o mesmo? Até essa consciência, ou diluição dos vários heterónimos no meu nome, quanta luta, suicídios e desesperos!


Tanto mais feliz quanto menos tenho - a custo proíbo o inconsciente do despojamento absoluto, pois o reumatismo contraído na rua quer-me com casa e dinheiro para aquecê-la - cá vou bolinando. Na satisfação de saber que um dia o vento forte virá e me leva.


Leve e vazio como o Nada.










30 de Novembro


Abro a Tv. Um programa sobre uma "conhecida" vedeta. Estusiasmo-me e apetece-me conhecê-la melhor. Afinal a dita vedeta faleceu há dois ou três anos e milhões de fans choraram a sua morte.


Quantos mundos há?










Só o crime condensa a violência do quotidiano.










20 de Dezembro


Extraordinária a capacidade que adquirimos de gerir a agonia.










Sem dia marcado, em Dezembro


Gostamos muito do que fazemos senão nunca faríamos o que fazemos para fazermos o que fazemos.














Afinal não somos os únicos importantes, afinal não podemos destruir e reconstruir do zero, afinal o pai e a mãe tinham em muitas coisas razão, afinal o meio ambiente existe e há que ter em conta não só a família - ainda por cima nas suas mais variadas formas! – como os vizinhos, os quais tantas vezes estão na fase em que nós estavamos séculos atrás, pensando que só eles têm razão...










"Democracia tem-tem": quanto mais se tem, mais se tem…










Encontrar a justa medida entre a pressa dos novos e a prudência dos antigos, sem cair nas garras do dinossauro.










Carta a alguém que me assedia,


Admiro a tua perseverança, direi mesmo ousadia, em enfrentar o touro quando ele prefere nem ir à praça.


Não ver ninguém, não ouvir, não ser, enfim, até que de novo a agenda me obrigue a estar presente, a fazer corpo, ouvidos e fala.


De resto…


Ah sim, a paixão!


Duas vezes ela me tomou. A primeira pelos quinze anos - e, claro, nem sabia que o era - e da segunda em adulto. Porém o prazer não valeu os desgostos. Haverá outra oportunidade? A questão é doutra ordem: preenchido com meia dúzia de coisas, não procuro outras.


Acomodação? Sabedoria? A sabedoria conduz à acomodação?












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