sexta-feira, 5 de novembro de 2010

1983


Queria ser Deus, resignei-me a ser homem.






Sem dia marcado, em Janeiro
Li neste diário que não me interessava dinheiro ou curso superior e queria apenas experimentar sensações. Estou agora em desacordo. Se não tratar da infra-estrutura nem tinta conseguirei para a caneta.


Empregado de mesa transportando na palma da mão a bandeja da literatura, contorço-me para que ela não se vire e entorne o sonho.



Sem dia marcado, em Fevereiro
Quanto mais intensa a vivência do que se narra mais difícil a expressão. Pelo contrário, se o que move a escrita é um ligeiro sussurro, este não será audível na leitura e nem o acto da escrita sabe. Por isso escrever é doloroso: luta-se contra um código que a todo o momento se reinventa e, em dada altura, é já ele quem nos diz, deixando todavia de ser o que era.
O artista é um aventureiro.


Nunca as classes dominantes tiveram tanto auxílio na sua tarefa de domínio: psis, sociólogos, economistas…


A minha geração mergulha na crise, agarrando-se ao que antes contestara, qual ateu que, no derradeiro momento, se vira para Deus. Em nome da sobrevivência demitiu-se, fez do desencanto uma forma de consumo.
Vivo mas não disposto a suportar tudo.
O suicídio justifica-se como recusa. No entanto ainda lá não cheguei e a fome suporta-se a troco de um pouco mais de liberdade.



A pobreza é a maior violência que se pode exercer sobre alguém.
Ghandi


Monto uma pequena banca e vendo "Cantares" à entrada da "Feira do Livro". Vem a polícia e chateia. Precisa a teimosia de uma multidão de burros para persistir entre tanto asno condecorado.



Sem dia marcado em Abril
O "amor" terá sido o primeiro motor da desagregação da manada humana fazendo-a passar do ajuntamento indiscriminado ao da eleição afectiva.


Dias de ferro.


22 de Maio
Não pensar é anular-se.


27 de Maio
De novo na feira.
De vez em quando os altifalantes apregoam: "O escritor x encontra-se no stand tal para autografar os seus livros". Não sei que impressão me faz o anúncio. Mas uma muito funda, lá isso faz.
Um ou outro comprador do meu caderno pede-me também um autógrafo.


28 de Maio
Ao cabo de dois dias de feira e cem brochuras vendidas uma apreensão muito grande: afinal nem apetece que me conheçam!


29 de Maio
Escrevo? E todavia o meu dia-a-dia determina-se pela necessidade de escrita.


Sem dia marcado, em Maio
Queria ser Deus, resignei-me a ser homem.

Quarto alugado à Sé, com porta para a escada. O casal que mo alugou discute imenso: têm duas crianças, ele está desempregado e ela num curso de direito.
Daqui a cem anos tudo terá passado mas agora a adaptação é-nos difícil.


Há dias  - ou horas - em que tudo parece vago, não se sabe o onde nem o porque. Mantemo-nos por inércia. Nas outras alturas a ilusão funciona.


Preferia que dissessem "existiu" e todavia não deixo de persistir no "sou".


Cristiannia - que terminei finalmente?  - ensinou-me a escrever. À primeira versão somaram-se seis e, entre a última e a primeira, passaram-se oito anos a escrever cinquenta páginas. O que é Cristiannia? A tentativa do impossível ou a sua busca. Por isso me parece um livro sempre imperfeito.


A necessidade é a natureza humana.


Tudo em mim clama terra mas logo a morte horroriza. E enquanto assim pendo, fenece-me a luz.


Saudoso passo o tempo que só em recordação vivo.


Sete de Junho
Na feira um jornalista entrevistou-me. Propus a paragem total para uma reflexão - um dia que fosse. "Um dia sem fazer"...



Vontade de desaparecimento e cobardia de não fazê-lo.


