sábado, 6 de novembro de 2010



Introdução
Aí pelos oito anos escrevia intermináveis diários. Mas a decisão de ser escritor sucedeu aos onze, por influência de um professor do liceu - Albano Arezes -  cujas aulas de português, para petizes de 10 e 11 anos, gostaria ainda hoje de reviver.
Com efeito A.A., sujeito, como qualquer cidadão residindo então em Portugal, à censura fascista, permitia-se, todavia, uma liberdade de linguagem acerca da realidade social portuguesa, que muito veio a contribuir para o meu despertar como jovem homem. “Sr. Melo – dizia (tratava-nos por “Senhores”) ao devolver-me a redação: “não basta escrever bem!”  
“Não basta escrever bem…” – quantas vezes não lhe ouvi eu isto, e quantas outras não matutei, na minha então pouca idade, no significado do que me quereria ele dizer: “Não basta escrever bem!”
Claro, não basta escrever bem! (E Barthes logo dirá que o estilo é o sangue.)
Não sabia eu, no entanto, que a questão de escrever ou não (bem) passaria um dia a constar das minhas dúvidas eternas, daquelas que, de tanto nos fustigarem, um dia resolvemos esquecer. Sim, hoje já não me pergunto se escrevo bem. Que hei-de fazer? Sim, ou não, a escrita… persiste!
Este diário, iniciado ingenuamente (todos os diários dignos desse nome, os que não nascem para serem vistos, nascem assim mesmo: “porque sim”) é pois a continuação, já em adulto – Ressurreição inicia-se em 1972, no próspero reino da Dinamarca - na altura o mais rico do mundo - comigo exilado, aos vinte e dois anos, em Copenhaga,  e há-de ir por ai diante até 2002, quando o dou por findo. Depois… Ora, que interessa a realidade?...
Sim, chamei-lhe “Ressurreição” porque escrevendo-o, tornei-me mais senhor de mim.
Oxalá à Leitora, ou ao Leitor, que tenham a curiosidade de espreitá-lo, suceda o mesmo: “ressuscitem”, e fiquem, igualmente, mais vivos. Que mais há-de querer quem já o é?
Boa leitura!

C G Melo

 




RESSURREIÇÃO


(Diário de 1972 a 2002)


Cuidei de mudar nomes e mesmo sexo de personagens
para nisto implicar sobretudo a minha pessoa.
O Autor







1972

Vinte e dois anos e derrotei tudo.
Dêem-me inimigos de valer a pena.




Copenhaga, 2 de Dezembro
Ana
A literatura desvia a palavra mas sem ela como encontrar a direcção?
O lar, a cumplicidade da companheira, o silêncio no entendimento, eis o que me aconchega, aqui, em Copenhaga. Mas nada disto tenho e apenas há a Cidade. E ainda este encher sílaba a sílaba de um vazio que não finda.
Beijo



Rui,
Não a ti mas a alguém que imagino (porquê o silêncio?)
Tarde na noite retomo o gosto das ruas desertas.
Beijo


Copenhaga, 18 de Dezembro
Que fazer numa noite dinamarquesa, quando a  alternativa é deixar a vida fluir, vendo onde vai?
Fora do que fui, só no equívoco me reconheço.
Sob o tiroteio das recordações espalho o mal da existir por malas e cais
Vida aos soluços.

Vinte e dois anos e derrotei tudo.
Dêem-me inimigos de valer a pena.
























































1973


Graças ao amor não morri.



Odense, 28 de Janeiro
Zangado.
Lá fora faz um belo dia, ou como assim lhe chamam, enquanto o meu aspecto afasta mesmo o mais amigo.
Mas, escrito isto, sentir-me-ei aliviado, sorridente, até, e comerei, inclusive, o arroz que há pouco pus ao lume. Como se fora um normal comedor de arroz…
Merda!


Sem dia marcado, em Janeiro
Amélia,
Pouco a pouco, tudo se torna insuportável.
Como dar vazão aos homens e mulheres que, sei lá por que carga dos diabos, me habitam, principalmente agora que o nojo ao consumo me retrai o desejo de escrever algo com princípio, meio e fim? E já contrariado te envio esta carta, à qual não te sintas obrigada a responder, mas já não me satisfaz, como até aqui, arrumá-las na gaveta onde, aliás, o espaço já escasseia.
Sentado à normal mesa do quarto onde, à noite, se cumpre a função sexual e, de dia, a digestiva, nem uma ou outra, ou os mil livros que devoro, mais as gentes a quem falo, preenchem esta minha fome de ser deus. 
Nenhuma expressão me traduz e todas expressam a incapacidade do dito.
Precisava de explodir como um vulcão que vomita sem pré-aviso.
Onde a gente que, no lugar da cabeça, tenha o infinito.
Onde? 
Oh, morrer sob um colossal meteorito!
Sopra-me!
Beijo





Odense, onze de Fevereiro
Amélia
Esta a não sei quantas carta que te redijo na vã tentativa de esvaziar a força que acumulo, e vomita infinitas vidas do fundo do mundo.
Que fazes?
Eu sou teia que guarda amantes perdidos, memórias de risos outrora gentis. Sentir, em cada fibra que me urde, o mais leve fremir da terra, o vai-vem erótico do mundo.
Tocha de conteúdos em busca de formas-primas, sou um feixe de sensações que o vento dispersa. 
A minha vida é energia rolando por uma ravina.
Porque não me páras?
Beijo

 

 

Sem dia nem mês marcado

A escrita liberta e escraviza.

Mesmo no plano clínico serei “normal”? Mas para que quero eu os médicos mais à sua "normalidade psíquica"?


Bolas!

Recuso a escrita da minha zanga para que não ma comprem.

Fazer humanidades para ser humano!
Merda!


E sempre a impressão de que faço espectáculo!



Não pensar demasiado. Terça-feira sei a resposta do Flugninhaelp acerca do trabalho. Interessa-me ir. Ver como é. Não deixar o quarto. E talvez já tenha direito ao passaporte. Começarei em Março? Sim, aguento aqui em Odense até ao final do mês e logo abalo. Não vejo necessidade de me inscrever numa “high-school”.
Karen…
Talvez case com Karen e me naturalize. Mal tenha o passaporte. 
O barco nunca afunda e é mesmo possível evitar as tempestades ainda que estas o fortaleçam.



Merda! Merda! Merda! Merda! Merda! Merda! Merda!



Vapôr no cais dos outros sempre a partir de mim mesmo.
Sentimento de queda, de ligação ao nada ou a ninguém. Não quero filhos, criar ligações com uma sociedade que já tanto me aborrece. 
Evitar o medo de perder as coisas. Coisas são coisas, embora a vida passe por elas.
A minha diferença em relação aos demais será sempre o desprendimento: ligar-se é uma perda. Sim, o cavalo só é cavalo enquanto selvagem. Depois é… meio de transporte.
A liberdade brota de uma longa paciência. Unir-se a alguém uma perda? Não, desde que o outro permaneça livre.
A perspectiva evita o pânico.



Não quero sorrir.


- As batatas queimaram – dizem-me.
Que bom! Talvez se comam excrementos!



Amélia,
bom-dia, após um passeio pelo bosque com o Sol na boca, e a mão na mão da companheira.
Escrevi-te uma carta no decurso de uma noite fria, uma tentativa de sorriso por cima de uma lâmina crua. Hoje releio-a e nada me diz. Como vais por Paris que não me atrai tanto que da cama salte para um seu aeroporto? Viajar não cabe mais no tempo de um dia e todos os ecrãs do mundo não albergam metade da minha ânsia de espectáculo.
Habituo-me a saber de ti de tempos em tempos e também eu só escrevo se a felicidade (felicidade?) me afoga ou a depressão inunda. E ambas me esgotam. De ti, lembro-me quando a vida sufoca e o teu corpo perdoa a minha estreiteza. Ou quando a ferida do Sol queima.
Hoje, mais um domingo nesta pequena cidade de Odense, convencida que a habito a cada dia que nela acordo. Na realidade, nem mesmo o mundo nos conta por seus habitantes.
Aqui, a casa de uma amada minha, mar onde mergulho a minha sede de contornos por noites de exaltada frieza
Ao amor devo as sete vidas e graças a ele, e não a Deus, sobrevivi.
Beijo



Vivo num bairro onde nada falta e tudo se mede a compasso: uma zona em macadame para andar, outra de relva só para ver, uma terceira, e igualmente verde, para correr e, delimitado como o mais, um parque infantil, onde não há risco nem aventura. Mas o melhor, aliás, o indicado ou subrepticiamente aconselhado, será não pensar, deixando o tempo escorrer: a areia faz parte do relógio e de nada vale limpá-lo. E amanhã, que será outro dia, voltarei a cozer arroz neste fogão que ora uso, nesta casa que ora habito, neste Estado que ora me possui.
Merda!
Mas que outra coisa direi sem me abrir em sorrisos e democracias?
 
Farto de palavras e, no entanto, como ser doutro modo?
Sim, dormir com quem quero atingir.




















1974

Gritos, blasfémias, avantesmas, hemisférios e ciclones.
O meu país é isto e o mais que além se desvenda.
A queda brutal de um teorema.



 

Paris, 14 de Abril

Rui,
Enquanto neste quarto de uma cidade universitária estudo coisas que não me interessam (impossível ser fora da idealidade?) vejo-me esfera no mundo, vertigem de acontecimento único. Quanto mais reflicto, maior me é o sentimento de que me pariu uma raiva que não domino.
Onde vou? Onde vamos?
Deixei os catecismos, a solidão cresceu como um arranha-céus e a certeza tornou-se uma caravela que talvez abarque à Índia.
Ontem escravo, hoje cavaleiro, resta a eterna mudança.
Cresci, não entro já nas portas e, mesmo cortado em postas, só me alcanço mais inteiro. Assim somos, músicos desta cantata em tiroteio.
(Também vejo armadas em manadas de carneiros)
Beijo
 


Paris, 30 de Março
A consciência de que tudo não passa de paliativos.
Apenas a morte é séria.
 
 
 
 
 Lisboa, sem dia marcado, em Junho
Gritos, blasfémias, avantesmas, hemisférios e ciclones.
O meu país é isto e o mais que além se desvenda.
A queda brutal de um teorema.

Paris, Setembro
Na cidade universitária, o recepcionista da Casa Alemã, onde tinha quarto reservado para este novo ano lectivo, demorou mais a atender-me e eu vim embora, deixando Paris VII e a frequência de "Science des Textes et Documents".
A razão das coisas…



Amsterdam, sem data
Yves quer que o acompanhe ao festival de Beirute. Mas regresso a Portugal. Farto de ser estrangeiro.



Lisboa, 15 de Novembro
Hoje vou à festa dos meus anos, dos meus anos, a festa onde vou e ninguém mais, salvo eu, lá vai, à festa onde vou, a dos anos, os meus.
Hoje vou à festa dos meus anos, os anos que faço eu, rodando nos anos em que me vou, descendo ruas de meses e escadarias de dias, rolando até onde não sei.
Hoje vou à festa dos meus anos, sei lá quem os tem, aos anos que já foram meus, talvez vão na rua a esta hora de braço dado com outro que, porventura, faça anos como eu.



Sem dia nem mês marcados
The problem it’s to discover in you who realy you are.
Here I’m writing in english:  maybe my thought will be different now.


Fazer cada coisa como derradeira, a única possível ainda no mundo.
Levar ás ultimas consequências cada decisão.
Esgotar as sensações inerentes a cada acto.
Toda a vida desejado, nunca por menos.



A morte é a nossa maior inimiga.
Vencendo-lhe o medo, aceitando-a, não como superior mas como igual e naturalmente existente, ganhamos o domínio da vida, o prazer do sentimento, o gozo do ser.
A eternidade, aqui e agora.
Nada fazer sem intenção.
Pode acontecer que a teoria não acompanhe a praxis. Então mantenha-se a confiança que nos atribui o que já fizemos, deixando o passado acumular-se.
O rompimento com o mecânico começa no pôr em causa qualquer reacção espontânea.


A impotência das meias tintas sufoca-me a glândula da espontaneidade. No fundo a culpa é minha: rebento pelas costuras e juro que não faço literatura.


Para escrever sobre droga decidi experimentá-la. Agora não consigo descrever um “flash”. Porque é vida pura?
































  
1975


À loucura colectiva chamam normalidade





Carcavelos, Julho/Agosto
Dia 00
Acordo sob forte luz e penso que adormeci com ela acesa. Afinal o Sol inunda o quarto.
Vontade de mijar mas, na cave que com mais sete ou oito ocupei - o nosso número varia ao sabor das circunstâncias - não há WC.
Saio.
A casa de banho do café mais próximo não presta mas, cansado e enfastiado, sirvo-me dela.
Já comigo sentado a uma mesa, aparece o Santo.
Partida direcção ao Sul.

Dia 01
No comboio não se paga, pois há boicote ao aumento dos bilhetes.
Viajo e não dou por nada porque a carruagem e eu tornamo-nos um. Mas as pessoas dividem a atenção entre o desenho com que me entretenho e as nossas figuras, os nossos vestires.
Alcântara.
Buscamos o acesso à ponte e logo seguimos na boleia de um casalinho surpresa pela nossa hora de partida.(Provavelmente ficaremos pelo caminho mas é o que queremos)
Setúbal.
Numa taberna um fulano chama-nos "turistas", quer que lhe paguemos uma bebida, diz-se ajudante de padeiro, gosta “de toda a gente” e insiste em levar-nos a Montemor. Temos trabalho em recusar, o taberneiro não tem pão, e o da padaria, talvez porque não o acompanhemos, já diz que somos do ELP. Por fim, livres do indivíduo, pedimos de novo boleia: duas horas em vão.
O sol declina e, esquecidos já do Sul, admiramo-lo.
De uma barraca numas obras sai música negra e, a conta-gotas, gente. Trabalhadores. Olham-nos desconfiados. Mas o som agrada-nos, os corpos movimentam-se e já os homens nos lançam um olhar menos agressivo. Finalmente o Sol esfuma-se e damo-nos conta de que não conseguimos boleia.
Regresso a Setúbal, ao centro da cidade.
Pelo caminho cravamos dois ou três burgueses a cinco coroas cada e abancamos numa esplanada, na cata de gente. À falta de melhor dormiremos ao relento, o que não nos preocupa e até gostamos. A noite não está fria e – dizem -  há uns campos jeitosos em redor.
Surge o Chico que, depois de dar um berro de satisfação por nos redescobrir, conta as últimas novidades: este, aquele mais aqueloutro foram embora, uns tantos meteram-se no chuto e a erva abunda mas não é grande coisa. Quanto a ele próprio nada traz consigo mas tem uma contra-fé para ir à "judite", pois a polícia quer saber das actividades de uma certa juventude setubalense. O Chico deixa-nos à porta do café mais mafioso, o Pental, mas é o dia de fecho e abancamos numa esplanada próxima, boa para travar conhecimentos.
Um grupo mal encarado discute notas de exame e métodos didácticos, três fulanos observam-nos, em silêncio, e uma mulher, sozinha numa mesa, olha-nos de esguelha. Talvez deseje meter conversa. No entretanto faço da mesa tambor - o café no entretanto  fechou – e, mercê do meu solo, há gente que pára e se junta.
Surge o Filipe e um amigo: seguem para Torremolinos dentro de duas semanas.
"Aqui não se passeia numa rua sem que se saiba na outra" - Lamentam.
Não há droga e os esquemas andam maus. Levam-nos a outro café, na mira de encontrarmos mais gente mas ninguém aparece e, finalmente, indicam-nos os lados do Bonfim para estendermos os sacos-camas.
Filipe e o amigo habitam com as respectivas famílias.

Dia 02 - Setúbal parece menos longa de atravessar que de véspera e, pedindo sempre dinheiro, reunimos sete escudos. A contribuição não é de monta para os duzentos kilómetros até ao Algarve, onde exporemos os artesanatos do Santo e os meus desenhos. (Acreditamos denotadamente vender, quer uns, quer  outros). Mas calmos e depreendidos (incluindo dos automóveis que passam e não nos dão boleia) entramos, finalmente, numa coisa de quatro rodas que nos coloca vinte kilómetros adiante. No entretanto fala-se da região, da fuga dos capitalistas, do desemprego, de mais uma fábrica em auto-gestão.
Levado talvez pelo hábito do medo, o condutor saúda os militares que nos cruzam num jeep do exército, contente por mostrar que as suas críticas não significam má vontade contra o 25 de Abril. Indiferente, importa-me sobretudo que o homem nos deixe, já sob Sol alentejano, numa estrada catita, no meio de um campo cheio de pequenas flores abarrotadas de amarelo.
Não apetece pedir mais transporte e dormimos.

Instantâneos do percurso:
- Uma roda de mulheres falando doutra ausente.
- Vulto negro em terra parda.
- Tortel: tudo pequenino, casas de um andar, senhores de barriga ao alto.
- Eu, vestindo um carro ridículo e apertado.
- Camionista de cara cheia, lobrigando por lentes polaroid um século vinte a que chegou atrasado.
- Portal: a mesma parvoíce de anos atrás mas com muros sarapintados.
- Um caixeiro cheio de viagens.
- Cagando ao relento: Terra, recebe a minha merda que um dia receberás o meu corpo!
- Uma camioneta. Atrás? À frente? Metemo-nos adiante. O Sr. José no lugar oposto ao motorista. Qualquer coisa estranha, uns gramas de mistério, os suficientes para o meu faro. Toda a viagem se passa entre o calor dos corpos, o vai-vem, ora de uns, ora doutros, por fim o destino e o fim da conversa.
Que não foi o mais importante.

Dia 03 - Nem um carro! Mas a vontade de pedir boleia também é nula.
Sobe-se a estrada, direitos a uma tasca "mesmo perto, ai junto à curva" mas ela não aparece e só vemos caminho e montes de ambos os lados.
Cruzamos três homens que acompanham a pé um outro numa bicicleta e lançamos:
- É verdade que há uma tasca por aqui?
Afinal dizem-nos que já a passámos, que a porta talvez estivesse fechada e não teríamos reparado.
- Era necessário bater! – Explicam. - Mas aí à frente – E um deles aponta o sentido em que seguimos - Há outra, "Uns onze kilómetros adiante"

 

Lisboa, sem dia marcado

Miséria.

Não tenho um vintém.
Os valores que possuo (uma máquina de escrever e um leitor de cassettes) empenhados. Frio no quarto alugado por uma amiga.
Doem as costas, os dentes, um ouvido. Constipado.
Os editores recusam-me.
Adenda: sinto-me bem.

A filosofia é um desenvolvimento linguístico tendo como partida o pronome pessoal da primeira pessoa.

Absolutamente nada a acrescentar ao vazio de ontem, ao inexistente hoje.
Escrever, esquecendo o escrito, eis a luta de quem escreve, pinta ou caga livremente, depois que o acusam de "artista".
Escrever, esquecendo que se será lido, servindo-se da vida como pena… A tinta no papel como se a injectara na veia.

O Artista quando fala de si, fala da humanidade.
De repouso, saindo da necessidade de me injectar. E vim aqui parar porque lá atrás quis escrever sobre droga…
Cada qual sabe dos túneis em que se mete. Regresso à luz? A certeza de que a cura não é fácil e exige vontade, paciência, etc. E finalmente compreendo porque alguns não voltam, ficando até à morte na necessidade de uma dose cada vez mais forte.
Enfim, parti numa ideia minha e não atribuo responsabilidades a ninguém.
Que me aproveite.
P. Scritpum: medo de me deitar. Mas devo fazê-lo, encontrar-me comigo, sem o alívio – ou intermediário – do papel e da caneta, da – chamemos-lhe então – Arte.


Desintoxicação
Dia I
Vontade de dormir mas o sono...
Olho as mudanças que fiz no quarto, agora pintado de branco e quase vazio a lembrar a cela de um monge (…)
Seis horas, a manhã nasce - ladram os cães, há pouco calaram-se os galos - e chega ao fim este primeiro dia da cura. Desde que me encerrei ainda não dormi.
Evito os soporíferos, pois sair de um vício para entrar noutro...
Reencontrar o meu eu mais antigo, antes da queda na toxicomania, quando frequentava a pequena biblioteca do Largo de São Lázaro, antes mesmo do exílio.
E levava livros para casa... E lia... lia...

P. Scriptum: Os outros consideram-me “doido” embora diferentemente do que disso pensam as gentes da rua. Estas há muito teriam chamado o psiquiatra e, além de inestético, seria pura perda de tempo: não há nele cura para mim. Se é lícito que desconfiem de nós, importa que a dúvida não nos contagie, tornando-nos cúmplices da loucura.
Louco é o indivíduo que perante si próprio já não se sabe explicar, compreender o que faz.
À loucura colectiva chamam normalidade.
(…) escrita, comunicação com o Outro, com o que de mais profundo me há, aquilo a que talvez a humanidade chame Deus.

Para deixar o vício devo reencontrar o meu eu menos temporal, expresso ao longo da minha vida pela austeridade, disciplina e rigor. Qualidades que preciso para regressar não sei onde, pois não me submeto a isto para repetir o que já fui mas para abandonar o que por ora não desejo: as drogas duras.
Qual a porta, a rua por onde enverederei, ignoro. Essa a aventura. A minha aposta?
O que será, será.

Dia II
Dostoievski.
O ambiente pobre e apodrecido dos bairros de Petersburgo condiz, por contraste, com a severidade que me rodeia.
Calmo, depois de tomar um café. O organismo precisa de cafeína, algo que o excite. Já ontem, com outra bica, senti-me melhor.

Só a necessidade nos empenha totalmente no que devemos querer.

(…)

Não voltarei tão cedo à Brasileira do Chiado. Desintoxicar o corpo não é fácil e tenho passado momentos difíceis devido à falta de droga. Mas persigo a cura. Pelo menos, ultrapassou-se a fase em que era penoso ouvir a música ao som da qual chutava. O passeio pelo mosteiro e parte velha de Odivelas fez-me bem. Como se fora o reencontro com alguém desde há muito esquecido. Mas será possível retomar o passado? Ou não resta senão testemunhar a diferença?



Dia III
Para comemorar a libertação do preludim comprei nova seringa. Mais pequena, maneja-se melhor e o êmbolo escorrega facilmente.
Fiz um chuto de analgésicos e o resultado foi um sono de quatro horas. E como ultrapassei a carência física modifiquei de novo o quarto, introduzindo-lhe alguma cor.
Tomei LSD.


Dia?
Se deixei de me injectar não deixei, todavia, de me picar.
Mas se, na primeira noite, após a compra da nova seringa, me limitei a enfiar e tirar a agulha repetidas vezes, “em busca” da veia, num prazer todo erótico de me sentir, na segunda madrugada já injectei mesmo soporíferos, sem grande resultado, aliás, pois passaram cerca de duas horas – li sobre Klee, fiz chá e um poema a Irene (antes ou depois do chuto?) – e, afinal, ainda aqui vou, escrevendo isto…
Dizia o quê…?
Amanhece e gostaria de terminar a noite com uma frase do género “O canto do galo suspende a natureza..." mas nada disto se anuncia.
Dormir, a ver se me liberto desta obsessão de ver o sangue subir pela seringa dentro, misturando-se, primeiro denso e, depois, já fluído, na droga a injectar, sinal de que a agulha acertou na veia e o embolo pode finalmente descer ao fundo do poço onde, do elixir, só já sinto a alegria…
Depois desta descrição que me levou quase "flaxar" ainda acham que me curo?
Outra prova!
Em todo o caso lá para o dia oito picar-me-ei com “prelo” – decidi-o há pouco, a propósito de não sei o quê.
Continuo a leitura de Dostoievski.
Des-morte.



O meu mundo não existe e resta-me o dos outros quando o vazio por demais me assusta.
Actor de comédias de bons sentimentos e fins felizes, seria um pai de família extremoso se não esquecera o papel ou a interpretação não apodrecesse.



Dispersão.
Desejo de coisas diferentes, de fuga, de me esquivar. Mas, mais real que nunca, a impossibilidade doutra saída que não seja a morte. E das duas alternativas - matar-me ou assumir Isto - qual a pior?