sexta-feira, 5 de novembro de 2010



1982


Mais! Mais! Mais!





7 de Janeiro
Trabalhar chateia menos que "fare niente". Vem isto a propósito de há duas horas estar apenas vivo e olhar em volta.
Em mudança mas as coisas ainda não se definiram. As últimas mortes (pai, cunhada e um tio que quase) tornaram-me mais desprendido. E cioso de dizer o que quero: o tempo urge.
Não tenho amigos. Não sou do género de fazê-los e não o lamento. Relações de colegas, sim. Sofia é uma excepção e Irene também. Dar-me-ei melhor com as mulheres? Os homens são grotescos: estão sempre a "armar" e não se entregam. A mulher é subtil.
Passo o tempo à máquina ou no grupo de teatro.
A noite, essa, passou ao lado do sono.
Seis da manhã.
Escrevi a Irene e à tia Max. A única pessoa na família de quem verdadeiramente gosto. Enfim, gostarei de alguém? Não preferi a vida?




21 de Janeiro
Findou a casa (ocupada na febre de Abril). Mudei-me para uma tenda em Monsanto e creio não ser o único a recorrer ao método. Num programa televisivo um actor, conhecido por ganhar um balúrdio, repete: "É a crise!"
Oito anos depois da revolução tornou-se evidente que o grosso dos trabalhadores, a troco de umas tantas liberdades, não alcançou a liberdade. Poder e liberdade conjugam-se. A última sem o primeiro não passa de - como chamar-lhe? - "ilusões do proletariado"? Vivo numa barraca, não sou masoquista e a história que me julgue, pois outro juiz não tolero.
Viva a revolução permanente!
Por um mundo solidário onde a tempestade e a bonança a todos unam.
Mil vezes a minha borrasca à ignomínia dos palácios rubros de sangue por Isto ser assim!
Porque dar vivas à esperança se o sonho é impossível?



30 de Janeiro
Quando tomei os dez primeiros e vi que o sono não chegava fui aumentando a dose. Aí, pôs-se a questão se não seriam "demais". Tomei então consciência de que a "mais" ou "menos" era indiferente e fui aumentando a quantidade.
Dormi desmesuradamente mas… acordei!


13 de Fevereiro
Pela primeira vez, desde que abandonei a droga dura, penso que agi mal ao fazê-lo. Naturalmente já estaria morto mas que fiz no entretanto senão perder o interesse por Isto? Ou seja: morro da morte mais dolorosa - a lenta - porque em tristeza.
A razão porque escassos regressam do "inferno da droga" é apenas uma: isto é pior. Nesta perspectiva os que trabalham nos centros de recuperação são sádicos diplomados.


Sem dia marcado em Fevereiro
As pessoas ligam, desligam, sofrem, des-sofrem e morrem.
Vontade de me envolverem, de me enlearem. Mas sou cada vez mais solto.

O vulgo vive brincando. Infelizmente tem de trabalhar.



9 de Março
Estreia do meu texto “Título” no "Sorriso", ao Bairro Alto.
O enjoo cresce à medida que faço parte disto. Nas ruas, no metro, olho os meus semelhantes como cão em busca de amigo. Não. Não é isso. Não ando em busca de ninguém. Antes andasse. Olho-os apenas, tentando ver o seu além, para lá das suas máscaras mais ou menos empoadas. E dá vontade de lhes dizer: deixe lá que isso passa!



24 de Abril
Tristeza? E no entanto no meu fundo corre, como água subterrânea, uma implacável vontade de vida, uma força tremenda, um contentamento esfuziante que despedaça quanto se lhe oponha.

´
Ser artista é um árduo trabalho que vai do trivial ao épico.

28 de Abril
Tomei quarenta comprimidos para dormir e nas tintas para o resultado. Este lado ou o outro são duas faces do Mesmo.
Até amanhã?
Merda.

Sem dia marcado em Abril
Agradável o banho de chuva sobre a tenda. Preparo-me para adormecer rapidamente. Curioso de ver como acordo. Isto meterá água?

Quando não for capaz de fabricar o meu próprio poder, então aceito cargos.


Ser é escolher. Escolher é decidir. Decidir é fazer. Fazer é ser.
Quero ser.

Sexualmente o cristianismo é um retrocesso em relação à antiguidade grega.

Posso então medir quão longe fui do padrão em que nasci.
Vi e provei a miséria dos que há séculos são explorados, humilhados, ridicularizados na sua condição humana.
Esta estrutura é abjecta.


Quando tomei os dez primeiros e vi que o sono não chegava fui aumentando a dose. Aí, pôs-se a questão se não seriam "demais". Tomei então consciência de que a "mais" ou "menos" era indiferente e fui aumentando a quantidade.


Sem dia marcado em Junho
Tudo se passa numa órbita que me ultrapassa, a dose de tranquilizantes sobe a ritmo desenfreado e o cansaço não desiste!
Uma pausa, uma verdadeira pausa!
O tempo impede-me de ir dormir à tenda - lá onde  adormeço ignorado sob o faro das estrelas - e tenho de ficar em casa da mãe.
O próprio mexer dói tanto como o pensar.
Sinto e todavia não expludo.
Até quando?


As pessoas desvirtuam as coisas porque não acreditam no movimento pelo movimento. 
Fome de absoluto.
Deixem-me só!


16 de Julho
Estoirado e, no entanto os limites não existem para o sonho. E nem sei da carta que te escrevi anterior a esta...
Receio que não encontremos forma de nos vermos mais amiúde. Receio o quê? Ao fim e ao cabo saber que existes chega. Mas doutras vezes o espaço é tão infinito e as nuvens tantas...
A velocidade da vida é tal que chego à cama e não paro: um pensamento, outro pensamento e acabo por acender o candeeiro buscando o papel: consumo-me em histórias. O único e real desejo é que chegue o fim e que, de mim, fique apenas a literatura.
Mas não me queres conhecer?



Sem dia marcado em Julho
Se tivesse que fazer "férias" talvez preferisse morrer. Como parar o pensamento, o prazer de olhar, elaborar, sintetizar, enfim, qual o gozo pela morte do computador?
O descanso é preciso mas deve ocorrer diariamente, com naturalidade, em vez da obrigação imposta pela acumulação de um cansaço anual.
O prazer não tem férias.
O prazer necessita de uma pausa e ela sucede quando o jogo acaba.
A irracionalidade desta estrutura demonstra-se pela análise das suas "férias".



13 de Agosto
Nostalgia de fim-de-tarde.
O desaparecer do Sol e a vida a esvair-se entre tábuas de comer, coitos que jamais atingem a morte total, sempre em busca de mais.
Contemporâneo da ausência.



Sem dia marcado, em Agosto
Outra edição de "Cantares". [nota do autor: Cantares foi um caderno com curtos poemas lirícos que editei por conta própria e vendi mão a mão]
Dir-se-ia tudo bem e no entanto...
Talvez já não acredite no meu destino literário.
Não há arte acessível ou hermética. Há apenas qualidade.



Nunca sentira isto. Deve ser a engrenagem. Acorda-se e vai-se a correr para o teatro. Termina-se e regressa-se (por hábito?) a casa, com desejo de dormir, um desejo enorme de fuga pelo sonho.
Que vida!
A escrita foge-me dos dedos. "Caldas" segue lentamente, enfim, vai indo.
A minha vida está muito certinha.
A anarquia é a forma mais salutar de existência. A mais vivificante.



Disposição química agradável: com o hábito de trabalhar até tarde, mas querendo acordar amanhã cedo, tomei um suporífero. E no entanto apetece estar desperto, gritar mesmo esta emoção toda original  de ser a primeira vez que vivo e ir no meu trigésimo primeiro ano.
Que maçada a ameaça de desaparecermos nuclearmente!




Perda.
Quando vou para escrever não consigo abstrair de que alguém há-de ler.
Angústia.
Dou voltas sobre voltas, como e embebedo-me de comida - com a noção de que não é comer o que apetece mas sim escrita - e, quando não posso mais, agarro finalmente a caneta e ao diabo com tudo que o que preciso é de escrever. 
Que se lixe!
E choro, choro a impotência de não me calar e que me faz sofrer, esta cada vez maior necessidade de escrever, muito mais que dos outros, os outros, oh os outros... E surgem o abismo, a ratoeira: "pois que serei lido vou dizer algo..." quando não há nada, mas mesmo nada, absolutamente nada, a dizer, ensinar ou mesmo transmitir, a não ser esta fúria doida de me imprimir em forma, de ver o pensamento reflectido como num espelho.
No fundo nem mesmo apetece escrever mas tenho de evitar o estoiro.
Questão de sobrevivência.



12 de Setembro
Enjoo!
Levamos uma parte da vida a humanizarmo-nos, depois, por inerência, colocamos a humanidade num altar e, por fim, matamo-la.
Em nós e nos outros.



30 de Setembro
A questão não é sentir-se bem com Deus mas consigo, estar à vontade na sua pele. E tal só se é possível na autenticidade, ou seja, correndo integralmente o risco que cada instante implica.



Sem dia marcado em Setembro
Impossível viver assim. "Caldas" não avança, sinto-a bloqueada e cada dia detesto mais a actuação.
A quem pertence este diário? A alguém ferido de dois tiros: um obriga-o, para ganhar a vida, a ser actor, e o outro, para que a não perca, a escrevê-la.



Desejo de nada, ausência, completo alheamento. Ou entrar numa loja e comprar tudo para esquecer a tristeza de ser gente, apenas gente, irremediavelmente gente.



Doce repouso em mim mesmo, nenhum medo de ficar só. E tudo experimentado aqui, nesta sala pelintra e fria de um cinema de terceira. A consciência da não pertença ao consumo, de ser apenas turista, uma criatura de passagem pelo mundo que diz à saída:
- Não gostei do que vi. Podem ficar com tudo. Ah, sim, levo algumas flores!



As palavras brotam exactas e pérfidas de sentidos, riscando as fibras outrora distendidas ao Sol, hoje em gelo doendo.



12 de Outubro
Empenhei a máquina de escrever para pagar a terceira edição de “Cantares”, também porque decidi não escrever durante um ano, a fim de me consagrar em exclusivo ao teatro. Mas já sobrevivo com mais dificuldade, talvez por não me interessar o papel que desempenho no palco. Isto é, parar de escrever torna-se custoso e esvaio-me já em depressão e desejo de morte. Preciso de explodir. A maquineta das letras faz afinal parte do meu bem-estar, e devo ir buscá-la, dando já graças pelo papel que me coube na peça, pois a sua insignificância permite-me dar primazia à escrita.


Pscritum: A disposição era de tal ordem que entrei num bar e bebi uns tantos copos, lembrando Saroyan que dizia não haver hipótese de diversão quando a chatice ataca. Depois, fui à casa de banho, deitei as mãos á boca e vomitei. Tudo muito discreto como discreto é este fogo bravio que me rói e desgasta.
Mais! Mais! Mais!
Morte, vem!




30 de Outubro
Farto.
Penso seriamente nas razõe que me levam a acumular duração. Nenhuma válida.



Sem dia marcado, em Outubro
Os dias esvaem-se entre o Teatro, um ou outro encontro, a ida quotidiana à piscina e o sentimento de que algo foge, desaparece, flui, embora não saiba o quê.



Dez de Novembro
Devo continuar no teatro mais uns meses. Mas tenho que arranjar força para abandoná-lo e não só: preciso imenso de um espaço próprio. Amanhã tenciono pedir uma tenda emprestada e instalar-me de novo no parque de campismo. Coroada de glória a minha intenção de conhecer o lado contrário ao da minha nascença: não sou pobre, sou muito pobre. Porém no meio de tanta miséria (a esta hora há gente que dorme embrulhada em papel) reconheço que ainda poderia ir mais longe. Quero? Não. Abaixo de um determinado nível a expressividade torna-se impossível. É só pesar.
Compreendo que os mais avisados nunca venham a cair nisto. É preciso uma força fanática para abandonar tudo e seguir a Cristo.
Passa-se o mesmo com a Arte.



Consumo. Consumo. Consumo.
Tudo incentiva ao consumo e à acumulação para mais consumo ainda.
Consumo. Consumo. Consumo.
Lavagem ao cérebro com néon, anúncios, obras exibidas como Arte mas que não passam ainda de apelos ao consumo - de nós próprios, principalmente  - convite ao suicídio na abundância.
Indiferença: obra de génio e construção de uma vida.



Saio.
Compro o diário e constato que nem mesmo tenho dinheiro para alugar uma tenda. Há, pois, que ficar mais tempo em casa da mãe. Sinto-me perdido e não vou para o quarto. A fúria de escrever passou. Prolongo a estadia no café. Prolongo-a ainda mais. Não gosto disto. Ainda que me suicide, integraram-me. Integraram-me? Esta estrutura é viscosa: agarra-se-nos. De que sou ainda capaz? "Pereira do Campo" está por terminar. Em “Caldas" devo abrir a segunda parte, e a primeira - duzentas e poucas páginas -  desapareceu na mala que me precedia na viagem para Paris (que afinal não fiz) e que nunca mais apareceu! E o pior é que sinto apenas em meia medida! O teatro faz-me mal? Há que deixá-lo. Dou por findo o meu processo de saída da droga: quatro anos de reabilitação... só! Tenho a obrigação do cansaço. Houve que cortar com pessoas muito próximas e não foram apenas duas ou três. Enfim, todo o grupo com que me drogava e junto do qual sentia a cumplicidade da vida ou, sobretudo, da morte. Sofreu-se do sentimento de traição e de isolamento. E agora? Trabalhar? Em quê? Não sinto propensão para cumprir um horário de todos-os-dias. Ninguém sente? E depois? As plantas deste café, de tão certinhas, parecem plásticas. E tornam-se agressivas. Sou lúcido. O meu problema é que não consigo integrar-me. Enfim, trabalho num grupo de teatro e etc. Porquê esta permanente insatisfação?


26 de Novembro
Hoje gostei de actuar. Em dado momento vi-me de fora, actuando mas, ao mesmo tempo, sem nenhum domínio, o texto saindo como se uma corrente extravasando-me e sem que a pudesse conter. E uma segurança que se traduzia em serenidade e me levava a não interferir, a deixar que o corpo actuasse, qual rio nascendo saboroso do mais fundo de mim e limpando-me em Arte.



Sem dia marcado em Novembro
Já me meti de tal modo no Teatro que o que escreva não tem a força que teria se estivesse apenas na literatura.




Os telefones não funcionam, a mão recusa-se à escrita (a velocidade do pensamento inibe-a) a chuva cai, ou deixa de cair, e eu janto, apressadamente, depois de uma série de cafés: isto é vida?
A escrita era-me uma referência. Agora possuo trabalhos iniciados e não concluídos, olho-os e não sei o que sucede, causam-me náusea, dizem que um escritor que começa cedo, pelos trinta está acabado: será isso? Ou é o Teatro que me esgota?
Falta de espaço, de solidão, desta rua Augusta barulhenta, das Tvs em funcionamento, a rádio que  nem sei se cale, os óculos que não lembro onde deixei, a ausência, a ausência...
Expiro como se fosse a última baforada mas continuo vivo e amanhã há dois almoços combinados e mais isto e aquilo, uma imagem que os outros nos constroem (eu porém não me visto) mais um festival em Espanha, cuja estadia, de tão rápida, quase nem lembro: isto é vida?
Ainda reconheço a máquina onde escrevo, uma saudade (doentia?) das coisa antigas, um campo verde a perder no além, vacas, sim, vacas em cujo dorso se possa adoçar a mão, e não hamburgers, nem tão pouco a macrobiótica mascarada de opção quando afinal é o dinheiro que falta.
Magoo-me nos olhares cegos (apetece trazer ao peito o distintivo "Atenção! Vivo!") nos calmantes para adormecer, nos aspirinas para acordar, a boca rompe-se em vómito, vontade de me perder a ver se  me encontro: quantos rótulos como piranhas?
E visito este e mais aquele, num escancarar de pano roto, sei-os idênticos e todavia diferentes, a esperança de um colossal berro, ainda que rouco.
Hoje um puto drogado oscilava junto à linha do metro e ninguém se mexia, ninguém reunia três sílabas "atenção!" e ele lá ia, cai não cai, logo se vê, ao menos alguma coisa acontece!
Odeio-vos.
Odeio estes seres-coisas-vermes pela indiferença face á vida que não sei onde pensam vivê-la. Num apartamento camuflado de moderno onde tudo desabe, desde que não lhes queime as orelhas?
Com todo o meu corpo odeio-vos e à vossa ciência, à vossa nova genética, e ao "rider's digest".
E tu, rapariga, não definhes atrás do balcão, mas cuida que te não dêem por louca, olha que cada vez há mais coletes de força.
Viver clandestino dói mas que fazer se estamos em minoria?
Vem ó terra, oh humús, que ainda não vos perdi o cheiro, sentido que só as crianças já têm, antes da entrada no Programa, saindo adultas, cultas, prostitutas.
Hoje é uma noite difícil, eu sei, mas não me ofereçam queques embrulhados em fitas cor-de-rosa, por favor não me comprem a revolta, não adociquem o meu ódio que sou frágil como a mais pura matéria, coisa verdadeiramente etérea.
Porque teimam em conspurcar o deus?! [Nota para editor: "deus" com minúscula]
Vocês precisam dele!




Sem dia marcado, em Dezembro
Intelectual porque assumo que a realidade não é o que vejo mas a que elaboro.



Não consigo escrever, eu, o vocacionado para a escrita, o que entregou a vida a isto, eu, o escritor por excelência, eu, o excelente! Só que não consigo escrever! Até há pouco a coisa ainda era fácil: meia dúzia de personagens, a intriga e zás! Mas agora... Acordo na noite, sento-me na cama, puxo da caneta, do papel, arranho duas linhas e... sai nada.



Sem dia nem mês
O tinteiro na mão
A pena na outra:
a noite floresce.



"Em férias".
Há muito não via este lado d'Isto.
Bebe-se, reactiva-se o gosto pela música (evitava-a por me evocar as vezes em que, ouvindo-a, me chutava) enfim, estou "integrado profissionalmente" através de um trabalho em equipa: o grupo de teatro.


Para quê a noção de pecado a travar-me os apetites? Agora já só sinto arrependimento.


Quando a potencialidade perigosa do génio se revela, surge o psi.


As voltas que dei à vida por causa da escrita! Por ela entrei na droga, por ela saí, deixei pessoas, amores, heranças…


Náusea e desejo de escrita. Mas nada sai. Ou apenas ausência e nem suficientemente forte para explodir em expressão.


O totalitarismo isola o indivíduo, torna-o aparato social numa sociedade onde todos são inimigos da sua própria espécie. E reinam a desconfiança e a insegurança, devendo cada qual sobreviver à custa da denúncia do Outro.
No limite, a resistência exerce-se pela subtração social do próprio corpo.
Claro, o totalitarismo proíbe o suicídio.




No Teatro a margem do desconhecido fica entre a marcação que se aprende e a anarquia. Ser livre cumprindo regras é a arte do actor e, provavelmente, o desafio de qualquer acto artístico. Daí que a ingenuidade em arte, a ignorância das suas leis, a diminua. Quanto à arte das vanguardas ela passa, ou despercebida ou causa escândalo porque as suas regras, ainda alheias ao domínio público, fazem parte exclusiva da experiência de uns poucos que, frequentemente, nem sabem que as sabem, tendo que esperar pela sua "descoberta" para lhe perceberem a dimensão.
Outrora revolta, logo moda....



Qualquer coisa me escapa. Estarei menos lúcido? Não me parece, apesar desta dor na têmpora esquerda mais a nevralgia na boca, ontem pensei que morria, desinteria e suor toda a noite.
Com o nascer do dia passou.
Mas esta tensão tem de sair, devo calcar a tormenta que me incha, torná-la nada. E o espaço? Espaço não há. Ou há, quando o nevoeiro cai e apaga as fronteiras.



Homenagem á vida: numa pastelaria, escolho o bolo, como-o pela rua, sujando os dedos, limpando-os aos lábios, que bom não ser rei! Durante tempos esquecido, reergo-me e grito: eis-me, o deus todo palavra! 
Gostaria de viver sozinho mas transporto comigo um mundo de fantasmas encarnados em pessoas: Amy, Geny, Vitor, Larry, Curry e tantos outros quantos os dos meus personagens. Larry prostitui-se sempre na mesma esquina; Al é meu irmão de opção mas, ao contrário dele eu resisti, tenho uma curiosidade tremenda que me faz aguentar o efeito desta demência racionalizada. Até quando?
Sono.
Tomei uma quantidade de já não sei de quê (sei, mas que importa?) e entretanto aguardo uma hipotética Teresa, feita de muitas outras como Larry que, no cais, a esta mesma hora, ouve um homem dizer-lhe "vá, abre-te toda!"
Não é sujo, é a vida
Para a minha personagem “Morte”, no teatro, fui ao cemitério de São João buscar uma caveira e, sempre que a olho, interrogo-me sobre a cor dos seus olhos. Azuis? Muito azuis? Ou verdes cinza? De qualquer modo quando, á noite, no Teatro e transmutado em "Morte", a encosto ao peito, não deixo nunca de pensar que aquela mesma caveira foi a de alguém que, em vida, terá sonhado pisar um palco. E fico tranquilo.
Entretanto aguardo Teresa e não sinto nada mas é devido ao embrutecimento dos sentidos, não já pela engrenagem mas pela gripe, virose ou lá o que seja, porventura uma súbita náusea que logo sairá com aspirinas e etc.
No meu país as pessoas são hospitaleiras nas não educadas. Nas demais terras onde vivi são educadas mas não hospitaleiras. A comunicação é necessária? Então transformemos a Tv, que cada qual promova a sua emissão, que mil canais proliferem. Por fim a notícia será a nossa própria existência.
Teresa não vem.
Alienação é isto de não saber a quantas ando, quem me é, o que sou, se faço, sinto ou vale a pena. A confusão generaliza-se, não consigo ver limpo, apenas tarefas e mais coisas a fazer, e não poder deixar de fazê-las. E todavia também sei que, nm dado momento, um botão desligará tudo.
Lá atrás, em certa altura do tempo, resolvi ver o efeito de determinada coisa, depois doutra ainda, e assim por diante. Agora, as consequências entrechocam-se, confundem-me e não distingo o preto do branco.
Outrora escrevia, havia um ponto de referência. Agora...
Outrora acreditava num reencontro ou qualquer coisa semelhante, talvez no amor eterno.
Agora...
Épocas em que simplesmente não sinto.
Resta o quê?
Fazer como outros e hibernar?
Quanto mais existo para os outros, menos existo para mim próprio: lógico e não obrigatório. Onde o mal?



Viver o menos reprimidamente possível.
A solidão não assusta.

Olá, sociedade de consumo! Se soubesses como enjoas com as tuas jeans, as tuas t-shirts, se soubesses... Mas tu sabe-lo, tu sabe-lo…


Resignei: não creio na felicidade, a não ser por processos químicos. E a realidade não é feia nem bonita: é.
Encontro com Irene: o tempo em que estes encontros me excitavam, sabendo que só daí a oito dias se realizariam! E como vivia melhor esses dias!
Agora o verde é o verde, o amarelo o amarelo e isto... (Com a agravante de, no fundo, nem mesmo saber o que isto seja!)


Prenhe de responsabilidades!
Pateta!
Quem és para se sentires responsável pelo mundo?


Sem dia marcado, em Março
Ao olhar tanto automóvel desocupado na rua saltou-me à vista o seu absurdo: eu com necessidade de transporte e afinal... Se tivesse carta de condução talvez experimentasse a porta de um. E, condenado por "ladrão de automóveis" sofreria  a prisão: comida, quarto, tempo inteiro para a escrita! A descoberta aturde. A perda de liberdade nunca é agradável mas numa vida-escriba há alturas que exigem repouso, recolhimento, elaboração do vivido, uma pausa no andamento.
Finalmente um motivo para tirar a carta de condução!


Existe-se para se provar que a existência é possível.
Acredita-se no movimento das coisas e que tudo é fluir. Para onde vamos, ou donde vimos, não tem qualquer importância. Nunca houve princípio nem haverá fim. A luta diária pelo pão continua com sentido e digo-o porque "sem sentido" parece ser o slogan destes dias. O humano, em épocas de difícil adaptação ao que ele próprio cria, perde-se no meio dos seus brinquedos.
Gostaria de acreditar num deus, por mais estúpido que fosse, para me demitir um pouco.



José,
Conclui o meu primeiro manuscrito aos dezanove anos. Alguns dos meus amigos de então leram-no e Bernado Santareno., cuja tertúlia no café "Paraíso" eu frequentava, propôs a sua publicação a uma editora. Mas esta pediu que revisse o texto e eu, cheio dos meus vinte anos e mal impressionado com quantos, para publicarem, aceitavam a censura dos respectivos escritos, respondi que não revia coisa alguma! Claro, o manuscrito não se publicou. Depois, um dia que imagino frio e esquivo, a mãe foi deitá-lo fora, numa sarjeta para os lados de Benfica. A Pide prendera-me na noite anterior e, logo pela manhã, inspeccionara-lhe a casa. E ela, encontrando a obra no meu velho quarto e conseguindo escondê-la - chamava-se "O Estado", vindo-lhe o nome do jogo que entretinha os internos de um asilo onde, quem ganhava, ditava o trunfo), tentando ajudar-me... destruíu-me o manuscrito! 
Nessa altura, influenciado por William Faulkner, então o meu escritor de cabeceira, escrevia períodos de duas páginas com continuação na seguinte...
Agora a minha escrita tende para a síntese, como se pensasse que a obra de arte perfeita é a que acaba por inexistir, condensada por inteiro na vida do artista.
Beijo.


Da droga vi-me livre, agora d' Isto...
























































Nenhum comentário: