sábado, 16 de outubro de 2010

2003







E não via eu que era a vida!






4 de Maio


Abro este diário para ler a sua última página. Foi há tanto tempo que quase tenho vontade de contar tim-tim por tim-tim o que desde então sucedeu, como menino que se confessa no regaço da mãe. Ela afinal partiu, ficou a memória como há-de ficar de todas as coisas, mesmo as que ninguém recorda: existem, fizeram parte de, e imaginam-se por estimativa.


Mas deixemos.


Que vim aqui dizer?


Decidi que este diário terminaria em 2002. Depois... Alguém sabe um depois credível? Os que o são não merecem qualquer pena, nenhum esforço para que sucedam. Que seria da história sem o "impossível"?


Mas se ousasse dizer o que sinto... E porque não? Para não ler o que não gostaria? Sensação de desencontro, sobretudo. Entre mim e o mundo. Os outros. Falo-lhes, faço e ouço mas é tudo tão distante, tão gesto apenas. Não fui nada do que projectei? Mentira. A leitura deste diário, se mais não houvesse, confirmaria que fui a realização de um projecto, a concretização de uma escrita. O que me espanta - ou dói? - é o preço que paguei, pois não o imaginava. "Dedicar-se à escrever é um suicídio " - sempre me disseram, mas duvido que quem mo dizia alguma vez intuísse de que falava. Como ver o mundo do lado de lá da montra, com ela muito limpa e no entanto... Mas foi a aposta: tornarmo-nos invisíveis para melhorar a vista. Dói, pois, o suicídio, o ser lá onde não se é - e todavia não poder vir embora.


A morte é a esperança, e nisto coincido com Jorge Luís Borges.






Dia em que quero tudo rigoroso e até ponho os atacadores dos sapatos, o esquerdo e o direito, de tamanho igual.






27 de Maio


A cultura de elite exige esforço enquanto para adquirir a popular basta... existir.


O "busilis" para os portadores da cultura erudita é que, na sociedade mediatizada, a sua supremacia tem de ser sancionada pelos amadores das lojas de trezentos.






Sem dia marcado, em Julho


Não quis nada feito. Quis fazer tudo.






O que mais custou a reaprender foi deixar-me ir.






Se a solidão aumenta com o crescimento, como escrevi num tal dia de 1982, isto é, há vinte e tal anos, também é verdade que o amadurecimento - se realizado na direcção de uma cada vez maior responsabilidade - induz à compreensão do Outro. Neste sentido entendo a palavra cristã caritas. Só, mas rodeado por outros que experimento como iguais na mesma solidão a qual, mitigada pelo comum destino, dói menos.






A entrega é o maior acto que a pessoa pode fazer. Porque senão abole a máscara, a sua transitoriedade, torna a verdade pelo menos possível.


A mulher, como digo lá atrás, é subtil e talvez o deva ao cerco que o homem lhe faz. A subtileza é a arma da presa em desvantagem.






"O que vi não me agradou. Não levo nada" - repetiria o mesmo hoje?


Infelizmente algumas imagens de dor, nem nítidas mas como uma sombra escurecem-me os dias mais claros ou belos. E nem são os meus males que recordo mas os que vi ou soube por outros. Sim, o mal alheio impede-me o bem próprio, não consigo ser feliz sozinho. E nesta circunstância, à saída do armazém do consumo, afinal ainda digo: “o que vi não agradou."






Os dias esvaziam-se-me entre o Teatro, um ou outro mui raro encontro, o nadar quotidiano e um sentimento de que algo foge, desaparece, flúi, embora não saiba o quê.


(Outubro de 1982)


E não via eu que era a vida!






Não há felicidade, enquanto sentimento estável e duradouro porque a própria bioquímica, com o seu ciclo de mutações, lhe é contrária. No entanto é possível a sensação de que, quanto dependa exclusivamente da consciência, se realiza segundo o que deve ser. E este dever não é exterior a nós mas ditado precisamente pela consciência. Finalmente a obediência ao seu mandato é ainda o que nos aproxima do bem-estar permanente. Porque o resto são contingências que não dominamos: a fome se não temos que comer, a sede se não há que beber. A dor, enfim, se não há com que anestesiá-la.






É fácil - e mesmo óbvio - sentir-se responsável pelo mundo quando se possui a sua chave. Mais difícil será, quando se assume que não se compreende o seu funcionamento nem existe uma solução, achar-se que o empenhamento continua a ser a regra. A formiga também carreira a sua pedra indiferente ao pé que a pisa. Porque a consciência nos há-de impedir o caminho?






Acredito que outro ser, para nós insuspeito e que provavelmente até pisamos, seja mais capaz, numa situação fatal para a humanidade, de melhor adaptação. Será ele a espécie do futuro até que outra também o ultrapasse. Assim foi e assim será porque a natureza não muda o que se revela eficaz.


Evoluir é adaptar-se.






Se é verdade que o domínio tem ao seu dispor, mais do que outrora, meios de exercer o seu controlo, também é verdade que o dominado nunca foi tão íntimo do carrasco.






O místico e o artista obtêm o seu objectivo - Deus no primeiro caso, o objecto artístico no segundo - através do esvaziamento de si próprios de modo a que, no primeiro a voz divina produza o seu eco, no segundo, a obra surja. Em ambos - e daí a afinidade - o lugar ao Outro.


A arte obriga ao derruir das muralhas que envolvem o ser, ao arrasar dos tabus reconstruindo-os na obra: artista que não se disponha a tal não lhe merece o nome e, quanto ao que se satisfaz com a sua pessoa porque causa "escândalo" ou cumpre as regras do seu partido, não passa de um oportunista que o tempo anulará.


A religião e a Arte expulsam de si os vendilhões do templo.










Tornei-me alguém que no rosto traz a marca do temporal que atravessou. Qualquer coisa como o rictus do navegador solitário. Inquieta e atrai.


A família de sangue foi-se, os amigos, muitos suicidaram-se ou sucumbiram a over-doses (“porque me poupaste ó deus?!”) e tantos que conheci, confiantes e revolucionários no tempo dos exílios, quedam-se hoje em casa vendo o mundo pela Tv. Como a maioria, aliás. Mas a “família” – e não é das menores conquistas dos finais do séc XX – é agora a que perfilhamos depois da prova da vida, reunindo finalmente quem de facto nos parece. Incluindo os que, diferentes de facto, porque de corpo cheio de escamas ou garras, nos ganham o respeito devido a tudo quanto também sofre.


A minha geração, na sua juventude, teve um sonho: produzir um paraíso, aqui e agora. Não diferente na essência da que lá atrás acreditou num “homem novo” e tanta desgraça afinal semeou. O cômputo da revolução cultural chinesa, credo da geração de sessenta, ainda se faz. Mas a juventude é destrutiva, pois não sabe, por natural falta de maturidade, entrar em compromisso. Por isso é sempre idealista. Todavia, creio positivo que toda uma geração tivesse por canção um mesmo verso “With a help from my friend”.


Não nos arrependemos.










"Ser é afastar-se"


Escrevi-o em 1979. Sim, o ser ao individualizar-se afasta-se. Mas depois renasce na união. Consigo, com o Universo, com as suas criaturas. Porque passou o deserto.


Este diário conclui.


A vida, a sua parte de fora, o mundo, a Leitora e o Leitor, irromperam nestas folhas e abriram-nas à Luz. Não há mais bastidor ou forro. Ou há, sim, mas a sua importância é já a do motor que levou a cabo o seu trabalho em silêncio, com discrição mas nunca desistindo.


Quanto à questão que perpassa por todo este escrito "eu escrevo?" teria ficado um dia resolvida com um literário "prémio de revelação" se o tempo não revelasse também outra resposta: escreve-se mais quando se é menos - a escrita é então a bóia que evita o afogamento - e escreve-se menos quando se é mais, ou o mundo nos invade e pinta. E como não se acorda todos os dias o mesmo, vá lá responder-se à questão "Eu escrevo?"!






O círculo e a bipolaridade presentes em todo a parte indicam-nos a enganosa aparência do linear.






A paz resulta do equilíbrio entre (pelo menos) dois e não da vitória de um.





Nunca te traí, ó escrita!



FIM







Lisboa, Novembro 2010
















Nenhum comentário: