sexta-feira, 22 de outubro de 2010


1990


A maioria já perdeu a fala: cita factos, debita dados.





16 de Janeiro
Tempo agitado. A sair dele. Ganhei a técnica, foi-se a intenção. A escrita dissipa-se. Não importa.
Principais actividades: organizo papéis e leio. E aceitei fazer teatro como actor para desenjoar dos livros e também para conviver.
Ressaca da relação com Tomé: não sei lidar com Amor. E desisto porque a dor do desencontro é enorme. Também não sei que fazer à vida. Por agora torno-me conservador de escritos (os meus) como re-velho incapaz de separar-se das bugigangas de outrora.
Ando de bicicleta, leio…
Não tem piada e é vazio.
Desgarrado.



Depois da sua exacerbação, coincidente com o final da adolescência, o ser tenderá a desvanecer-se? Nos quarentas, sinto a tendência para o amortecimento, a agregação  dos problemas dos outros, uma quebra nas demarcações. Mas, desde que não me entregue afectivamente, mantenho-me indiferente ao que não me respeita.
Pelo cansaço, pelo constante bombardeio da publicidade, pelo desejo mesmo de anulação, a vida tende para nos exacerbar o sentimentalismo em vez da sensibilidade. Antídoto: lucidez.

18 de Janeiro
A incerteza dos meus pensamentos angustia-me. Que penso? Quais as minha opiniões? Isto que escrevo é verdadeiro? Perco-me na ficção.

Guerra. E uma manif pacifista no Rossio. Aproximo-me. Entregam-me um papel. Afinal acusam uns tantos de invadirem um país em vez de recusarem a guerra em si.

 Deitado na cama, comendo pipocas, a ver a guerra na Tv...

O mal advém do desejo de domínio. Daí a injustiça.
Viver é dominar.
A luta é a norma.



22 de Janeiro
Júlia,
Aceites, ou não, foste a pessoa que tive de encontrar e eu, para ti, uma outra no caminho da tua necessidade.
Venho dizer-te que é possível impedir que a combustão nos consuma, embora corramos o perigo que ela se extinga. Mas a tua revolta parece viva o bastante para que se saia bem da prova. A partir de certa altura, os outros são a razão da nossa existência. Pela mesma altura só já se fala com o Absoluto. Estamos sozinhos.
Beijo.

Período de travessia começado em 79 quando decidi acabar com a experiência das drogas, iniciada por 75. Não sei se é possível falar de despersonalização mas pus a hipótese de ser homossexual, dado o falhanço das relações com o Feminino. Afinal, são as ligações que não duram, têm também um período de validade!
Poucas concessões a fazer. Uma desencadeia outra e, depois, que resta? Compensações para esquecer o que devia ser?
Torno a sentir-me, a encontrar a autenticidade. Mas já não sou quem era e localizo-me noutros níveis que ainda mal percebo.
A mudança de vida, de quotidiano faz-nos ver melhor a pele, largar a que já não serve.





Júlia.
Relação tanto mais difícil quanto se partiu do zero, do desconhecimento mútuo, do mero encontro num bar, de um fim de semana cá em casa que se prolongou. Viver  da forma como o faço, por luxo, viver por viver, permite uma enorme disponibilidade. Mesmo os maus bocados são experiência.  Importa é que não haja tempo morto.
Gostaria de ser um homem bom. Mas tal não implica a passividade ou uma aceitação absoluta. Porque há injustiça. Logo, o bom tambem condena. Qual a diferença então do carrasco? Talvez o bom seja o que compreende as coisas em toda a sua amplitude e, por este motivo, se vê impossibilitado de qualquer julgamento. Mas tem de agir. Tem de condenar. Não há bom sem partido.