Catorze de Junho
Leio o diário de Torga. Como este meu é mesquinho face à impessoalidade pessoal de T. em que cada problema se transpõe para o humano em geral. Se fora capaz de me calar, pararia isto imediatamente.


Quinze de Junho
E pronto. Acordei, peguei num livro, li-o e agora é o vazio de um dia que não sei preencher, apesar dos encontros marcados e coisas do género.
Há humanos que só se sentem na tempestade, a amenidade de um dia de Sol destrói-os.
 Não suporto o acumular dos dias com a velhice por resultado. E nunca se falar disto, como se esta verdade não fosse sempre subjacente: a quotidiana queda na morte e nem um arroubo, um gesto que a espante.
Este dia cheio de horas e encontros empobrece-me.


Dezoito de Junho
Mal d’ Isto.
Um destes dias levei uma bofetada de um guarda por lhe pedir a identificação quando tratava com menos respeito alguém a meu lado. Procedo contra o sujeito. Mas não era disto que queria falar. Era...
Mal. Sinto-me mal.
Não colo ao cenário, rodeia-me a mentira, a publicidade, o espectáculo, em suma.
Outrora os homens como eu temiam a morte por heresia. Hoje, tememos a normalização.



Vinte e dois de Junho
O trabalho que o comum dos mortais passa para usufruir de um pouco de silêncio.
Não posso escrever à máquina de noite porque incomodo os vizinhos e de dia perturbam-me os automóveis.
Decidi usar o meu próprio nome como actor. Embora actuar já me desagrade menos, abandonarei o Teatro mal possa.


Vinte e quatro de Junho
Olhos fixos num ponto sem observá-lo, um movimento interior de ensimesmamento, mais a consciência de me dirigir para um algures tão estranho que me assomava a dúvida: regressaria? E uma voz a aconselhar “Vai, vai mais além, desliga tudo, que te importa?” Mas reagi e, de regresso a este lado, expludo de novo: têm que me aturar!


Trinta de Junho
Esta sociedade dá cabo de mim. Assim tenha força e vida suficientes para lhe deixar bem viva a minha mordedura.


Sem dia marcado em Junho
Os dias que foram... os que virão...
É preciso que o humano se tenha tornado muito abjecto - ou objecto - para viver assim. O homem não é o inimigo do homem, é o seu único carrasco.
Esta sociedade alimenta a parte mais animal do humano. Tudo se vende e quem assim legisla obriga à constituição de uma família, grupo protector ou máfia. O medo é o motor de tudo. Eu próprio escrevo fechado num quarto-casa-forte porque, na rua, temo ser agredido. E os polícias, porque me quexei de um que ultrapassou o seu estrito dever, quando os cruzo na rua olham as horas ou tossem. Qualquer dia mijam e, um dia, talvez pensem.



Não sou de companhia por mais que tente. E creio mesmo que o acompanhamento me enerva. Estar acompanhado seria um constante fazer amor. E por desejar companhia e afinal não a ter, prefiro a solidão. Sofro menos. Ou talvez não. Em todo o caso não envolvo ninguém. Já me separei tantas vezes!



Não é coerente que duas pessoas gostem de se falar e não se toquem. Mas sucede.


Arranjamos sempre forma de sermos necessários de modo a que essa "necessidade" traga um sentido á vida. Tudo menos o absurdo.


Projectos, energia capaz de destruir o sistema solar e incertezas da mesma dimensão: conseguirei? E, afinal, o quê? Ao cabo de dezasseis horas no teatro sucede-me dizer "isto tem de levar a algum lado!" Mas que digo? Uma retribuição no sapato pelo Natal? No fundo, a única coisa a que posso aspirar é não desejar a paragem. Portanto, não há resposta. Há, sim, energia a despender, energia que me toma e tento que não me pulverize. O que fizer, terá sido apenas efeito desta força que só no esgotamento alcança descanso. Para logo se erguer e exigir mais.


Dou-me então conta das consequências do meu "voto de pobreza", feito pelos dezoito anos, no desejo de conhecer o "outro lado" da vida, isto é, o dos nascidos na valeta. Confesso que, até certa altura, a impressão era a de que fingia de "pobre". Mas no presente, com a viagem em tão longo mar, já não destrinço as coisas. Enfim, vivo com tremendas dificuldades económicas mas não me arrependo da opção. Doutra forma talvez fosse agora ministro (era o meu desejo, pelos dez anos, antes de me desejar escriba) embora, provavelmente, não tivesse percebido quão mal vive a maioria das pessoas, como são mal tratadas, sobretudo onde o indivíduo não ganhou ainda consciência daquilo a que, por mera nascença, tem direito.
Urgente fazer perceber aos que são tratados pior que cães que do tutano se lhes dá o osso com cada vez mais futebol. E, ouvindo Pessoa que diz "O mal de tudo é andarmo-nos a importar com os outros" respondo: a não ser que se aceite a lei do mais forte, a resolução do nosso problema passa pelo Outro.
A civilização está em transição.
Este humano já não serve.



Cada opção precedida de tanta angústia como se decidisse da vida e morte.
O intelectualmente honesto torna-se pestífero.  



Não gosto do que vejo. Só o que imagino me seduz ou nem mesmo o ideal mas a capacidade imaginativa, a tecla do sonho.

Na máxima consciência o humano despreza o poder.
É-o.


Madrugada, seis de Julho
A minha vida fará sentido? À beira da morte ou da falência, o amor-próprio arranjar-me-á uma razão e morrerei satisfeito.
Comecei a passar as primeiras páginas (ou anos) deste diário. O problema agora consiste em não cortar nada, deixar ver como é. Para já pareço um estendal de escrita.
Desejoso que o grupo de teatro se fortaleça para o deixar. E desejoso de não sucumbir à tentação de um dinheirinho certo todos os meses. O teatro é muito louvável para quem nele se realize. Mas eu ainda escrevinho isto depois de cinco horas de ensaio...


Sem dia marcado, em Julho
Não existo na mentira.
Prefiro morrer.



Estafado do ensaio, dou uma volta a pé para prolongar o regresso a casa. Pelo caminho ouço Beethoven. Finalmente na cama, adormeço. Mas o dia seguinte parece uma continuação do anterior, não tive a sensação de ter estado inconsciente. Todavia sonhei com a Madre Teresa de Calcutá: luxuosamente vestida, os lábios muito pintados, encabeçava uma manif junto á muralha da China...



Treze de Agosto
Como no exílio. Os outros estão, fazem, usufruem e eu... eu, olho-os como se por uma parede de vidro que não consigo quebrar. Ou que nem o deseje. Estranho e longínquo o modo como os demais se entretêm, passam o tempo, vivem. Pelo meu lado, faço-o na constante lembrança do que sou, enquanto eles procuram precisamente o contrário, a distracção da sua condição. 
O eremita dificilmente se integra na "sociedade dos notáveis" porque para se notabilizar necessita que o notem.



Vinte de Agosto
Lendo “Cantares” no “Cantador-Mor”. Público normal de bar, mais ou menos bebido. Impressão minha ou ficaram de facto surpresos pela índole da poesia? Aplausos pelo menos calorosos.



Vinte e dois de Agosto
Tempo suspenso. Não sei se ganhei ou se perdi mas de certeza que a roda já andou.


Vinte e quatro de Agosto
"Lauren Bacall by myself": dá vontade de mandar a escrita à fava e ser exclusivamente actor! Mas por mais teatro que faça sem caneta não sinto. TENHO QUE ABANDONAR A ACTUAÇÃO. Molière teria experimentado em si esta divisão? Este não ter tempo para tudo?



Vinte e cinco de Agosto
Lisboa com calor parece um deserto e o dinheiro também se me seca. Fiz um recital de poesia aceitando o que nunca aceitei desde os tempos da estreia de "Título": ganhar o que os clientes oferecessem.
Reencontro com Licínio que, caído igualmente na toxicomania, nunca porém se curou. Ofereci-lhe o meu quarto. Agora é o terror de chegar do teatro e vê-lo vítima de overdose.



Dois de Setembro
A pele engelha-se-me como se ganhasse espessura. Mas enquanto não estiver todo dito devo manter-me vivo.



Três de Setembro
Só por razões estéticas sou contra grades, ferrolhos, miséria, fome, etc.



Cinco de Setembro
Sem jogo não há gozo.



Vinte e três de Setembro
Por detrás do menor gesto em cena há uma epopeia de trabalho. Primeiro alcançá-lo, depois… esquecê-lo.



O sorriso é-me uma flor murcha nos lábios, a pálida lembrança de uma frescura
Alguém falava ontem de uma organização de cidades-estados como hipótese para solucionar os problemas actuais: cidades de comunistas, anarquistas, realistas e assim por diante...




Sem dia marcado, em Setembro
Faulkner dizia: "Entre o nada e a tristeza prefiro a tristeza". Eu preferia o nada mas não lhe sabia o significado. O nada crê em coisa alguma, começando ou acabando em si próprio, tanto faz. Ausência de méritos, de talentos, de defeitos. A vontade mecânica e animal de sobrevivência expressa por uma jogada de dados. E que alguém os lance, pois mesmo esse esforço parece demasiado.
A ideia de escrever um romance com meio, princípio e fim torna a atrair-me. Tal não me acontecia desde a destruição do "Estado", já lá vão catorze anos.
De vez em quando ainda apetece reescrevê-lo.


Na peça só hoje senti o prazer da liberdade no estabelecido, a destruição do instituído tornando-o contemporâneo. Um colega, depois da representação, dizia que todo o tempo sentira como se estivesse a cumprir, sempre à espera da cena seguinte na esperança de que, finalmente, acontecesse qualquer coisa. Actuar está a ficar um prazer, aguardo curioso a representação de amanhã. Talvez a expressão, porque ultimamente escrevo menos, saia já por todo o corpo.
Uma abulia prenhe de coisas mas, como a todas quero de igual modo, fico por fim indiferente.
Velho sonho de não existir por algum tempo.
Comecei a vender regularmente em Santa Apolónia as brochuras com os meus escritos. Ah um advogado informou-me que não devo pensar na herança do meu pai pois, segundo ele, o que o meu progenitor deixou foi para pagamento de dívidas. Que interesse tem isto? Há uns tempos vieram e disseram que, por herança paterna, estava rico. Agora vêm e dizem que continuo pobre. Efeitos? Nunca desejei tal herança e hoje senti-me liberto dela. (O sentimento de ser ludibriado face ao que tenho direito é já outra questão e essa contunde com o meu sentimento de justiça. Ferido este, sou capaz de mover montanhas.)
Nunca, como agora, fui tão sem compromissos de espécie alguma, de atestados a avaliar o que seja: existo, simplesmente, e mesmo isto não será para sempre. Eis uma frase de Albert Camus que poderia assinar: "Só sinto humildade no coração frente às vidas mais pobres ou às maiores aventuras de espírito. De permeio uma sociedade que dá vontade de rir".



Isto piora.
A fome entra em cena.
Esta manhã fui vender os cadernos para a gare e trouxe setenta e dois escudos e cinquenta centavos. Um tipo demorou-se mais em ler o folheto que lhe mostrava e fez-me ir no comboio até à primeira paragem. De regresso à estação, percebi que não vendera em duas ou três composições entretanto partidas.
Doente de uma tristeza toda ausência expressiva.



Dos dias os pobres lembram os feriados.



Fui beber um copo e, embora não ébrio, não apetece grandes teorizações.
Talvez o Teatro se torne gratificante se vier a escrever um diário com apontamentos sobre a actuação. Mas ainda assim preciso de actuar...
Que pior? A carência de alimento de espírito ou a de estômago? A primeira sufoca-me e a segunda causa-me mau humor.



Vinte de Novembro
Agora são os trabalhadores.
Anos atrás não era rara a notícia de um capitalista que se suicidara. Agora é de novo a vez do povo miúdo, o que nem arma tem e recorre ao salto no espaço ou ao herbicida. Um operário suicida-se e atribui o suicídio a salário não pago, uma mãe de dois miúdos pequenos tenta a morte duas vezes no mesmo dia e, nas ruas, cada vez há mais velhos sem eira nem beira, crianças sem destino, tudo por entre o anúncio do novo desodorizante, mais o altifalante que grita o sorteio do automóvel de marca tal.
Vómito.
Nem dá para construir metáforas ou grandes apóstrofes. É a miséria, não a de todos, o que ainda seria suportável, mas a de muitos para supervivência de uns tantos.



Vinte e três de Novembro
Os operários suicidam-se por não receberem salário e o primeiro ministro - que exige austeridade - ergue no Algarve uma casa de campo. (Não me arrependo de haver rasgado a carta que, ainda no exílio, o dito me passou, facilitando-me a atribuição de uma bolsa de estudo. Se a conservasse, far-lhe-ia hoje o mesmo. Na altura rasguei-a porque, ao fim e ao cabo, o “bom senhor” nem me conhecia e escrevera-a por gentileza, isto é, por recomendação de um mútuo conhecimento.)



Licínio e eu separados de novo.
Nunca amei ninguém e de mim apenas gosto o indispensável para justificar a ida ao restaurante. O que me é não sei, mas um pouco mais que pedra sou. E tenho gosto em tirar a porcaria do nariz. À parte isto, em nada difiro dos restantes, apreciando a minha boa dose de drama quotidiano.



Os desvios sexuais mais comuns são a homossexualidade a heterosexualidade porque consistem na utilização não integral do sexo, na sua especialização ou divisão do trabalho a nível do prazer.
O humano integral será bisexual. Para os que argumentam que a homosexualidade não é "natural" a seguinte questão: se o humano continuasse "natural" estarias tu, Leit@r, a ler isto?



Sem dia marcado, em Novembro
Como sou incapaz de suportar a canga de X horas a trabalhar contra mim mesmo, vivo na constante iminência do suicídio ou da prisão.


Há no mecanismo cerebral uma corrente reflexiva e uma outra exclusivamente consciente. Quando a primeira se cala, é-se, "apenas". Eis “Deus”. Se nos associamos ao seu devir teremos a "Graça", e o mundo um sentido que se "realiza" em nós.



A escrita é a revolta trágica - porque sem esperança - contra mim próprio, contra o que sou. A expetativa de encontrar o Outro.
Este diário consubstancia o desejo de alcançar uma realidade além da aparência.
Ressurreição.



Implacável comigo e com o Outro regozijo-me a cada afastamento, na alegre inconsciência dos que se excedem.
"Felizes os pobres de espírito"



Certezas não as tenho, necessito de gostar de mim mas não me descubro actos heróicos, antes um viver comezinho, o não saber quem sou, equação de infinitas incógnitas. Um zero ou um cheque sem cobertura. E, no meio do vazio, a escrita, chuva de palavras, cuja seleção é sempre mais difícil.
Sei lá que digo!
Escancaro-me, debruçado por mim dentro em busca do que sou, de uma firmeza que, afinal, se revela ceticismo, sarcasmo, ironia, dúvida. Um vazio tão grande que bem faço por experimentar sentimentos. Mal os sinto, logo se revelam jogos comigo mesmo.
Não existo e vivo.



Sem dia marcado, em Dezembro
Terror da escrita, pânico do papel branco, do momento do sentar à mesa, instante limite do encontro com não sei quem, ou o que é, o imprevisto, a folha sem fim, a exigir a dor - dor sinto ao ler isto - a infelicidade da escrita, ou o prazer de possuir a tal desgosto por liberdade.



