quarta-feira, 20 de outubro de 2010

1997







Quanto mais me busco mais outro encontro.























31 de Janeiro


Um deus na rua.


No último degrau da igreja, folha branca na mão, escrevia. Ao lado a bicicleta - modelo simples, em moda no Olimpo - e, pousado na pedra, o mapa do itinerário na Terra. As pessoas, ao entrarem no templo para preces e requerimentos, olhavam-no distraidamente.


Deus, sozinho e entediado, escrevia.






Sem dia marcado, em Janeiro


S. Martinho do Porto


Erremos mas não nos calemos. E sobretudo ensinemos a pensar.










Lisboa


Companhia por hábito, porque já lá estava, porque continua a estar, é excesso que me descontrola. A minha incapacidade suporta-se melhor sozinho.










Não é o mar que mata, são as ondas.










Não sei de nada. Passei a vida no saguão e das poucas vezes que vi a parte da frente da história foi porque espreitei pelo lado errado.






















15 de Fevereiro


Algo duro ou, pelo menos, ainda resistente firma-se na inércia, no aquém de toda a luz, na desfaçatez, na pulverização, se pó ainda é palavra consistente para o sentimento que dá nome a este estado. "Abaixo de cão" - dirão os humanos empoados na sua dimensão. Nulo e lúcido - digo eu.














Paragem no sono de hora a hora como se em estrada engarrafada.










A manhã no relógio, o corpo como inimigo, a sensação de algo perdido.


"Sabes que horas são?" - Pergunta ela, e informa: "São sete..." "Sim, são sete" confirmo num tom que diz "sei que são sete e por isso me levantei".


Visto-me.


Na noite anterior e na pressa (ou desconcerto?) as roupas ficaram cada qual por seu lado, soltas, desamparadas. Vá lá: os sapatos juntos. E como se tomou banho depois - "vamos ter de nos lavar..." - disse ela, como se a esperma e o suor que nos untava os corpos fossem lixo em vez de espuma do prazer, o duche matinal fica desnecessário: saio. Não sem fazer o check-up mental do "não esqueço nada?"


Agora, cá fora, na esplanada, ao Sol, com o café na mesa e o rio por perto, é o contrário: quero esquecer tudo.


Antes a mão...














15 de Março


Chega tarde e para muitos nem chega. Porquê? Porque outros não querem ou não deixam. E assim nem todos têm.














28 de Março


Não vivi. Fui um papel que o fogo pegou.


Transporto as cinzas.






Sou um erro que cresce com o tempo.










Se construísse uma carreira, fosse célebre, "sucessfull", etc.


Não interessou.


Ou fui de todo incapaz de sê-lo.


Um não sei quê, que me desnorteia mas entusiasma, e une, abjura o "dever", a "moralidade", a "decência". Atrai-me - se de atracção se trata e não é antes fatalidade - o que desprezam, que todos segregam, o desconhecido absoluto.


Querem "arte" onde só vejo castigo?


Merda!














Incapaz doutros, de falas, palavras, frases.


Incapaz.


Olho a lua, o seu rosto na água e sou uma sensação ausente. O universo calou-se. Só, num banco, pacientemente espero ninguém. Eu é que já cheguei e fui logo embora.














29 de Março


Ela que se confessa fascista e está re-Velha deita fora quanto apresente o mínimo sinal de degenerescência.










A escola é uma chatice e, no entanto, os alunos aceitam-me. Mas o tempo que me ocupa, o ar respeitável que me empresta, enjoa.










Que pode acontecer de pior a uma pessoa senão acabar por fazer o que mais gosta, não já por prazer, mas por obrigação?


"Carreira artística"?














31 de Março


Só encontro uma razão para a beleza que procurei através do meu trabalho: a quantidade de desconserto e miséria em que me vi metido.










Sem dia marcado, em Março


A arte, a coisa artística, é própria do louco ou do privilegiado. O homem ou mulher açoitados pela necessidade económica tenderão a fazer informação, pedagogia. Que se passava com o caçador que desenhava animais na caverna?














Sem dia marcado, em Abril


A sociedade menos agressiva será dominada pela mulher: não a que imitará o homem mas a que o influenciará com o seu modo feminino. Uma sociedade mais sensível.


A bisexualidade ampliará o leque amoroso.










5 de Maio


De novo faço da multiplicidade a via e entrego-me à vida, esqueço que faço arte, quero a irresponsabilidade do consumidor de batata frita.










13 de Maio


Farto de ser nada entre dois tempos apressados.










18 de Maio


Sou uma coisa que não pensa. Em mim o pensamento é dor, movimento estranho e convulso, tumor. Tenho no entanto princípios, normas que interiorizei o suficiente para me parecerem uma outra natureza. Não assaz, no entanto, para as sentir minhas: são hóspedes, itens que me habitam e alojo, enquanto me regalam ou, pelo menos, me dão a ilusão de que servem para o comezinho viver. Pois disso se trata. Mas outros olham a tudo e do tudo extraem regras, generalidades. A mim, algumas sucedem e escassas. Olho as coisas e fico-me nesse olhar como se morasse numa água-furtada, cuja vista sobre o imenso mar funcionasse como um slide esquecido na máquina de projectar: lá está e, já agora, porque se mudará?


Mas como, certamente por defesa, pus entre mim e o sentir uma almofada de distância, também já sinto longínquo, incolor, inerme. E passeio, acordo, rio, e sou, nesta aparência igual a tantos outros; a diferença é-me a consciência deste estado de coisas onde, afinal, se implica o mais. Por fim, nem sensações ou pensamentos tenho, e sou apenas vida que escorre: olho-a como criança que atira para o meio do lago o barco que lhe ofereceram e, no pasmo de o ver seguir viagem, esquece que definitivamente o perde.


Acabei ontem a revisão de "Rua" e, pela noite, o vazio, a falta do brinquedo tomou-me. Caí na tristeza. Até que descubra outro entretém. Assim sucessivamente, o tempo passado entre o entretenimento e o nada, sabendo que, sob o tampo da mesa onde escrevo, jaz o abismo do absoluto.














18 de Maio


As coisas tornam-se diferentes, ficaram outras: já não corro ou, porventura, foi o querer que se esfumou: acontece.














19 de Maio


A sociedade de consumo provoca a necessidade do irrefutável, do que não se recupera, da instância sem uso possível, do último reduto. Na busca insaciável de tudo tornar útil, consumível, o mercado induz nos que se definem pelo ócio, pelo "para nada", pela transcendência, a necessidade de se expressarem sob forma intragável. Assim, nos últimos tempos, a marca dessa recusa inscreve-se, não já em objectos, por sua própria natureza destinados à separação do autor e aproveitamento pelas forças do mercado, mas no próprio corpo - a performance sacrificial - ou pelo investimento num espaço inapropriàvel: Christo.


Os adolescentes, esses, mutilam-se.














28 de Maio


Avanço com o sentimento das arrecuas e faço por manter o sentido, não sei em que direcção. Oxalá sirva a alguém tão desnorteado como eu.










Gritos. Avessos. Nadas. Tétanos. Camelos. Eis a palavra, a sintaxe, a história que se demora nos corredores do tafetá, presa da máquina burocrática, na preguiça do ser.










Paragem.


Nada dizer.


O silêncio faz-se.










No limite de me segregarem dizem-me "És um artista". Se o não fora?










Um dia em que ficarei no quarto, de frigorífico bem provido, a escrever, a receber visitas, a pular com os gatos, a ouvir música, a sair para ir ver a “obra-prima”, ou à piscina. E mais nada.














A minha luta, ou teima, ou ainda desejo, tem sido a de pertencer-me.


Emancipar-me dos outros, deixá-los, recolher-me nos bastidores.


Por vezes consigo, outras não passo de fantoche, vontade emprestada a outrem. E, então, há um momento em que o teatro é tal que todo eu peço o cerrar da cortina, a morte do espectador, o luto pelo que sou, o fuzilamento das personagens.


Silêncio e penumbra.


















30 de Maio


Indústria artística: não temos a peça, sequer conhecemos a maioria dos actores e já se escrevem uma tantos textos acerca das "qualidades do trabalho", do seu "interesse", "actualidade" - valor nojento quando referido ao objecto artístico - e etc.


Alternativas: não fazer? – Impossível.


Fazer sem dar nas vistas?


Submeter-me, pensando com os meus botões: “que se lixe!”


















Mesmo que não acreditemos siga-se uma referência unificadora e o funcionamento melhora. O êxito da palavra ”Deus” reside aqui.


















Uma imitação silenciosa que se acumula desde a tardinha. Cheguei, acho que jantei ou qualquer coisa se passou que me deu essa impressão, o tempo passou, e meti-me na cama. Com a sensação de que não iria resultar, de que o sono não chegaria. E é isto. Este estar aqui a moer horas quando o que apetece é outra coisa. Ir além, por exemplo. Ou.


Tédio de vida, não já dos dias. Amanhã tenho novo espectáculo na escola e eu aqui, sonolento, aborrecido, quotidiano, a preparar a surpresa para os que lá forem vê-lo.














2 de Junho


Reata-se.


Anda-se o dia inteiro como papel ao vento convencido no entanto do que fazemos. E quando a noite vem, quando o cansaço tem, finalmente, cabimento, reencontramos a profunda saudade de nós mesmos. Onde estivemos? Porque nos afastámos? Que fizemos lá longe? Coisas... Coisas... Coisas ainda e sempre, e lá nos separámos, construímos o mundo que nos cercou.


Já não vemos.


Em redor, outros igualmente cegos, muitos de lunetas no árduo esforço de lobrigar. O quê? Coisas, mais uma vez. O reencontro é, pois, uma aprendizagem, o voltar à pátria e à sua fala. Ao profundo mar, ao sussurro da rola que nos voa. Ao silêncio. Ao simples estar. A maioria, no entanto, não regressa. Partiu numa distante manhã e, embora se iluda, fazendo diariamente o caminho de volta, cada vez se afasta mais, tomando por fim o fora pelo dentro. Eu, sim, saí, afastei-me e... voltei ao sítio. Mas lá onde me julgam certo, correcto, no lugar indicado, foi só desleixo, distracção, talvez doença de que me devo ver livre. Porque a norma é a viagem constante, o descaso, o colorido multifacetado, o estar aqui e em todo o lado. Sim, dir-se-ia que me uni, que me servi do ir e vir nos eléctricos diários, apinhados de separados, para alcançar a paragem, esse pó que o filtro côa, depois do tanto balançar, resíduo do muito pôr e despir.


Em mim o antes e o depois, a simultaneidade do mundo, o movimento que lhe deu e é origem.


Mas a mudez escandaliza.






















Não sair, não andar nem ser visto, despedindo as vaidades e as mesuras. É que não há tempo. Ou seja, o tempo há - há todo o tempo mesmo - mas, a partir do momento em que o idealizo, conduzindo-me à morte, é como se quisesse parar o mundo: não o consigo, e foi tudo culpa de olhar por outro lado, questão de perspectiva.


Amanhã vou vigiar um exame. A esta hora - véspera à noite - uns tantos alunos do décimo ano repousam ou preparam-se para me enfrentarem, sendo eu o que, se lá não estivesse, o exame deixaria de existir. Que maçada! Ser tão importante num sistema de nada!


O esforço que fazemos para nos convencermos da prioridade dos sinais que semeamos no tempo, chega a esquecer-nos que não estão lá senão para essa função. Melhor seria, pois, ficar em casa a escrever. Mas realizar o desejo torna-se difícil na agenda das coisas úteis. Dir-se-ia que o domingo - o "dia do Senhor" - lhe foi dedicado. Porém o feriado perde-se a repousar do cansaço da semana. E que faz uma pessoa enquanto repousa? Descansa! O bom é quando, depois de repousada, pode finalmente fazer nada.


Mas aí começa a segunda-feira.


Sociedade industrial.


(Felizmente passa.)


















17 de Junho


Dia idiota. Medianamente humano, com as suas pequenas alegrias, passeios, encontros, a fala e os beijos no jardim, os pés desnudos na relva, as cerejas na boca da namorada: um dia sem história se, quem o vivesse, a prescindisse, e de tudo não fizesse um caso.


Olho espantado o que me rodeia, talvez seja a maturidade ou a sensação de que nada me atemoriza (perder os meus escritos? Talvez esse medo também passe: afinal que aconteceria? Passaria a ser empregado de qualquer coisa, vagabundo, porventura, em vez de escriturário de mim mesmo) e sinto a vida plena: dormir é apenas correr para o outro dia, com a vantagem de haver sonhos.


Convite para almoçar por ocasião da atribuição de um prémio literário. Irei? Desejo conhecer a fauna da escrita mas, se ela se me assemelha, não haverá ninguém ao almoço.


Depois do despojamento a que me tenho submetido já escrevo mais simples e, dentro de mim, as coisas tornaram-se igualmente claras.


À noite, na esplanada do Macdonnald's, logo à porta da rua, observo os clientes: jovens africanos, estrangeiros na pele e nos hábitos, gente de passagem, a maioria rude, comedora de hamburgers e batata frita: algum dia a conhecerei? O sofá já me tomou? Neste momento, um jovem vive intensamente entre aquela gente, aparentemente muito envolvido mas, na realidade, distante, ausente e observador: daqui a alguns anos contará como foi. Quando também se sentar no sofá. E todavia não é obrigatório. O risco pode fazer parte da vida. Saber que se ganha a partida retira interesse ao jogo.






















18 de Junho, madrugada


Não apetece dormir, não apetece fazer, e o sonho também não sucede. Um não sei o quê olha dentro de mim e tão pouco se revela. Mesmo esta escrita sai não certa de ser: algo a faz mas, se calhar, é mais para outra coisa que para si mesma. Momentos de imponderabilidade como se a existência, afinal, não tivesse objectivo, e nem a morte a acabasse. Assim, sem para, nem quê, escreve-se, e a noite passa. Inércia.














Sem dia marcado em Junho


Ouvir a sua própria voz é ouvir o instinto de sobrevivência e daí que, porventura, ela não engane. Mas quantos, treinados na paragem ao vermelho e avanço no verde, ainda a ouvem? Ou se a intuem, logo se assustam - e esquecem - para obedecerem à medíocre luz?














O fellatio e a introdução vaginal - do ponto de vista do pénis - têm isto de comum: entram-no num oceano quente e húmido, líquido e fixo, instável e seguro, a imponderabilidade servindo de fundo à prisão da âncora: ficar lá onde não há senão pulsões, potencias, promessas e espasmos, um presente de orgasmos.


















Vagueio nos intervalos de mim.


Não há onde ir: tudo é aqui.


No silêncio do quarto, na mudez das coisas exangues de tão mexidas, ouço o meu próprio corpo, as suas substâncias, e gostaria que tudo parasse, eternamente debruçado na folha, a sensação do dizer-que-não-esgota, e sabe ao pudim que a garota de quatro anos guarda para si, metendo-o na boca colher a colher, poupando o prazer da vez seguinte, como quem junta futuros na borda do prato e os olha, sem desejos de morte.


















Talvez não as consiga aturar mais, às aulas, sinta até vómitos ao lembrá-las, ver-lhes, aos alunos e alunas, os rostos nas fotografias, os sorrisos de esperança, e crença, os olhos brilhantes, não sujos ainda da decepção, logo toldados no cinzetez das coisas, no arame farpado da realidade, outrora risonha e cor-de-rosa.


Chega.


A depressão abate-se na sensação do aperto nos lábios que cerram, e unem, como quem reza desamparado na tempestade, já sem saber se escapa, sem certeza no Além, e o mundo fecha, comprime-se, de repente todo numa masmorra ou, pior, sendo-o.


Os movimentos tornam-se tortos e inúteis, o há pouco luminoso e evidente esconde-se na bruma, e a lama suja-o ricanando do Antes.














(Na escola, numa vigilância de exame)


Ambiente de morte, de tempo que se esgota e não se sabe se chega, de juízo final, do irreparável, do que não mais se repetirá, a história na bigorna, escrita a ferro na memória, como as bofetadas menmónicas dos medievais "Ora recorda!", agora, no entanto, em tempo de revisão e consciência, a foice, a guilhotina, o absoluto: o deus examina.


















2 de Julho


O grupo que me encomendou "Zapping" afinal não monta a peça porque não recebeu subsídio.


Depressão.














7 de Julho


Carta a B,


depois do abalo e revolta, a acalmia volta à escrita, ao papel e ao lápis. Não perderei tempo a erguer-me nos bicos dos pés para me fazer notar ou gritar injustiça. Os dias são escassos.


Entre os 18 e os 37 anos fui: vigilante-preceptor num colégio interno, operário fabril, homem a dias, ardina, lavador de janelas, de pratos, contínuo numa escola, recepcionista, guardador de cães, distribuidor de publicidade, vendedor comissionista, vendedor ambulante, "junkee" (dormindo ao deus dará e pedindo, com outros, cigarros e dinheiro pelas ruas), prostituto (uma única vez, é verdade, e “apenas” para perceber na carne os que o são por carácter ou profissão, e a que sabe) empregado de mesa, animador de feira... E, já entre os treze e os dezoito, sem deixar a casa da família mas para conhecer o preço das coisas: empregado de balcão, escriturário, servente de pedreiro, operário numa fábrica, relações públicas...


















8 de Julho


Não se escolhem as palavras da escrita: elas impõem-se. Numa segunda fase, com todos os cuidados, talvez desloquemos umas e troquemos outras, ou se acrescentem umas tantas: ai, a razão esclarece o sentimento.


















O trabalho que me dou a decidir o indecidível. Depois, no fim do cansaço e começo do extenuamento, julgo chegar a uma conclusão e, por momentos, exulto, até que tudo se reenovela e nada de novo se apresenta límpido, superado, claro: como medir o nevoeiro? O mal reside no fundamento, na coisa em si, no querer partir o uno, superar o tudo. Ir aqui ou além, abalar ou não embarcar, faz parte do mesmo e só no infinito minúsculo a despedida significa.


















A sociedade cola-se-nos. O próprio corpo humano, segregando outros, é um elo que se propaga, coisa que cresce e se desenvolve como uma farinha que, ao cabo de muito tempo na embalagem, cria bicho. Daí que o ser só, o despojamento, o nada, em suma, sejam difíceis não apenas de alcançar como de manter. Ele é a rapariga ou o rapaz que nos encontra e se decide - ou sentem atraídos - a admirarem-nos, ele é a propaganda disto e daquilo que - e quando nos pensamos já dela livres - nos arrebata, ele é tudo a querer o contrário do infinito. Pois o infinito não é uma sucessão sem fim de coisas, mas a sua ausência, a desfamiliariedade absoluta, o não encontrar nunca algo.


Os meus momentos piores tenho-os passado quando o cerco se me compõe e eis-me rodeado de sorrisos afáveis, propostas e serviços. Dai às condecorações e comendas dista um passo.


De vez em quando urge, pois, sacudir o capote e dar dois bons pinotes, pousando lá onde nada pesa, salvo o turbilhão de nós mesmos. Até que mais uma vez nos descubram e o engate se repita.


















11 de Julho


Tomaram-me como se fora coisa sua. E deixei-me tomar como se lhes pertencesse.


O sexo, a imagem, a fala... Alheio a mim próprio, cresceu-me um estranho com quem convivo e ao qual me submeti.


















Ser dos meus actos e de mais nada. E não permitir que o fazer se me torne inimigo.


A sociedade distancia-me e, por fim, abole-me.


Ser só.














14 de Julho


Chega uma altura e... sucumbe-se. Em regra ao económico. Porque uma teoria não o colocou no devido lugar.


















23 de Julho


A advogada, diligente e casta, explica as voltas a dar para que a famigerada herança paterna seja minha. Eu, afundado na poltrona, olho-a. Sou uma gargalhada cristalina que se retém para não lhe rebentar na cara. Nada importa, e as vezes que lhe apareci no escritório foi sempre ela que me chamou.






















O nojo dos afectos, das homílias, dos cumprimentos certos: olho a tudo como se por detrás de uma cortina. Entre mim e os outros, entre mim e as coisas instalou-se a estranheza. Divirto-me, vendo-as com a condescendência que uma avó prodigaliza ao neto mais novo: quando crescer irá embora e, em todo o caso, ela irá primeiro.


















Sou uma máquina de sentir. Mas não tenho nada para sentir e alimento-me de sensações alheias. Se vejo alguém sofrer, sôfro também e, se alguém bate, sinto-lhe a batida. Neste momento, por exemplo, não sei se sinto o que digo ou que sentimento devo ter para estar em conformidade com o dito. Avaria? Em mim é o nada, lá atrás diria vazio, talvez fosse mais correcto. Enfim, um vazio que enche. O nada de que sou prenhe dá lugar a tudo que é quanto lá cabe. Mas sempre com a consciência de que não passo de um quarto vazio que mobílias sucessivas ocupam. No meio disto aborrecem os pequenos factos do quotidiano (o recibo que, afinal, não foi pago e precisa de tornar à repartição, a herança que me repugna mas obriga, etc.) porque me enchem o vazio de coisas nenhumas. Mesmo a militância não é senão uma janela que, volta não volta, abro, para ver o que se passa aos olhos políticos de partidos Tais. Nessas alturas sacio-me de “missão histórica”.


Sou uma sucessão de máscaras. A escrita dá conta do seu despir e vestir.














O Luas, o "meu" gato, adoeceu com problemas de estômago, orgão de que também me queixo. Ao olharmo-nos há mais um assunto de que falamos.














24 de Julho


Maria,


Comia morangos, pensei em ti, e, como da última vez perguntaste se guardava saudades tuas, venho ao assunto.


O que impliquei na escrita foi de tal modo importante - quase diria transcendente - e tanto senti para depois escrever que, em dado momento, confundi os meus sentimentos com os que alberguei, digamos, por profissão. Agora pergunto-me se sinto ou imagino que sinto. Uma coisa ou outra, o resultado cifra-se num afastamento donde o sentimento se observa. Depois do muito andar toda a paisagem se faz caminho, o peregrino vicia-se no percurso e abomina a estalagem. Tenho por ti o sentimento que levou todos os que encontraram a alma gémea a despedirem-na pelo horror de se sentirem acompanhados: no silêncio não há apenas a ausência do som, há um valor em si mesmo. E o silêncio, de qualquer modo, também diz.


A tua presença agrada-me e a ausência - qualquer ausência - me alivia. Porventura melhor quadra ela com o vazio, de que sou feito: contemplação pura. Aeroporto onde aterram aviões de sentimento, passageiros a que dou vida e logo partem num esquecimento mútuo. Nota-se este meu aspecto ou característica de sentir por aluguer, ou empréstimo, quando acabo um escrito e não me afundei ainda noutro: ai sobrevém-me a angústia de não ser, as coisas não sabem porque não há em mim quem mas prove, ausentou-se a entidade que as sentia: sou zero absoluto. Toxicodependente da expressão? Em todo o caso onde o lugar para a paixão ou apenas amor? Nos momentos em que amo e me apaixono, o desejo me faz amante e, apaixonado, logo tudo se mostra claro e o vazio de novo gela. Fugazes momentos, porém, ilusões que não desdenho mas, por honestidade, ou clareza de espírito, não alimento.


As saudades que sinto de ti são desejos de saudades que não tenho. E todavia lembro-te, distante, fria... Personagem de uma história minha? No primeiro momento empresto-te sentimentos, no segundo nada se passa na sala: olhar, apenas.


Literatura?


Beijo.


















28 de Julho


A perfeição - na escrita, na encenação, naquilo a que me entregue - é a vingança da minha congénita imperfeição, a bofetada no deus que me provocou.


Chamarem Arte ao que faço é a compra que a sociedade me faz.














Volto á paz de nada me importar depois da recusa do subsídio à companhia de teatro que, se o tivesse, me contrataria. E quase feliz por assim ter sido, por não haver que dirigir actores, inventar falas, esperar públicos.


Quero estar só e a doença do meu gato irrita-me mais pelo incómodo que me causa do que pela proximidade da morte que lhe traz. Porque há-de um gato viver toda a vida? Porque hei-de eu teimar assim, se é assado?


















(Com o Luas no consultório)


Leio as revistas que contam de belos e cuidados ricos, e eis o peso da pirâmide que se me assenta, já não sei se os afaste, ou bendiga, deseje ser-lhes igual ou ter outros a quem também escorrace. O sentimento da pequenez, depois duma leitura destas, é quase ridículo como se tudo, e até o sentir, ficasse de repente reduzido às dimensões da carteira: eu, com tão pouco poder, oprimo-me, sinto-me soterrado, pisado e vilipendiado? Como é possível? Um ser assim tão nada importante!


















Aflige-me a miséria do mundo, a miséria humana, a incapacidade (por ora?) do humano em construir uma sociedade onde a ignorância e a injustiça desapareçam.


Não ver, não saber de nada. Mas isso não acontece e a tristeza dói, sobretudo porque tem causa humana.


Agir como se pudéssemos melhorar as coisas. Agir como se a pedra de Sísifo parasse finalmente no cume. E libertar Sísifo do vício de carregá-la.


















A expressão inocente do pombo-criança que recolhi, o seu cego tirar-me a comida da boca, a sua obediência à regra que o condiciona, e faz ave. Nunca será livre. E eu? Os outros? A liberdade é a margem que vai da fatalidade à escolha. No mundo animal mata-se para sobreviver (os pombos que observo no meu varandim empurram-se para obterem mais comida). Mas a escola deve ensinar a dar. A riqueza deve ter um limite e, a partir dela, será obrigatoriamente generosa.


As marcas de prestígio denotam a infantilidade do que vaidosamente as exibe.


















19 de Agosto


Páro. Páro tudo e observo-me. Contemplo-me. Nada se passa. Janela cega.


















25 de Agosto


Hoje, pensando da mesma forma que ontem, penso diferentemente, ou ajo doutro modo: as minhas construções não se aguentam. E quem cai com elas? Eu? A minha identidade? Não. Eu sou esta capacidade de mudança, este fluir constante que a nada agarra e ao mais alcança. Literatura? Talvez conto final, narrativa. Terei vivido na história que de mim fizeram, eu, o material, o suporte da escrita.


Coube-me a primeira versão.






















24 de Agosto


Incapaz de saber se é assim mesmo ou se tem remédio. Vejo as consequências das opções feitas e não percebo se me devo felicitar ou mudar de via. Mas ainda o consigo? Quero crer que sim e, no entanto, a certeza não é tanta. Hoje ou amanhã tenho de me retirar para realizar um saldo. Corro o risco de ser levado na onda sem mesmo perceber o mar que me inunda. Vá lá que o contacto comigo ainda se faz e este diário é possível. Mas não me sinto feliz e, pior, desconfio nem ser capaz de tal coisa. Mas tenho usufruído de bons momentos e, em seu nome, não devo resignar-me ao mal-estar.


Há em mim vida, vibra a pulsão e o desejo, apesar das marés que, volta não volta, me submergem.


Continuo só, com o sentimento de viver na multidão, talvez por trabalhar a linguagem. Desligo-me de parcerias exclusivamente físicas porque desejo a entrega sexual com contrapartida afectiva. O meu estar é calmo e senhor de si, como se mais um domínio passasse para a minha direcção, ou uma minha parte se integrasse no Todo o qual, há muito, a esperava.


A experiência refuta-me a tendência que coloca como secundária a identidade: ela existe, é o elástico que envolve o feixe das nossas predisposições. Contudo não tem nome, nem sexo, mas sente-se como algo que nos determina. Quanto mais seguro o ser, mais aéreo se torna. K. tem razão ao falar da sua "insustentável leveza".


Ser é vogar. Ou evanescer-se, no sentido da perca de espessura, de qualidades determinadas. No princípio era o verbo...


Tem-se, não se tem, o jogo é, como em criança, de novo possível. A vida e o estar conjugam-se e o ser saltita: nada lhe diz respeito e todavia é tudo. Sem passado nem futuro, anula a tensão entre ambos, a qual é um produto cultural.


O ser não se confunde com um resultado, da mesma forma que a ideia não é quem a veicula.






















26 de Agosto


O paraíso é a vida sem reflexão: a vida automática. Pensar para quê?


















27 de Agosto


Escrevo para um inexistente: o que tem a sensatez do sábio e a fogosidade do adolescente.














31 de Agosto


Porque não deixo morrer o meu próximo? Tem ele o direito de me obrigar a ajudá-lo? Só encontro uma razão para fazê-lo: sem ele não me humanizo.


















“Morri?” - perguntei ao meu companheiro de embriaguês, depois de fumarmos um cachimbo de haxe. Sentia-me fora do corpo e, se havia alguma tristeza - não muita – pelos que deixava, a indescritível alegria pela libertação da carga física, superava em muito a primeira.


A pergunta quebrou o encanto e percebi-me vivo.


















As pessoas sensíveis devem ocupar cargos importantes senão a humanidade sofre. Os políticos profissionais são um perigo.


















Sem dia marcado, em Agosto


Em férias no Algarve revejo este diário. Estendal de escrita! Um percurso para a luz se ele for bom interruptor.


O espírito é a emanação eléctrica do corpo. Sem este apaga-se. A não ser que a pilha se carregue a tal ponto que, por fim, o dispense. Neste caso a eternidade seria tudo menos gratuita.


















S. Martinho do Porto


Lídia,


Lembro-te e ao que dizes da tua vida. Isto porque, ao reflectir na minha, a acho um desastre! Tão grande que fico sem palavras para continuar.


Faço uma pausa no carrossel de Rua Augusta e devo obrigar-me a mais intervalos, senão o resultado é desvantajoso.


Por montes e veredas recolho canas para levar aos meus alunos a fim de exercitarem o equilíbrio. As canas…


A minha vida é um avesso das coisas.


















O mundo é amplo e não tem objectivo. Tal como o pensamento, simplesmente existe. O Todo trabalha para a sua permanência, pois o que existe quer continuar e perpetuar-se o seu único fim. No Todo cabe tudo sem privilégio de qualquer aspecto. Como pertencer a um partido senão entendendo-o como fase que levará à pertença a todos os partidos? Tudo o que o humano quer saber se inscreve no Universo. Ele é a cartilha. Mas só integrado no Cosmos o humano o entende. Todavia a soberba, aprisionando a humanidade, afasta-a e perde-a. De si, do Universo, da sabedoria.


Os gregos tinham razão: se o Cosmos não é equilíbrio tende para ele. E é ético? Na medida em que a acção implica uma reacção e a justiça se realiza no equilíbrio de forças. Ou seja, o universo é justo no sentido do rigor: o "acaso" dá-se na justa proporção da sua necessidade.


O fim do humano é a consciencialização. “Conhece-te a ti próprio” e integrar-te-ás no Todo.


O pensamento aplicado é próprio dos sistemas de vida mais básicos: a constante busca de alimentos pela maioria dos animais é um exemplo. O pensamento poético – ou estético - faz, "apenas".






















Prazer no falhanço, na desgraça, no mal. Que parte da humanidade me é esta?


















Há pouco queria apontar qualquer coisa aqui. E pensei: não a esqueço. Pois já não a lembro. Outrora o ardor do dizer, agora... agora é como se as palavras tivessem perdido o brilho. Tanto as usei que perderam a novidade?






















Sou uma caneta.


O movimento é helicoidal. A perspectiva muda mas o fundo do poço coincide com a saída.


















Em velho vê-se a verdade que o tempo nos frutificou.


















O preconceito impede-nos a sensação fresca.


















Paris, sem dia marcado, Setembro


O que é a literatura?


Contar o que não se conta, contar diferente do que se está a contar.


















Vila Moura, Algarve


Os ricos têm mais necessidade de protocolos pois lhes é mais forte a mentira, dado o número de interesses em jogo.


















O teatro das férias nas estâncias públicas da moda: olha o meu descanso que testemunho o teu.






















O pobre aceita o mal como fazendo parte da vida. A longa fila de espera a que não se foge porque tem de ser assim - e já os pais fizeram o mesmo. A superioridade económica faz os ricos perceberem que a lei depende do status e que a fatalidade, no sentido em que o pobre a utiliza para justificar a sua pobreza, não existe.






















2 de Setembro


Efeito media: nunca a toquei, nunca lhe senti a consistência da pele, nunca ouvi a sua voz senão gravada. No entanto sinto a falta de Diana de Gales como se tivéssemos vivido na mesma casa, fosse seu vizinho, nos cumprimentássemos todos os dias.


Carente de uma imagem.






















Existo em função da comunicação com a minha voz.


















6 de Setembro


Nesta altura do percurso, iniciado aos dezoito anos com a decisão de deixar tudo e não querer nada - salvo escrever - vejo-me muito distante do miúdo sofisticado que lá atrás fui. A sofisticação permanece, sim, mas no pensamento. O resto é mesmo simples.


















9 de Setembro


Esperar tempera.


















15 de Setembro


Impossível sentar-me á mesa nesta manhã ainda criança e fazer de conta que a vida se relata. Impossível. A revolta estalaria, os olhos não veriam, a caneta sujaria a linha e o sentido, por fim, desvanecer-se-ia. (E para quê o trabalho de encontrá-lo como quem endireita o dia para que o caos o não derrame?)


Assim, não me sento á mesa - salvo o tempo indispensável ao débito destas linhas - não me digo "por onde pego hoje no escrito? " e, sem rumo nem história, desando para a rua: lá não há nada de especial - a vida não tem sede nem sucursais - mas a mesa de trabalho não fica hoje no meu caminho.


Sou algures.


















A quebra. O rumo esquece o seu efeito e a disposição revela-se: a realidade cerca. Sem fuga, afaço-me à agenda das coisas inúteis e construo o dia, desconsertando o tempo em mil e uma ninharias. Aturar meninos e meninas, ouvir larachas, satisfazer o estômago, descer escadas e tomar elevadores. Coisas. Por fim, o sono chegará e terá sido mais uma jornada.


















17 de Setembro


Com um pouco de observação do real e algum talento qualquer pessoa coloca pessoas a falar em cena. Algumas no entanto conseguem fazer disso Teatro.














21 de Setembro


A solidão do personagem que interpreto num filme contunde com a minha e, depois do ensaio, encontro-me em queda: o personagem tem quem o ama, eu, uma mão cheia de conhecidos, admiradores, por vezes imitadores, mas vou para a cama sozinho. Incapacidade? Não saber fazer as coisas, certamente. E confirmo-o na opinião de que a vida me tem sido um glorioso desastre: papéis, histórias, ultimamente prémios... e muito vazio. Preencho-o com linhas de palavras, da mesma forma que outros se embriagam.














A vida consagrada a não se sabe o quê ou mesmo se tem existência.


















28 de Setembro


Há manhãs tão sensuais como o roçagar na pele de um felino. Lembro, em Paris, o regresso a casa, depois da venda dos jornais e da boémia que se lhe seguia, o pequeno-almoço no La Palette, a travessia das Tulherias, o Sol brincando nos telhados do Louvre. Ou o passeio desta manhã, a noite desfazendo-se no dia, a chávena quente do café na mão, o bolo saído há pouco do forno, a felicidade de não ser sem-abrigo, o privilégio sem alarde mas também sem vergonha, como se tudo fora assim, numa forma ideal, sem rugas nem culpa. E os cumprimentos familiares deste e mais o outro a caminho do ofício, o "Bom-dia! Até logo" no balcão da pastelaria, que todos, tarde ou cedo, trocarão, pela morte: tão justo como o resto.


Sensual.


Sem o obstáculo do pensamento, sentindo cada pele de tudo em tudo, e apenas.














30 de Outubro


Tudo é medonho e grotesco. E a bonança de quanto em quando. O que não impede o naufrágio.














Não há paciência. E todavia nunca fui tão disciplinado, tão capaz de escrita e etc. Mas não escrevo por castigo. A necessidade de escrita é mesmo cada vez maior porque, enfim, cada vez mais só, mais afastado, mais longe e... gostando cada vez mais disso. O que vejo, desagrada-me, e o que penso também não anima.


Mas entretenho-me.


O meu optimismo em relação ao mundo é só de princípio. A esperança ajuda a resistir.


















Sem dia marcado, em Outubro


A sensação de que não faço nada de importante e apenas ganho dinheiro. Mas gosto do papel de enfermeiro no filme de M., atrai-me o do pobre diabo que até se chama "Rambo" no de B. e não foi desinteressante o médico que interpretei em "H", embora a minha concepção do personagem fosse mais ampla. E os meus alunos escrevem coisas maravilhosas nos "diários de bordo" acerca das aulas que lhes prodigalizo. Nem só dinheiro, afinal.


















De novo os funcionários artísticos.


Encontro com a jovem actriz X.:


- Vamos ensaiar dois meses e tal, estar quinze dias em cena e de forma nenhuma podemos gastar mil contos em cenários! É uma loucura!


Já não arriscam. Colaram-se à certeza artística como lapas à rocha que os protege do mar. Incapazes de submeterem à prova o status num trabalho mais ousado, o grande medo de, falidos, terem de lavar o chão numa cozinha.


Pelo meu lado, o menos que espero a cada obra que faço é que o cosmos expluda.


A miséria artística começa quando se vive "da" Arte e não "para" a Arte. Só nesta segunda dimensão se reencontra o seu carácter mítico.


















Constância, 15 de Novembro


47 anos!


Numa casa de turismo rural enquanto decorrem as filmagens para que me contrataram.


Escrevo, enceno, interpreto... A minha vida corre por esferas (mas não sobre esferas) que lhe coloquei. Até onde o mérito de me ter fabricado?


Aquilo que porventura a muitos move num fazer artístico - a celebridade, o dinheiro, as luzes - encaro como os ossos do ofício. Do mesmo modo que me deito pelas 22 horas para me levantar às cinco e estar às seis no "plateau". Se assim não fosse talvez comemorasse o meu aniversário como tonta vedeta que não sou. Cheguei a esta situação não sem grande esforço, pois quis conhecer a grande maioria que faz o mundo e o sabor do suor mal pago é-me sempre presente. Risquei a minha trajectória a diamante e aqui e além salpiquei-a de champagne. O resto cheira a sangue e vibra no eco das gargalhadas que dei. De tudo e do meu morrer, sobretudo. Mas nunca poupei a vida para a colocar a serviço doutra coisa que não fosse a arte, não sabendo tantas vezes o seu paradeiro.


O meu apartamento foi assaltado e pus-lhe uma porta blindada. Para proteger os papéis, de modo que eles cheguem ao mundo, em vez de acabarem destruídos por um desesperado que rouba para si.






















31 de Dezembro


Assisto à extrema-unção de meu tio, rodeado das suas duas empregadas. Todos dizemos "Amen" e acompanhamos o padre. No íntimo, no fundo caótico de tudo, ameaça-me uma vontade de riso a que só a morte, a sua anunciada proximidade, põe cobro. O padre hesita na leitura do sermão e por fim interrompe-o: não consegue olhar o texto, tendo por fundo o axadrezado da manta da cama. Lembro que o dito cobertor, pela sua capacidade desviadora da santa atenção, deve imbuí-lo de forças malignas. A manta é retirada e a cerimónia continua. O pároco vai embora e fico a sós com o meu parente. Lembro outro, também tio, mas velho operário, que no hospital, recusou o padre quando este o queria benzer "antes da entrada na morada final". Os ricos são vítimas das suas manias, mas o dinheiro liberta-os, e aos pobres salva-os o desespero.


















Sem dia nem mês marcado


Numa altura em que a pele estala e a cor fulva das tripas contamina a paz aparente das coisas, estas deixam o estado beatífico-sorridente, estúpido e ruinoso dos arranjos possíveis, para mostrarem a crosta rasgada de pus e cuspo. Vómito. O nojo veste a casaca italiana desenhada pelo assassino de Versage e, pénis erecto mas truncado, penetra nas avenidas poluídas de multidão apática e normalmente canibal. O papa despe a sotaina e exibe a lepra. As ruas parem sem cessar becos e cegos. Bandeiras tricolores rojam-se saciando guilhotinas. Eia! Eia! - Grita a criança intumescida de sexo nos bordéis tailandeses perante a complacência do Ocidente, seu tutor. Os partidos comunistas carentes de Staline exigem estátuas-robots e cantam as “internacionais” às prestações, por entre os mutilados dos campos siberianos: saudades de um antigamente que se antropofagiou.


A Primavera despenha-se sobre a cidade e inunda de luz eléctrica as cadeiras outrora de descanso. Eu assisto à morte do pai e da mãe batendo as palmas da fatalidade. Édipo, meu rei! Édipo, meu crente!


Música sangra nos ouvidos dos pans sem bocas, mudos por vontade e obediência próprias. O mundo é belo, para quê transformá-lo? Prove uma fatia e use os sais segundo o seu desejo. Depois passa e deus perdoa: o Senhor lá está para isso! Adão e Eva rendem-se à Morte arrastando a prole à desgraça, mas também à luz. Eu sufoco e o cancro não tem cura. Artistas da associação "cidadãos muito conscientes" produzem filmes pagadores de impostos e crianças nascem de gravata e flor nos cabelos. Eu morro. Ondas sucessivas de fel cobrem de beijos peles de galinha criadas no aviário do dia a dia. "D. Vitória, o que vai hoje?" Os esgotos recusam-se e a merdra prolifera. Os políticos candidatam-se enquanto os cidadãos votam de consciência tranquila, saindo uma vez de vários em vários anos da letargia. Mas só qb. No resto do tempo maldizem quem os dirigem.






















Festa na aldeia.


Os agrafadores sindicalizam-se, os lápis descrevem: as folhas de papel acenam ao vento adeuses de tamanho A4. Nos rios passam barcos e nunca no mesmo. Todavia, as bandeiras, à proa, repetem-se. Sem Índias à vista as populações confraternizam morrendo em guerras cosmicamente tribais. Os céus desfolham-se - ou desnuvam-se - e os deuses aguardam ansiosos que o medo os alimente. Nada de novo se anuncia a Ocidente, enquanto Ofélia repetidamente louca arranca malmequeres dos cabelos de Hamlet. Bem... Mal... Um pouco...


Sono.


Cansaço de dias repetidos, impressos na máquina dos sonhos pré-fabricados, o ar requentado das cidades, o movimento, o ir-vir dos e para os sítios, todos os dias. "Isto é vida?" "Não há regras nem modelos!" disse o poeta e o horror mostrou-se na confraria dos contentes infelizes. A menina tem oito anos? Há muito quem a queira prostituir. Sorria faz favor. Quem segue?


















No tribunal dos conflitos de consumo entretenho-me a escrever enquanto não me atendem. Não há aqui nada que se leia nem eu o trouxe.


Na sala, espaçosa, limpa, bem encerada e com boa iluminação, uma ventoinha prodigaliza vento. Fui o primeiro a chegar, algum tempo depois veio outro - que não disse as formais boas-tardes - e senta-se agora um terceiro que cumprimentou alto e bom som, sem que o segundo tenha ainda feito ouvir a sua voz. Talvez se queixe precisamente de que a perdeu no meio da tanta compra.


Escrever para entreter o tempo levanta provavelmente questões e, ao pensá-lo, são já as questões do entretimento que me ocupam, em vez do mero passatempo.


Uma escrita circunstancial não se destina a sobreviver ao tempo da sua feitura: escrita de consumo pessoal, escrita de certo modo frustrada ou de pouco alcance, dado que da mão chega ao olho do escriba e a mais nenhum. Escrita sem universalidade, e por isso contraditória, pois utiliza uma linguagem comum. Aliás, qualquer escrita de consumo privado é paradoxal, dado que em contradição com a comunidade do meio que utiliza. Ou será melhor dizer que a escrita privada se apropria de um bem comum? Ou, mais adequado ainda, afirmar que, face a um utensílio comum (a língua) a escrita para si próprio é um modo de confronto entre o utente e o geral, sem os incómodos de meter directamente outros ao barulho? Comunicação virtual? Comunicação singular com o apoio da comunidade? Ou prova de que o humano se estrutura no social e quanto o não seja é defeito, senão falha?


Escrita de consumo, escrita popular, pop-escrita...


O tribunal dos conflitos de consumo decide.






















Gosto de fazer mil coisas ao mesmo tempo, adoro perder-me.


E na dispersão, orientando os mil cordéis do imenso mar de tudo, reencontro-me.














O desamparo é o fundamento dos arranha-céus.














Artista é alguém que fala com tanta verdade de si que fala de todos. Daí a divulgação das suas obras.














Em Portugal, mesmo depois da revolução o compadrio tem estragado ou impedido a formação de carreiras. Ao distinguido logo se prefere o amigo e o notável, por mérito, resvala de novo para o esquecimento.


Digamos que esta burguesia, aqui e agora, ainda não reconhece o trabalho, o labor paciente que faz o génio. Prefere-lhe o habilidoso, o esperto, o desenrasca.


















Nojo.


Nojo sem remissão.


A luz fere os olhos e o cuspo social cola-se à roupa.


Não faço por medida, não afino para ouvidos-modelo e causa-me asco a visibilidade das coisas.


Não sou. Não vou. Não sei. Tirem-me o telefone e as encomendas de espectáculos-prontos-a-servir com espectadores e aplausos incluídos. Silêncio. Não falem. Não chamem. Apenas olhos, sentires e mais nada. A sensibilidade é hoje um castigo. Urjo sofás com Tvs á frente. E salas escuras onde me embale de imagens e notícias de todo o mundo. “Pim” à celebridade, “Pim” à comestibilidade, “Pim” aos prémios, azáfamas e a esta própria escrita mais aos seus valores. Não sei. Não quero. Não tenho. Nojo como cordão umbilical entre mim e o Resto


















Depois de me levantar pelas 3.15 para tornar a deitar pelas 6.45, sempre com noite cerrada, e aproveitando o silêncio da casa para escrever, anoto neste diário: "Hoje já cumpri o meu destino".


Idiota, não é? Mas fi-lo.














A gentileza é uma cedência sem dor, uma cedência prazenteira, onde quem cede fá-lo por gosto e o que de pior poderá acontecer, é quem a receba sentir-se vitorioso. A gentileza obriga a outra gentileza, num jogo sem fim a que se aplicam certas regras (ditas de gentileza) para que mude o autor mas se mantenha a sequência.






















De nós mesmo sabemos o que foi posto à prova


W. Symborska






















Em literatura o aparentemente simples é o mais complexo porque esconde a própria complexidade.














Gosto dos fins de festa quando o espaço cheira a suor e excesso.


















O silêncio em volta, comigo na grande cama outrora partilhada, agora só. O relógio. As prateleiras fixas, numa imobilidade marcada pelo servir a alguma coisa: o telefone não toca mas todavia disponível, os sapatos postos um ao lado do outro, prontos a ir, caixas de andar vazias de destino. Tic-tac-tic-tac - relojeia o relógio. No resto, na boca, nas comissuras dos lábios, prende-se a nova máscara, suavemente descida depois da juventude; momentos em que o esgar anuncia a última ruga, o traço mais forte na pele da atmosfera.


Só, na larga cama, outrora...


(repetição para o papel de música)


Lá fora choveu há pouco. De tarde foi o vento e as folhas, surpresas, subiam do chão à arvore:


- Porque caímos? - inquiriam.


















Desfeito. Qual literatura? Qual transcendência? Deus é uma ideia maluca e nem como saco quente já se usa. E no entanto... No entanto neste cabo de tempo, neste fim de tormento - tantas horas aqui, outras mais além e o dinheiro que nunca chega - que bom seria encontrá-Lo calmo, sedoso, tranquilo numa ruga do caminho...


Desfeito.


Desfeito pelo prazer de tanta coisa que bem se poderia fazer doutro modo ou nem precisaria de existir.


Para aqui, para ali, formigas tontas segregando carreiro, vulcões que rebentam, cruzes fora do cemitério...


Que fizeste?


Que fiz?


De um lado para o outro, de lá para cá ou vice-versa: resíduos sem memória, arcaboiços, máquinas inúteis mas acesas. Trim... trim... trim... Literatura? Transcendência? Mea culpa. De... para... de...o.... Encrave. Ave. Nada. Desarranjo. Panne. De cá para lá… De... E... Pois...














Daqui a pouco entra-se em 98. Jantares, festas e similares cada vez me entediam mais. X, "opinion maker", dizia hoje a propósito da comemoração do novo ano: "Menos de cinco sítios é o tédio"!
X tem o tédio na cabeça.































































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