Sem dia marcado em Fevereiro
Vazio. Talvez uma aragem faça mover - e quão ligeiramente! - o fundo do abismo. Mas, em cima, não há som algum. Não sei se foi suicídio ou o desembocar lógico de mil e uma ribeiras. Mas deu no que tinha a dar e, agora, é o nada. No entanto (inércia?) a escrita continua, propaga-se, reproduz-se. Talvez seja a situação típica de quem escreve há vinte e pouco anos: ficou-se pelo meio mas cresceu o vício. E continua-se.
Outrora - quando comecei -  havia um "algo", um inonimável por dizer e tinha que deitá-lo fora. Não era bem um murro no mundo mas teria a sua força. Actualmente esse "algo" despiu-se, ou desvaneceu-se, tornou-se objecto de um movimento que o virou do avesso. Terá havido uma explosão no meu dentro e, neste momento, todo me estilhaço em muitos pedacinhos que de mim perderam a identidade. Assim, desconheço a consciência. Existo, algures. Disperso. Difuso. Lasso. Quem? Onde?





- "Não escrevas sobre aquilo que já tens. Inicia qualquer coisa de novo!"
Talvez Júlia tenha razão mas, sobre antigo ou actual, escrevo sempre no momento vivo.
Passo as mãos pelos papéis do arquivo como quem afaga o pêlo do gato que há muito não nos vê mas reconhece: lá estão os manuscritos disto e mais daquilo, alguns quase irreconhecíveis sob o que se tornaram depois. Melhores? Piores? Teria sido mais justo não os submeter à tortura, deixando-os tal qual o espírito os deu à luz?  Ora, tivessem-mos tirado das mãos mal os concebi! Não sabem que sou infanticida?





Uma parte das pessoas consegue optar, uma menor parte leva a cabo as resoluções e a grande massa sequer se ouve. Isto é: não se leva a sério. Alias, a maioria já perdeu a fala: cita factos, debita dados.



9 de Março
A intuição para encontrar e a razão para seguir.



Sem dia marcado, em Março
Júlia a dormir na cama, sem roupa por cima, nua. Cobri-a. A perfeição dói.



6 de Abril
Náusea.
E uma curiosidade que não pára de crescer, o desejo de novas descobertas, outras pistas. Se pudesse ensinar a raça humana este meu vago viver seria menos árido.

Porque não sinto o que sinto, e sim este sentimento que, no mais das vezes, não passa de um desejo de sentir?





Na verdade não quero Júlia.



14 de Abril
Calo a felicidade (hoje sou feliz) porque o sentimento se esvai e desaparece na linha que o descreve. A escrita, doce derrame de um sentir que é dor. Que dizem as palavras quando a cegueira lídera o sonho? Ser sem ser disso consciente, o extâse que os santos habitam, a boca que não se cerra, e fala, e gesticula,  talvez porque o corpo pesa e o cume só se alcança na sucessão dos patamares, um sempre mais além, e esse sim....
Morte, vem!





Sem dia marcado, em Abril
A divisão corpo/espírito favorece a ideia de que a irracionalidade é do lado do corpo e a razão do lado do espírito.

5 de Maio 
Bloqueado. Por onde começar? O principal é a relação com o  Cosmos, sentir-me bem no Universo. A minha arte nasce dessa relação. Para defendê-la não me importo de ficar de mal com a humanidade.



11 de Maio
O desespero liberta, torna-nos senhores do Nada. Tudo é então possível porque o interesse é artificial e a consciência omnipresente.
Passou o tempo em que a palavra Deus me ganhou significado. Neste momento, embora faça por me sentir integrado no todo, a lucidez  vê-me relativo, medíocre e desnecessário. Diariamente luto pela minha necessidade. Mas ela nunca se afirma absoluta e a morte ganha sempre.



O mais difícil é seguir a sua propria via, impedir que os outros - para quem mais acima ou mais ao lado pouco importa - nos estraguem o caminho. A eles tanto faz mas, para nós, um pequeno desvio significa logo um trabalho de Hércules.





Muito tempo sem escrever aqui. Talvez tenha andado longe de mim ou não me quisesse encontrar. Perder-se é, frequentemente, apetecível mas, no fundo, idiota.
O tempo escasso e a obra imensa. Mas nada me diz que esta exista e tudo não seja  uma aposta no vazio. E no entanto... Porque fazer outra coisa? Assim como assim,  tentou-se a grandeza, o ir além do mero bicho esgaravatando a terra.





A vida - ou o que tenha feito  dela - tem dado os seus frutos. O que significa que ao humano é possível trilhar um caminho e semear o que colheu. A frase de Teresa de Calcutá que ninguém nos abandone pior do que quando nos encontrou ganha-me importância. Que melhor, do que ajudar à miséria esquecendo, por momentos, a nossa?





Não já a literatura - deixou de me interessar - mas o contacto com o âmago através da escrita.
Possa o meu esforço de vida ajudar alguém a encontrar a sua.
Há caminhos em que a felicidade é superficial, como aqueles em que, sentindo-a, o corpo no entretanto sofre: caso das drogas. O encontro consigo mesmo, com o que se é - depois de passada a crivo a educação e quem nos quiseram fazer - com o que não se pode deixar de ser, parece-me o objectivo da vida. E que uma eficiente constituição política nos preserve do mal que o bem alheio traga.
A crise de valores significa que não há ideais oficialmente reconhecidos. Mas todos sabem que matar, causar dor moral ou física é sancionável. Não há crise de valores que  esqueça a  fome, a ignorância, a insensibilidade, a injustiça.
Crise de valores de quem?





Sem dia marcado em Maio
Embaciado numa não-vida, com as coisas a fazerem-se, não porque sejam interessantes em si mesmas mas porque servem a.
Quero separar-me de Júlia.



Ser. Deixar ser. As regras serão as que o momento necessita.


No fundo de cada qual há uma potência que,  desenvolvida, nos torna humanos. O carácter - conjunto de características-instrumentos (persistência, ductilidade, rigor, etc)  que nos servem e trabalham - decide o que fazemos de nós.





5 de Junho
Silêncio... Papéis... Caneta... Passeios solitários à beira-rio. O resto pouco ou nada  interesssa e o telefone toca insistentemente sem que o atenda.
Tornei-me de uso próprio, estar com os outros é incómodo, descentrador e cansativo. Ter todo o tempo para isto, sentir isto, usufruir do momento enquanto o vivo.





Tempos atrás usei a palavra "Deus". "Estar com Deus" era então o equivalente a sentir-me integrado no Universo, espontâneo, isto é, realizando a todo o momento o desejo. A palavra "Deus" no entanto, parece-me abusiva. Deixo de utilizá-la. Mas o sentimento de interioridade que extravaza do meu mundo  mantém-se. Quando escrevo, aprofundo-o, e o tempo assim é-me grato. "Distrair-me" na vulgar acepção da palavra, soa então a escândalo.





Ouvir os outros e não menos a si próprio.
Não querer agradar nem parecer o que se não é.
Possuir unicamente a si mesmo e, ainda assim, perceber que se é apenas mudança.
Todos os dias ampliar o ser, dirigindo-o para o infinito: ir sempre além.
Nunca menos que rigoroso.
Decisões sem consequências práticas são inúteis.
Compreender os outros mas repudiar as falsas cumplicidades.
Usar da razão ouvindo também a intuição: só na harmonia de ambas o ser avança.
A pressa não existe. Mas o tempo da vida individual é limitado.
Destrinçar a cada momento o que sou e o que me é o espectáculo, o anti-eu.
Lutar a cada dia por que a sensibilidade não me seja reificada, usada e capaz de encomenda.
Não sucumbir ao desejo do aplauso e desprezar o prestígio das palmas compassadas.
Manter-me vivo, apesar da morte que ronda.
Não me ferir irrecuperavelmente na luta contra os falsos sentimentos, evitando ser sua vítima e objecto.
Preservar a minha necessidade de união com o Universo, sem cair no cego instintivismo.
Não sucumbir ao desespero e ao isolamento por não haver a quem, delegando na divindade o que tem como fim apenas o humano (Aconteceu quando não via nada e fiquei cego de mim)
Continuar sem possuir e manter aceso o desejo.
Despojar-me do que sufoca.





Escrever neste diário significa não ganhar crostas, capas ou mesmo literaturas.
Conta bancária: 3 927 Escudos.
Devia ser isto que queriam dizer quando avisavam: "Viver da escrita é um suicídio!"  Tanto pior!



Lembro a única tareia da minha infância quando, aos quatro anos, me levaram à missa e todo o tempo recusei ajoelhar. "Carlos ajoelha! Carlos ajoelha!" - insistia a mãe.  Mas a vergonha de que me vissem de joelhos era tão grande que não podia fazê-lo! Haveria acto mais humilhante?





Sem dia marcado em Junho
A morte retira a importância a tudo e, simultâneamente, confere-lhe premência.





Sem saber a quê ou a como. Os dias amontoam-se. Nenhuma razão para que exista nem para que deixe de fazê-lo. Resta o entretenimento.





Toda a educação pretende formar-nos de tal forma que a miséria se nos torne "normal".
Talvez já não pertença à grande quantidade dos outros, talvez já pertença a coisas escassas e mínimas. Não importa. A vida nunca foi tão intensa, a alegria mágica e a disponibilidade autêntica.





25 de Junho
Feliz.
O sexo levou-me à dependência.
Retomo as rédeas.





7 de Julho
Impressão de me terem feito mal mas que esqueci onde e quando.
O medo impede a entrega. E sem entrega nada chega às últimas consequências. Ora, experiência que não as atinje, falha. As coisas fazem-se com generosidade, ou decaem.





26 Julho
No caos crio
Na incerteza sei
De nada me alimento
Na morte ressuscito





30 de Julho
Alheio aos efeitos que os meus actos artísticos possam ter sobre os outros, faço-os por uma necessidade intrínseca e incontornável, por vezes lamentando mesmo que tenham de ser como são.



É a planicie que faz alta a montanha.



Tens medo da entrega. Do dar que isso provoca. Mas a vida não é asséptica. Sabias?
Perder-se no Outro para se reencontrar a si mesmo.





Sem dia marcado, em Agosto
As pessoas, por medo de serem aquilo para que, justa e naturalmente, sentem tendência, tornam a vida uma coisa mesquinha. O amor que arranca cada qual às suas paredes íntimas, tornou-se um jogo consumista - de corpos, vantagens, poder - reduzido a nada, senão ridicularizado, em nome de uma "independência" que não passa de uma má leitura da vida, com o consequente afastamento do humano do seu meio ambiente e a destruição mútua.
Se não me entrego, metido na minha parede de ossos e carne, falho, e a experiência resume-se à observação, coisa clínica e de dizer "obrigado".
Não viver por filmes. Deixar que o  caos se instale, provoque rupturas, quebras, desordens. Impedir que o dia de hoje, o seguinte e os demais se pareçam a modelos da existência número Tal. Ousar não ter pai, mãe, nem sair a ninguém. Ter por objectivo na vida a sua própria construção.
Reinventar-se a cada momento.





Sem dia marcado em Setembro
Muitas perguntas e poucas respostas, eis a condição.
Enveredando na vida através do que gosto - a Arte e, não fora o receio de ser mal entendido, diria  Religião - a incerteza - mas não a insegurança -  tem sido a  minha mais fiel companheira. Não me carreguei de coisas e quis estar tão disponível como se a terra fora o meu único colchão. O meu rigor construiu-se sobre tal premissa.





17 de Outubro
Estar apenas comigo, sabendo de antemão que este "comigo" alberga o Universo. Quem sou: pergunta trivial e vaidosa. Que importam as estrelas?  Já ouço a morte bater à porta e, mesmo que a não abra, ela trouxe gazua. Que adiantam as letras, as maiúsculas, as lápides comemorativas ou as cerimónias  oficiosas?  Não vêem que quero o impossível, a eternidade ela mesmo?  Odioso festejo do meu nascimento, maldita a hora em que o mundo teve início! Páre o tempo, evitem-se os dias! E, no entanto, escrevo em obediência ao the  show must go one!
Sem saída.
Sem solução.
E sempre no ouvido a escrita a rir-se, a dizer-me se for eu... E depois? Sim, quando a espécie tiver desaparecido quem viverá por mim esta morte que já me paraliza? Deus? Vou então tornar-me crente para que me reste uma testemumha?
Seja definitivamente o total nada.

18 de Outubro
Mal.
Tão mal que nem há fala.
Desafios... Desafios... Desafios...
Dormir para sempre...
Eternamente.
Que é do feito?
Que é do...?
Tudo se conjuga tão bem
que Deus não faria melhor.
Perdido no encontro.
No êxtase.
Nada, nulo infinito:
É-se. Apesar do se.
Felicidade? Amor?
Onde?

20 de Outubro
Os outros desvirtuam-me embora reconheça que neles me fiz. Mas, a partir de certo momento, construí-me mais contra do que com. Ou que o "com" se canalizou para o "contra".
Impossível a conciliação, o fingir que. Soa a traição e só em nome do amor, da paixão, enfim, de algo que obrigue ao esquecimento será possível trair. Louco pela lucidez, embriagado pelo seu sabôr, recuso mesmo o diálogo para não me perder na palavra alheia. O que me existe, exige todo o lugar,  todo o tempo e apenas as estrelas por testemunhas.





28 de Out.
Afastado o afectivo, mais calmo o instinto. 
Terror de me circunscrever ao pequeno nada, de não ir além.





30 de Outubro
Um artigo de jornal diz que os próximos anos serão maus.
Alheio a tanta coisa, vivendo com pouco e alimentando-me sobretudo de estrelas, leio o artigo dando comigo a pensar que, afinal, vivo entre os homens. E no entretanto a vida passa.
A relação com Júlia tem sido uma longa fotonovela. Preferível a solidão onde esfriava a esta espécie de vida conjugal zarolha.
Voltando ao artigo do jornal: o que me chocou foi  perceber até que ponto me alheei das dificuldades da vida e enveredei pela escrita. Ou não enveredei coisa alguma e fui enveredado. Aconteceu como pode suceder a quem arranja uma doença? Há dias em que não consigo destrinçar dentro de mim o verdadeiro sentimento. Nada me é, realmente e, se for a ver, o que me existe é a mais total passividade, o vazio. Um imenso mar escuro donde me brota esta fúria de escrita. Gosto de Júlia? Apetece-me isto? Faço aquilo? Tão indiferente! Ou é  mentira o que digo e desejo tanta coisa?  Faço uma pausa e vou respirar fundo para o varandim. Ver o que acontece.
(Depois)
Sim. Quero ficar sozinho. Não ter ninguem à roda. E, súbit,o Júlia aparece com uma chavena de café. Sedução? Como viver sozinho... acompanhado?





Ser qualquer coisa que preencha o ôco que me habita. A quantidade de sentimentos que sou capaz de viver!





Sem dia marcado em Outubro
Pinhal de Frades
Alturas em que a vida parece uma coisa sem efeito ou porquê, o espaço entre dois pensamentos, o tempo duma espera que se eterniza e não há onde, apenas o rol das pequeninas tarefas diárias que, desfeitas, ninguém, e muito menos o cosmos, daria por elas. O zero sem ser o absoluto, uma mosca que voa cega e pateta, a vida que continua por igual modo sem meta. O nada sequer mesmo com maiúscula, o breu fora da janela igual afinal à luz por dentro, a tornar ainda mais cru o contorno dos objectos, inertes, aguardando uma utilidade que porém o espirito nega, prisioneiro da carne que apodrece, do corpo que não se sabe para que seja.
Nem fins vitoriosos e sorrisos, nem hinos ou morais de histórias.
O espaço, o tempo, a morte, que se faz e infiltra por mais portas que fechemos, ou cortinas que  cerrem.
E assistir a tudo isto de olhos abertos, em carne viva.





5 de Novembro
Guerra com o Iraque? De um e doutro lado duas aves de rapina. Haverá guerra de boas causas? O que aceita a guerra já não a perdeu? Qual das fracções escolho? E que tenho a ver com o petróleo? Não me saberei alimentar de sementes e terra? Para quê viajar tão depressa? Ghandi não tinha razão?  Alheio a tudo, sou incapaz de escolher entre branco e negro mas não de refazer o mundo de alto a baixo.
Eis a contradição: integro-me no mundo dos "senhores" e não  desejo pertencer-lhe.
Há dias em que mal me ouço, tão longe, tão fora disto e dos seus problemas. Nem existo ou sei o que penso. E todavia sou. As minhas certezas advêm-me nas situações limites. Até lá é tanto faz, desde que não me impeça o ser. E, sendo ele sobretudo interior, o meu impedimento começa bem tarde. Não dizia eu, preso em Caxias, em 71, logo ao levantar, e tendo na véspera visto os camaradas regressarem, em bruços, da tortura: Mais um dia feliz!?




6 de Novembro
Como se não conseguisse ir ao fundo, quer dizer (e a expressão "quer dizer" já sintoniza a dificuldade em chegar ao âmago da linguagem) como se entre mim e o texto se interpuzesse uma capa. Que me desvirtua e afasta. Quanto mais rodeado de sociedade mais uso clichés, frases que me des-são, dando-me Outro. E este agride-me.
Mas desvanece-se a sensação de teatro, de diário escrito para ser lido. Ao mesmo tempo, não sei se por desafio, apetece-me rasgar o ser e depositar nestas folhas o que talvez nunca se deva dizer.
Só berrando as diferenças, as idiossincracias podemos subtrairmo-nos ao abraço da massa. Mas ela, comprometendo-nos no seu gosto e modo de viver, procura que não a deixemos. Por fim afoga-nos. Salvar a sua vida, dizem os cristãos. Mas os caminhos da salvação podem nem ser os mais cristãos.  Os mandamentos: ponto de chegada e não de partida.





- Então o que é que faz?
- Sempre o mesmo.
Monótono, pobre e, apesar dos outros e mesmo com alguns deles, faço nem mais nem menos do que a construção de uma vida. Hoje, especialmente consciente.





Ao ler este diário, as linhas acima escritas pois, graças à sensação de sufoco que me toma, e logo faz sair porta fora, nunca consegui lê-lo todo, mas, dizia, ao reler algumas destas linhas sinto como se não me pertencessem, fossem doutrém, idênticas, em suma, a quaisquer outras que tenha lido. Como gostaria de ser único, original, fogo que queima e não deixa ninguém indiferente. Nesta medida só a loucura vale. Poupar é contra a vida. A natureza é pródiga.







Brevemente os quarenta anos.
Sinto-me apenas eu, perdi algumas ilusões embora não muitas pois não acalentei tantas (uma de facto houve: a de participar numa sociedade feliz) e ganhei distanciamento. Quero ainda o que decidi aos onze anos - tornar-me escriba - e nada mais importa. De certo modo este meu fazer deve equivaler nos místicos ao estar com Deus ou em Deus. A analogia é possível porque a escrita - ou a arte - obriga o praticante a um sacerdócio de verdade: não mentir aos outros e, muito menos, a si. Em contacto com a profundidade é-se, apenas, e o ser repousa na claridade. Esta linguagem não é mística? 









9 de Novembro
Acabei Cristiannia. Como sempre, apaixonado pelo que termino. Depois, bem, depois...
Não há disciplina sem objectivo.
Eu não natural me confesso e não sei onde tudo começou. Gostaria de escrever poeticamente mas nasci fora do tempo: restam a velocidade e o desperdício. Sobro-me porque há em mim silêncios e ilhas. Não ouvir as vozes, não captar os ruídos: saber, apenas, o que digo.







15 de Novembro
Quadragésimo aniversário... Satisfeito mas... sou só isto? Sabe a pouco. Há quatro ou cinco anos dei comigo a pensar no meu tamanho, na minha pequenez, apesar do meu metro oitenta e cinco. Afinal... Desencontro entre a potência e a miniatura que me encerra! Boneco de brincar! E todavia estou na popa do navio, vejo para a frente, para trás e para os lados. Tive a coragem de optar pelo que queria.
Cá vou.





20 de Novembro
Sem pressa nem objectivo. Está-se. E o importante é o momento uno, pleno, intensamente vivido. A sociedade - mais o nosso medo da Morte - levam-nos a correr como caranguejos que fogem do fim.
Deixei de querer chegar a algum lado. Escrevo, sem pressa ou ruído. Nada me apela, prémios ou honrarias. A minha peça Beileira exibe-se no dia 7 e se me disserem que não se faz, ser-me-ia igual. Todavia não afirmo que tudo é idêntico ou que nada vale. Pelo contrário, só o esforço, o trabalho, a entrega podem levar à meta. A paragem só tem sentido no máximo movimento.
  






26 de Novembro
Impossível existir quando se lê a correr, vê depressa e a a quantidade das coisas que interessam, ultrapassa a capacidade da sua apreensão. Escolher. Ficar por umas tantas alíneas. A relação com A ou B, o nosso interesse fundamental...

Não se atinge o que há mesmo por dizer ou que esta parte das coisas não se deixe apreender.  Uma cortina entre mim e o papel. Talvez a da literatura a exigir a terceira pessoa. Ou outra coisa ainda. Não acho a minha vida artística ou inspiradora. Apanhado "nas malhas do império". Libertar-me-ei? Se for indispensável...

28 de Novembro
Há em nós um animal que pretende ser escutado. Dêmos-lhe ouvidos mas não carta branca.
O útil e o agradável. Da sua boa combinação depende a boa vida.





13 de Dezembro
Amar igual a sofrer?
O distanciamento face aos sentimentos ou a percepção de que, embora parte da vida, não a esgotam. 
Relação com Júlia estranha.
Amo-a? Não. Então porque continuo? Comodidade? Uma enorme comodidade que me diz que, finalmente, a felicidade ou o bem-estar residem mais em nós que nos outros e que estes, desde que não ultrapassem certos limites, são indiferentes?





Ver desabrochar um ser e olhá-lo.
Encontro com Lucio que descobriu a sua homosexualidade recentemente, a deseja e que, até ao momento, não teve qualquer experiência sexual mais profunda.
- Importas-te que seja contigo?
Corei. Lucio, agora maior, tinha sido meu aluno e...
- Sim... - Disse como virgem prestes a deixar o mundo.
- Então? - Quis ele saber por fim.
- Como se entrasse numa catedral de veludo - confessei.



O que mais admira nas pessoas é a sua capacidade para fazerem da vida uma chatice, a facilidade com a que a tornam  uma prisão.
Júlia diz que a esperança de continuarmos juntos é fraca porque não suporto o seu alcóol. Respondo que o assunto não é grave. Por momentos parece surpresa pela resposta, talvez desejasse um drama, uma exaltação. Tão longe disso... A  vida tem-me preparado (ou o que fiz com ela) para  aceitar tudo como normal. Há coisas que causam  sofrimento mas poder-se-á viver sem uma dose de fel? Portanto o melhor é pouparmo-nos ao trabalho da surpresa: causa menos prejuízo e cai-se na realidade mais suavemente.





14 de Dezembro
Viver só?
A liberdade não começa pelo despreendimento do desejo?
Viver com outrém é trabalhoso e o seu fruto a cumplicidade na solidão.
Cansado do mundo, das suas voltas, desvoltas e, todavia, ele continua. Sentimos e sofremos. Vontade de pôr a sensibilidade de quarentena.
Afastamento cada vez maior. Não apetece ver, frequentar ou ouvir. Eu e os livros: estas não berram, não se impõem e estão quando necessito.
Dói a boca de falar tantas palavras que não dizem e só atraiçoam. Silêncio. Recolhimento. Solidão.  Empregar o tempo a trabalhar, escrever, descobrir...
No cabo de longa recta, sei a direcção mas é difícil continuar a viagem.

23 de Dezembro
Anjo companheiro, guarda-me que de mim tantas vezes me perco. Seja luz a minha fala, mar o meu destino e o Nada a estrela polar.



O desinteresse por certas histórias acentua o desejo de contar a minha?
Ao inicio buscava a glória, o reconhecimento... Os jovens são todos idiotas?
Escrevo para me compreender.
Mesmo num diário é um personagem que construo: eu, visto por mim.
Sem interesse.







Sem dia marcado, em Dezembro
Não há a que nos agarremos. Navega-se num mar que, fatalmente, nos engolirá. Sabemo-lo e esbracejamos até as forças faltarem. No entretanto fazemos e dizemos como se para a eternidade.





Compreendo Rousseau quando dizia que perdera o amor-próprio. Também não me importo de ser um falhado, etc. Já não fere.
Sou-o.






27 de Dezembro
Afastei-me do silêncio interior devido a problemas que não sentia, aos quais era e sou alheio mas que se me entranharam: tornei-me preocupado. A minha ligação aos outros resultou nisto. Não devo, no entanto, esquecer a origem extra-terrestre, pois vim do outro lado das coisas. Logo, verificar se é indispensável:
- Dizer o que digo.
- Fazer o que faço.
- Encontrar quem encontro.
Na sociedade que tudo consome os actos praticam-se pela única razão de serem praticados.





Revolta.
Revolta contra tudo e acima do mais contra mim, esta condição que me subjuga e traz preso ao que tem de ser, não me deixando ir além.
Há quanto tempo dura este diário, há quanto tanta coisa que nem sei, este acumular de passado quando desejo o presente, o ser intensamente, aqui e agora,  sem ter de contar histórias para satisfazer os avós e demais antepassados.
Largar, largar de vez as amarras, as âncoras, e acordar num infinito de referências que não referenciem, num mar alto de nada, onde nem o sol nasça. Desejo de morte, aniquilamento? Talvez. Mas que assim seja e, ó corpo, não temas o inevitável, este te dará a justa  medida, a meta.
Deixa, deixa tudo e parte!
Que interessa os que lêem, os editores, as personagens pintadas nos jornais mais os olhares dos que vêem ou pensam ver?
Desfaço-me de encontro a mim mesmo e todavia sobrevivo. Para quê? Para to contar, e poderes reviver, ganhar a sensação de uma solidão a menos?
Deixa, deixa as ilusões!
Isto é nada, talvez possa ser tudo mas a tristeza é a companheira.





Sem dia nem mês
"Viver só... acompanhado".
Uma pessoa a nosso lado, que está lá quando queremos um beijo, sentir noutrem o orgasmo. Mas não actua. Um autómato substituí-la-ia.  Mas não o há e ela lá está. Só por isso?



Desinteresso-me da administração dos meus escritos, eu, que tenho sido o displicente secretário do "velho escritor"... A única vontade é mudar qualquer coisa ou fundir-me noutrém. Mas Júlia não mo permite. Sempre de fora, sempre a observar-se, e aos outros. Doente  do  distanciamento e do cálculo, Júlia nunca repousa e a vida é-lhe uma sucessão de batalhas. Morte aos poucos. Pouco interessante.
Ou seja, outra vez de mal com Júlia.





Aprendo mais com o inimigo.





Que ia acabar com este diário, que isto se estava a tornar-se ridículo e bastava de falar de mim. E afinal... E há a guerra no Golfo e coisas assim.
Idiota!
Perder-me na paz que me funda, que talvez seja apenas indiferença ou grande desinteresse pelo resto. Que tenho a ver com o preço da batatas frita?





Só me interessa a personagem em acção, como ela reage. Como é, não sei. Onde o momento parado para se extrair um "é"?





Que o mundo se lixe, quero fazer o que muito bem entendo, não ser senão amante, não sei bem de quê, embora assome a palavra literatura. Na verdade o que subsiste é uma fúria intempestiva e não há docência que a integre. Murros. Murros. E coices. E mandar o resto à fava, se é que não é demasiado perto. Gentilezas, doçuras, bombons bem enlatados, teorias assaz condimentadas não são comigo. Merda. À merda com tudo.




A dor pensada não se sente.





Sou vaidoso? Não. Quero apenas afirmar a minha existência. Para quê? Porque sinto essa necessidade e contrariá-la seria mais trabalhoso. Mas não sei o que faço. Ou só o sei numa medíocre medida humana.






Falo tanto da escrita que pareço inseguro sobre ela - diz Louise. E é verdade. Como se transportasse uma vela acesa no meio do vento. Apaga-se? Não se apaga? E os meus dias a dependerem da sua luz! Porque sem ela não me vejo.



Fúria de pôr a vida em acordo com o que dela quero. Não é possível nenhuma concessão e ir dar aulas para obter dinheiro já é uma e bem grande.  Nas aulas um aluno dizia para um colega mais inibido: "Não penses, faz!". A razão falava pela voz.



























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