sexta-feira, 5 de novembro de 2010

1988

Um humano leva tempo a fazer.





12 de Janeiro
Deixei de sentir. Sinto, isso sim, uma colecção de "sentimentos de sentir", igual a qualquer outra que possua as mesmas variantes. Nos piores momentos, nos de maior debilidade intelectual, penso que sou eu quem sente e não que visto "sentires". Nas outras alturas estou perfeitamente de fora e olho com espanto.



Escrevo porque o alheamento é tão intenso que necessito de extravasá-lo. Mesmo assim também ele um dia passará e ficarei existindo, da mesma forma que outros se tornam importantes ou chefes de família. Não sei para que existo mas torna-se agora claro que não é para ser escritor. Não há razão. Não há mesmo razão e as coisas são assim.




S. Martinho do Porto
Busco de novo qualquer coisa que me seja. Não sei onde estou ou o que me é. Perco-me. Perco-me. Perco-me. Ou não me quero encontrar. O projecto saíu ao lado. Em mim nasceu Outro. Feroz. Associal. Inquieto. Suicida. Viajante perene. Para além dele nada, apenas mudança, instabilidade, procura. Desconfiança das próprias capacidades se aplicadas ao utilitário. Não sirvo. Inútil. O deflagrar dos sucessivos anos tenta ser qualquer coisa que não cola. Não sinto os sentimentos que me cantam. Alheio. Lasso. Lançam-me caminhos e busco-me na sua amálgama. Que tenho a ver com Isto?
Revolta. 
Tentei normalizar o ser e ele tornou-se mais agreste. Não o encontro, não me obedece e, quando o faz, é repelente e viscoso. Digno de nojo.
Tudo me enoja.
Guerra à minha pessoa!



15 de Janeiro
Idiota!
A recuperação trouxe o que desaparecera: a aptidão para a utilidade, servida por ideias de missões históricas, plenas de sentido e sensatez. E eis que tudo derrui.
De pé, resta uma voz: Não!




- Imaginei-me predestinado à escrita de uma grande obra.
- Perguntei-me com insistência se escrevia.
- Zanguei-me por não ter o beneplácito dos editores.
- Decidi ignorar os mesmos editores.
- Descri em qualquer aptidão para escrever e pensei um erro fazê-lo durante tanto tempo.
- Vivi uma vida literária com tudo o que ela implica de pouco espectacular.
- Cometi os maiores excessos a pretexto de escrevê-los.
- Percebi que "profissão escritor" não existe.
- Rasguei metade ou mais do que escrevi, nem por desgosto mas por cansaço, por não saber o que fazer às múltiplas versões do mesmo escrito: "Cristiannia" chegou a seis!
- Não tomei nenhuma atitude importante na vida sem primeiro interrogar-me "E depois? Escreverei?"
… Decido escrever indiferente à mediocridade da minha obra.



Janeiro, 30
Quem sou?
Alguém que gostaria que o mundo o reconhecesse. Mas porquê? Que há em mim que se quer afirmar? Apetência pelo domínio? Que trago de novo á Terra, à sua humanidade? Qual o meu contributo? Que fiz ou faço? Sou ao menos sério comigo?
Ao menos isso!
Há em mim um mar de silêncio. Paz? Ou é antes o emudecido espanto pela vida ser assim? E a que serve? Sou um quarto por alugar e acho que F. Pessoa já o disse. Melhor talvez: um elétrico sem destino. Porque não me interessa ser actor? Quero o meu próprio discurso? Mas quanto mais me possuo, mais me escapo e esvazio. Nada. No fundo, não há coisa alguma. Talvez um jogo ou nem isso: impulsos. Fome, desejo, ambição, medo... Forças que, sublimadas, se tornam cultura.
Estarei disposto a pagar o preço?
Para vingarmos temos de ferir.



Janeiro, sem dia marcado
De vez em quando, restos deste ou daquele que li ou ouvi ler - Pessoa, Kafka, Faulkner - ou outros ainda, assomam-me e penso ter deles o reflexo ou a lua. Mero movimento que logo passa e encontro-me com isto que não sou mas me é. Provavelmente uma apetência de qualquer coisa que tanto poderá ser gato como prato, desde que sirva para forma de gente. Ilusões velozes de um eu que não existe, que se pulverizou algures na tentativa de ser algo que afinal o esgotou. Sou o zero, ou nem ele, porque não resulto de uma invenção humana e a canção que ouço, enquanto a minha pena corre, nem sequer me perturba, porque nada me altera: o vazio não muda. Alegria, tristeza ou qualquer outro sentimento, sinto-os como quem veste um fato que, por ser para deitar fora, não interessa que encolha ou a traça coma. Vejo-me por fora, por dentro, ou até de lado e a atitude é o espanto.



Tudo o que é conclusivo, pedagógico ou moral é limitado. O universo é infinito contendo finitos onde se incluem os aspectos das coisas. O humano é incerto e sem limites.



E mesmo assim é verdade este vazio, este não sentir que sinto? Ou trata-se ainda de um empréstimo, uma ilusão nascida do contacto com o nada que me informa? Há-me qualquer coisa?
Sou olhos, um par de olhos vorazes e captadores que nem se dão ao trabalho de raciocinarem, como se isso  fosse já escândalo, por ser qualquer coisa.
Olho sem olhar, vejo sem ver, os meus olhos são dois buracos que fitam outro buraco, o universo, sem no entanto a certeza de nenhum. Talvez tudo não passe de uma ilusão óptica, sem que se saiba de quem ou a pergunta. Existe o quê? A minha caneta, sem dúvida.



Não sei se me minto se sou verdadeiro. Ambos os registos se misturam e fica-me o vago, o não saber o quê, e mesma a questão é confusa. Não sou senão literatura, uma imensa história que começou lá muito atrás e que, por efeitos de mera inércia, exige um fim, sabendo, todavia, que o não há, que só a impossibilidade física lho confere. E, afinal, nada disto importa dado que, com certa regularidade, um ou outro a há-de narrar, independentemente do como ou porque, por mais biografias que se rascunhem.



Não há coerência alguma. São palavras, frases e elas é que continuam, sons que se fazem, jogam, e atiram como bolas de sabão. Que importa quem as sopra?




2 de Fevereiro
Retomei.
Deixei as dúvidas que não adiantam. Fazer o meu melhor possível. Interiorizar-me. O percurso tem sido intempestivo. Impossível a abstracção completa. Ou seja, esquecer os outros. Apregoei que escrevia, escrevi textos que foram representados. Sinto como se tivesse que escrever. Mas apetece-me a obra do Nada. O meu trabalho é evitar contar a história e, no entanto, escrevê-la. O espectáculo tomou-me. Há um olho que, embora antigo, é mais evidente agora: o de me ver a construir texto. Perdeu-se a inocência. Quanto tempo para readquiri-la? Todavia a escrita subsiste e, já no seu prazer, me esqueço e transcendo: o mais que importa?



De vez em quando - as piores alturas - deixo de ouvir.   Então nada fala. Torno-me surdo e embato nos objectos. Contra-natura. De outras, porém, a harmonia é absoluta.




15 de Fevereiro
Silêncio.
A voz calou-se.
Olho e não apetecem teorias.
A morte?
Quem escreve é o vício. E fala apenas para manter o contacto.



19 de Fevereiro
Votar no mais capaz e impedi-lo de comportamento anti-social por uma aturada vigilância.



22 de Fevereiro
Chama-se "Paulema". Sem embandeirar em arco porque a confiança na minha capacidade de escrita anda abalada, gosto da história.
Perdi muito tempo. Desejo recuperá-lo. Brigitte Bardot: "Descobri um dia que o mundo não me merecia respeito." Concordo.
Recusa de "Rua Augusta" por dois editores. Levaram-me a acreditar que o escrito interessava para além de mim mesmo. Não desejo submeter-me a mais editores. A edição é estranha à escrita.
Assistência a debate modernismo/pós-modernismo. Sim, depois de Auschwitz e Staline estamos mais prudentes.  A vida não é apenas racional. Leis no universo? Claro, os seus aspectos quantificáveis. Admitir que somos uma das consciências do universo significa que a lei se contempla. E que sobra sempre mistério.



3 de Fevereiro
Entre o nascimento e a morte há que passar o tempo. Averiguar por que se existe parece-me uma ocupação digna e, ao mesmo tempo, absurda: para quê revolver a lama?




4 de Março
Baço de perguntas "para quê"? A vida por vezes não tem piada, fica-se por um muro rente aos olhos. Então recorre-se a um papel e diz-se do mal. Longos queixumes de animal doente de existência. Ouve-se música. Ou lê-se um livro que outro, porventura em situação semelhante, escreveu, enganando o suicídio. E o momento passa. Com um sentimento de querer outra coisa: a festa. Sem ela a vida é perda, exercício de filosofia que se toma por eterno.



12 de Março
A energia expande-se ou contrai-se. Mas não pára. E é indiferente a valores. Dirige-se para um objectivo último? Não. Ela transforma-se mas sem obrigações. Reunidas as condições A e B, seguir-se-ão C e D. Mas também se poderiam suceder E e F. Algures funcionou o acaso e algures a necessidade. Ao mesmo tempo que temos uma razão há igualmente uma voz - o instinto ou a voz da espécie  -  indiferente a cálculos sociais. Aquele está na base de tudo, inclusive das diversas sociedades a que o humano tem dado azo. A sociedade mais justa será a que melhor conciliar instinto e contrato social.




24 de Março
Eis-me adulto, sem mulher, homem ou tão pouco filhos: "muito pouco casado" como diria Adriano pela voz de M. Yourcenar. Consegui-me a vida que quis mas que não haja enganos: alcançá-la deu trabalho, foi necessário lutar contra a pressão social e contra mim mesmo, naquilo em que me sou o inimigo.



A paz, ou um estado de pacificidade mas não o fim do desejo. Antes o resultado da atenção contínua ao ser interno, aos sonhos e fantasmas, procurando a melhor forma de, sem submetê-los nem ser sua vítima, ganhar a sua convivência. A "negociação" - e não o extermínio ou o radicalismo - é a constante no processo da vida. Esta 
não é radical. A alegria inclui a ausência de desequilíbrio entre desejo e satisfação.
Paz consciente de si mesma.



3 de Abril
O preconceito e a amiga cobardia. Medo. A imagem tomou o meu lugar. Agonia. Pus. Não sei se renasço, vou, ou é tarde. Talvez o tempo se quebre e o ar esmague. Apesar da inutilidade do ódio, odeio. Fechem-me os ouvidos, ceguem os olhos. Quis o deus e restou o asco, a memória, o espaço perdido. Os dias. Chega de comida. Seque-me a alegria. Dê-se-me cabo e desvalimento. A vida é uma colecção de monstros mais ou menos conseguidos, uma aventura sem fim nem história.
Desgosto.



8 de Abril
Existir, dar ao ser a possibilidade, exige sabedoria e meios. E se a riqueza não entrar em conta - ela é vantagem e obstáculo - outro facto se afirma indispensável: o carácter.
Por carácter digo os atributos que levam um indivíduo a não abdicar. De quê é inútil dizê-lo. Cada qual sabe por experiência quanto concede e as concessões que abalam irreversivelmente o edifício. No mercado o ser esvai-se. A consistência desaparece e surgem umas tantas  trocas. Não se trair, não ir contra si, torna-se a batalha. A concorrência privilegia o engano, o empurrão e o assassínio; quem os pratica sabiamente obtém fama e glória. Entre este pólo, a que se associa o poder económico, e o da vida como conhecimento de si, aberta ao Outro, a semelhança é nenhuma. De um lado o ser expande, no outro miniaturiza e oprime. O primeiro cria pontes, o segundo deita-as abaixo.
A sobrevivência da humanidade depende da solidariedade.




Mem Martins 27 de Abril
Vazio mas não oco.
Depois de um período em que me pensei escriba falhado, fiz a seguinte reconversão: como escrever ainda é ao que melhor me entrego, isto é, com mais afinco, concedo-me o direito a escrever mediocremente. Esta posição permite-me uma escrita sem outra preocupação que não seja o prazer do seu medíocre fabrico.
Revejo Paulema com o sentimento de fazê-lo apenas para que fique pronto. Depois de uma época em que o exterior predominou (a venda na rua e o "teatro" fácil à volta de quem escreve) sinto-me outra vez de bem com o vai-se escrevendo.
Fase de balanço.
Devido à doença pulmonar, em miúdo, não tirei o brevet, não fiz esgrima, não me tornei a inscrever no hipismo. Recusei convites valiosos no respeitante ao Teatro mas este sempre me foi mais um divertimento, um estar com o Outro (e por isso atraente) dada a solidão da escrita. Escrever sobre droga custou-me cerca de quatro anos - fora a recuperação - em que não fiz senão afazeres de drogado, ou seja, vida inconstante, acompanhada  por gente, a maioria sem interesse para mais nada. Mas como houve uma revolução pelo meio e Portugal andou também "louco", não sei bem onde começou e acabou o meu desvio. Em todo o caso foi real.
Não há escritor sem consistência e esta custou-me a adquirir. O humano leva tempo a fazer.
Os outros são-me cada vez mais indiferentes e simultaneamente íntimos.



6 de Maio
Não me interessam teorias sociais. Nem sociedades melhores ou piores. Sociedade não interessa. Continuarei a ensinar história do Teatro e mais nada. E montarei de tempos em tempos uma peça para lhe ver o efeito. Tal como outrora: para ver o efeito. Nada mais.
Deixar de ir, vir e correr. Esse tempo passou. Cursos não me dizem respeito. Nem famílias ou sentimentos estimáveis. Cumprimento as pessoas, envio saudações, telegramas, telefonemas, etc. Mas o desprezo é o sentimento de fundo.



7 de Maio
A escrita integra-me num todo de que sou ínfima consciência.



10 de Maio
Irritação inútil e idiota. Escrevo, passo tempo, tornei-me proprietário de um apartamento e nada satisfaz. O homem é doente da sua consciência.
Acabei Paulema. Depois de Cristiana, de que houve seis versões, Paulema foi o escrito mais prolífero. Começou por um trabalho de duzentas e tal páginas - um romance-ensaio - que se chamava Caldas. Nele dizia o que pensava da sociedade e como a idealizava. Passada essa fase tornou-se num escrito em quarto grau, complexo mas, no fundo, uma narrativa cuja título, "Crónica de Um Assassino", retomava o heterónimo Adélio Dias, o meu outro mais a-social até ao momento. Ema, numa das versões era uma personagem masculina. Modifiquei-a porque não queria escrever sobre a homossexualidade tirando porventura impacto ao resto.
Na versão em que se chamou Antes do Massacre, o narrador no final vinha para a rua matar a eito. Quando se começou a falar em "serial-killers" modifiquei também o título assim como a conclusão. Com a mesma matéria poderia escrever 1000 páginas. Prefiro a contenção. Contar uma história desvalorizando o conto.



14 de Maio
Saldo:
Aos dezoito anos o meu credo era "Ser e não ter."
No período da droga - 75/79 - tornei-me "junkie", a ponto de esquecer porque a quisera experimentar.
Um dia ouvi amigos dizerem, entre si, que provavelmente me restaria apenas um ano de vida. O prenúncio lembrou-me que me metera na droga para descrevê-la.
Decidi deixá-la, inscrevendo-me num curso de actores para ocupar o tempo doutra maneira. (Tive sorte porque fui dos quinze aceites entre centenas de candidatos!)
E houve que reaprender tudo.
Por essa altura Miguel emprestou-me um livro sobre o sucesso económico. Esquecido de outrora, aprendi então que era necessário "ter". E senti desejo de prestígio, invejei os que enriqueciam, ansiei pelo poder. Quis a morte aos que se me atravessassem no caminho. Pensei entrar para a política como forma de conquistar o poder pessoal. Não o fiz mas tornei-me feroz, fechado, egoísta, avarento. Contraí úlceras de estômago. Já não havia prazer e era infeliz.
Hoje volto a não desejar coisa alguma. Não obtive riqueza e ela é-me de novo indiferente. Combato no entanto a injustiça. E se um dia pedir na rua, espero fazê-lo para os outros.
De bem outra vez com as estrelas como na minha tenda de Monsanto – a mais pequena do parque – quando adormecia apenas com um pano entre mim e elas.
Este passado recente – que durou alguns anos – parece um pesadelo. Pelo mal que me quis, pelo mal que fiz.
Uma só coisa resistiu todo este tempo: a escrita.




28 de Maio
Antigamente gesticulava e erguia-me nos bicos dos pés para me dizer diferente, que qualquer coisa me excedia, exigia espaço e mundo. Agora a necessidade de reconhecimento finou-se. Para quê gritar "Estou aqui!"? Quem são os outros para que me dê a esse esforço? Que me podem oferecer? Tornarem-me seu, apaparicarem-me? Não os aprecio suficientemente para lhes querer o elogio. Acho mesmo que ficaria intimidado. E este escrever, esta escrita que anónima se desenrola, pede é que a deixem ir e, para isso, apenas precisa de papel e tinta. O resto é paisagem e sobretudo morte. Sê-lo-ei também um dia. E enquanto esta não vem, cá me vou escrevendo. O resto não importa.

Sem dia marcado, em Maio
De novo à secretária organizo as coisas como qualquer burocrata.
No caos restabeleço-me, no equilíbrio canso-me.
Mal um fulano se descuida dá em "filho da puta".




15 de Maio
Ana
As únicas barreiras a transpor são as interiores, as que nos mostram que continuamos vivos, acordados, cada vez mais independentes da opinião comum, feita de sucessos e fracassos de cifrão.
Ser é um percurso sem fim e a experiência da solidão, ainda que difícil, é das que mais ensinam. Procura, diria, pessoas que te possam levar mais longe, não nos feitos dignos dos quadros de honra mas nos que conduzem ao encontro connosco, à paz do espírito, à anulação das vãs combinações. A única ambição lícita é a do ser. E o ser dispensa os aplausos. Por fim, os outros julgarão que somos uns falhados. Mas a escala tornou-se-nos outra.
Quiseste conhecer a América. "Conquistá-la". Reconhece que não há nada a conquistar. A única conquista válida é precisamente a da auto-suficiência, a do sereno olhar sobre o mundo. Gostaria de te animar. Ao telefone pareceste-me uma criança perdida na Disneylândia. A tua casa é dentro de ti, na tua voz. Ela não engana e todos a possuem. Poucos a escutam. Todavia contrariá-la custa caro. O apelo do êxito exterior é mais forte? O único sucesso é vencermo-nos, deixando a sociedade e o barulho em volta, não permitindo que ela se nos infiltre. Não te apetecem os Estados Unidos? Porque haveriam de apetecer? Somos livres, completamente livres, não há que dar satisfações nem entrevistas. No fim, os outros só nos merecem desprezo embora respeito.
O meu prazer de vida cresce à medida que me liberto de amores, paixões e toma lugar a lucidez que vê, observa e de tudo ri.
Viajar entedia-me.
A sabedoria também se alcança pelo excesso. Por vezes, há que tomar decisões que à maioria parecem absurdas, senão idiotas. É o preço. Mas o que é o mundo? Quantas vezes ao seguir a consciência nos não achamos ridículos? Ouçamo-la porque na última hora será ela quem dita.
Beijo

Ana
A loucura será encarnar os acontecimentos como se os fôssemos? Cortar a distância entre o observador e o observado? Enquanto assim vivi as consequências foram desastrosas. Readquiro a capacidade de fazer as coisas apenas para lhes ver o efeito.
Há que passar a prova do consumo.
Perante este mundo a única coisa que desejo é ser louco.



Se eu não fosse senão uma ilusão...
Bernanos



Sem dia marcado
Outrora as coisas interessavam-me porque lhe queria ver o efeito. Esta fase terminou com a recusa do efeito morte, a que me levaria a droga dura. Interessei-me então pelos bens materiais, a posse, a sua panóplia de possuídos.
De novo me liberto.
(Pelo caminho comprei uma casa - antes não fazia sentido ter porque me sentia dono de tudo)
Agora olho de novo as coisas com a disponibilidade que cito em Cristiana. E apetece outra vez ser peregrino. Nenhuma ideia, nada.
Inscrevi-me na Partido X por desfastio. Fui a uma reunião e depois desapareci. Sentia-me enjoado com a burocracia. Voltei a aparecer. Agora vou lá com frequência. Interessa-me ver o efeito da minha pessoa numa associação política.
O meu desinteresse, salvo por observar, é total. Aliás, mal distingo o que quero e tudo se anula. Pessoas, encontros, percursos... Adoro estar só, o resto é-me alheio.
Amoral e asceta, tanto imagino campos de concentração como respeito os mais elementares direitos humanos. Nada me impede.
Disponível.



No café um homem de bigodinho e calças bem vincadas fala com um mulher jovem muito arranjadinha e "à moda". Saem-lhes das bocas coisas em voga. Quaisquer outros as diriam.



Sem dia marcado, em Junho

Poderia passar o resto da vida calado. Mas pois que digo, que diga bem dito.
Que a vida me dure o suficiente para propagar o fogo. Nem mais um segundo.

O corpo é a união com o Outro


16 de Julho
Nada importa e tenho esbanjado tudo. A própria saúde como quem faz oferta de si. A quê não sei. Depois, no meio desta permanente perda, ficam meia dúzia de folhas escritas. Estranho. Os dias a preencher papéis... Ainda a morte? Enjeito o mundo em bruto. O próprio sexo só em diferido me excita.
De vez em quando morro: o mundo plástico e fotocópia infiltram-se-me, enevoam-me os sentidos. Depois, um momento a sós, e eis o reencontro.
Decidido a só fazer o que me interessa, passo bem sem o resto. Mas, qual menino lembrando o castigo se vai ao mel, devo recordar que isto é uma selva e que não posso ficar nu, apenas com papel e caneta.


6 de Julho de 1988
As coisas, ao nível onde me situo, o do pequeno-burguês sem carro que toma o pequeno-almoço na pastelaria e apanha o transporte público para o trabalho, não funcionam. 
De um lado, os que dirigem não imaginam o que seja esperar transporte numa paragem sem resguardo, viver em bairros sem espaços verdes, andar aos zigue-zagues nos passeios por causa dos automóveis neles estacionados; do outro lado, escassamente viajados e que nunca se confrontaram com outros modos de vida, estão os que tudo isto sofrem, anestesiados por kilómetros de telenovelas e demais panaceias, (para não falar do branqueamento dos livros escolares, acerca das épocas em que, de facto, protagonizaram uma ameaça para os economicamente poderosos, dos quais chegaram a esfrangalhar o aparelho de Estado) e bombardeados ainda por uma cultura-"hamburger", que a todos desfalca precisamente do que serviria à construção de um Portugal culturalmente de si próprio, de uma democracia inovadora.



A Europa é uma senhora velha-rica, desencantada com o valor da riqueza e que olha irónica os novos-ricos do mundo. Compete-lhe dissuadi-los de lhe seguirem o exemplo de quando primeiro alcançou riqueza. Compete-lhe um papel de sabedoria. Eis a obrigação dos europeus.

A minha vida tem sido um sucesso de desperdícios. Resto.

17 de Julho
As coisas que ora nos apelam são tão diferentes e ao mesmo tempo tão próximas que, na impossibilidade de respondermos a tantas solicitações, nos sentimos várias pessoas.



25 de Agosto
O Chiado em fogo aquecia a minha casa e juntei os escritos para abandoná-la. A segurança, a sua simples aparência, desmorona-se e fica a verdade: minúsculos bichos lutando por durar o mais possível. Numa sociedade que se estipulou o conforto, os  privilegiados só se dão conta da sua intrínseca fragilidade em ocasiões de excepção.
Ontem, para os habitantes da baixa pombalina foi uma delas.



27 de Agosto
Aos quinze anos, a exigência de um sentido, levou-me à recusa do absurdo. A sua inexistência objectiva é indiferente, pois o que haja fora de mim não me interessa. E não é pouca maravilha entre dois nadas viver em comunhão com tudo.
Perseguindo o desejo de me consagrar exclusivamente a Deus não sei o que sigo. Mas, fazendo-o, o mundo fala-me. E, se o não faço, tudo se me torna inimigo e alheio: perco-me.
Só, alcanço a paz que ilumina, dando azo ao que sou. E já fiz muita coisa para perceber quando o meu ser escurece - e é conflito - ou se torna tranquila harmonia.  Por vezes, este acordo é tão fortemente sentido que parece impossível suportá-lo, como se a união a Tudo fosse demais, ou nela me esvaísse. E a tal ponto me sinto dissolver, que tenho necessidade de fazer algo de errado, anti-eu, anti-em si, a fim de não desaparecer.
O retiro do mundo exige o afastamento dos muitos que nos querem iguais. (E no entanto até há pouco tempo a minha questão era: “porque não sou como os demais?”...)
Resigno-me, pois, a mim, embora a apreensão seja grande.