Vida sem objectivo é folha ao vento. Vai onde a empurram.



Esta sociedade com a sua propaganda é sediciosa e corruptora. Se a ouvimos, deixamos de nos ouvir, desligamo-nos, ficando sós e surdos aos outros que por sua vez...
Sociedade de comunicação.
Não me interessa trabalhar para editar. Interessa ganhar dinheiro. Para quê? A vida é coisa a que não acho piada. Ficai sabendo que sou vosso contemporâneo a contragosto. Que não sei se me divirto. Que qualquer coisa importante se partiu e nunca mais recuperou. O tempo não apagará a nódoa do Sol. Amanhã talvez arranje um trabalho. Ou qualquer coisa. Isto ou aquilo é indiferente. Gosto de olhar as pessoas, apreciar os que igualmente duram. A vida tem que se passar, não é? Mas o cenário cai por todos os lados. Outrora quis escrever uma epopeia. A luta contra o suicídio é, afinal, a minha. Rasgo-me em letras mas só estampado sou. E com palavras rompo a escuridão: entre o nada e o nada persisto. Construção inútil? Sei-o. Abomino o espectáculo. Bom, estou mudando as coisas... Mas a solidão é enorme. Sem fim. Magoada pelo quebrar do encanto.
Deixar o Teatro. Não interessa o que venha a seguir.
O meu processo é indossociável deste país onde vivo depois de 1974. E assim é porque, tendo experimentado em 75 as drogas duras (até nelas quase soçobrar) houve, em 79, que refazer tudo, como qualquer toxicómano que se recupera. Portanto, regressado ao ponto zero (não sabia já estar, falar, andar, não sabia, em suma, o "saber") tudo me foi novamente ensinado. Ou, como dizia o mestre do curso de actuação onde me aceitaram: "Um actor tem de aprender a fazer tudo!" E  eu...  obedeci.
Ao deixar a droga, a minha autonomia, e mesmo sobranceria revolucionária, reencontra a maioritária realidade ferozmente defendida de qualquer veleidade de mudança, seguidista já da "nova" velha ordem, do enorme retorno à Ausência, à vida em diferido: o voto quadrienal, a telenovela, os debates na TV - substituindo a discussão política nos muitos rossios do país - os Natais no segredo das famílias  - quando se comemoravam, em Lisboa, com fogueiras e choriços assados no largo do Camões. O que de mim resistiu (e dá azo a escrever ainda) foi todavia suficiente para dizer dos muitos jovens que, por alturas de 76/78 se vangloriavam de terem obtido "o conhecimento", estupidificados por teorias que então invadiram o terreno de todas as lutas, jovens seduzidos e, finalmente, neutralizados, entregando o seu querer a um "Senhor" cujo maior conselho era... pararem o pensamento. Tal convinha a um Estado que, assustado, se recompunha das auto-gestões pululando por todo o lado.
O desejo de escrever sobre drogas permitiu-me o contacto com o sublime mas arrasou-me o físico, levou-me à lama, à decadência exterior. Agora, subo outra vez a escadaria. Tão fácil descê-la...



Sexta-feira clara escura, um dia saído da arca da roupa como muitos outros, o mesmo sentimento de quem não pode sair á rua em pelota, e injecta a agulha anestesiante do noticiário hora a hora: a actualidade veste.
Morro em camas de incenso sobre plumas de fogacho, a inquisição a que pertenço outorgou-me o dom, e neste equilíbrio me consumo e sou.
Há enfim eu, nisto que não há que o descreva mas meus olhos já não choram – a humidade sou.



Em risco de não assegurar a minha sobrevivência com o Teatro – colocando, assim, a própria escrita em perigo – decido imigrar, ir para Paris  retomar o curso de "Sciences des Textes et Documents" que frequentei no exílio. O mesmo que não prossegui, já em 74, porque um recepcionista se demorou a atender-me… 

A humanidade não me merece nem mais nem menos valor que as restantes espécies.











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