31 de Agosto
A assídua recusa dos editores e uma irresistível vontade de nada fazer para me impor.
Falhado. 
Falhado ou falho de compreensão. De qualquer modo a alternativa é continuar. Que o falhanço seja total e me submirja.
Afinal a vida pertence-me.
Encruzilhada.
Irei mais além? Cedo à realidade que se me apropria? Em meu torno a devastação é visível. Todavia algo me diz Continua! Mas sinto o cansaço, embora a vontade de me entrincheirar e resistir sejam grandes. Resistir à "facilidade", ao esquecimento de que a luta pela perfeição é possível. Leio Platão como quem lê no breviário. Em que me tornarei se persistir? Suspeito que num pestífero, qualquer coisa de que os outros se afastarão. Senão vejamos: que procuram eles? Boa mesa? Um pouco de arroz basta-me. Sexo? Habituei-me a prescindir. Prestígio que a moda e o bem-vestir oferecem? Estou-me nas tintas. Divertimento como maneira de fugir á reflexão? Abomino. Com estes ingredientes assusta-me o futuro entre os meus semelhantes, tanto mais quanto o que a democracia trouxe aos portugueses foi sobretudo o acesso ao plástico e o poderem publicitar a loja onde o compram.  Pois, acaso saberão conversar os meus contemporâneos? 
Arranjarei um cão.
Instrui-lo-ei a distinguir o bem e o mal e também a democracia. Porque descurar um ensinamento em desfavor doutro dá portugueses actuais: crianças de pé descalço, barulhentas e mal educadas, pisando as flores e dizendo "OK". As que possuem dinheiro diferenciam-se porque trazem sapatos.



1 de Setembro
A consciência para quê? Para a lucidez mais completa.
Amanhã reiniciam-se as aulas. Absolutamente nada a ensinar e a situação torna-se insustentável.
Não faço a mínima ideia para que existo e, no entanto, em resultado de uma série de circunstâncias, sobrevive-me um sentido de missão. Move-me o direito de fazer da vida o que quiser, ver-lhe o efeito.
Actividade para quê?



Houve uma altura em que tive verdades. Caíram. As "políticas" foram as primeiras a debandar. Depois as outras, as normas de vida. O menos que posso dizer é que a sensatez me parece uma perda de tempo e no caos sinto-me em casa.



Em que se crê? Que o bem-estar pode existir (e até os sentimentos sublimes) entre dois momentos fundamentais: o nascimento e a morte. Talvez um dia, com a prática, o espírito se autonomize. Fase posterior à humana?



9 de Setembro
A visão extasia-me. Como se possuísse pelo olhar e o mesmo se passa em relação aos corpos. Tocá-los, torna-se então profano. A sua realidade só me interessa como ponte para outra.
Abandonei qualquer sonho político.
Oh, como quis transformar o mundo!





Nenhuma necessidade rege o universo salvo a do seu próprio devir. Mas feito o dito universo, pelo menos connosco, consciência, esta pode auto-programar-se e, até certo ponto, dirigir o processo.
Vencerá o bem de uns poucos? E a dor para a maioria?
Tudo possível.



A ignorância conduz à estupidez, ao embotamento dos sentidos. Nesta medida é uma violência.



10 de Setembro
Avesso, desnão, des-sim.
Não me oiço, o mundo torna-se opaco e a vida espessa.
Sou a cegueira e a mercadoria.




11 de Setembro
Temporal.
A escrita, vela desde há dezanove anos, afundou-se. Procuro e não vejo. Não sei se me sobrevivo e ponho de novo a hipótese do fim. Talvez o escritor se salve, desde que acabe já.



Sem dia marcado em Setembro
Silêncio. Vácuo. Duas vidas. Trezentas. De manhã um, à tarde outro, e a esperança de vir a ser nenhuma. Todos os dias me finjo interessado em qualquer coisa. Por mera distracção, hábito ou ainda contágio. Na verdade só o zero, o nulo interessa e nem por decisão minha: acontece assim, é assim que sucede. Mas todos os dias faço coisas que levam os outros - e eu próprio - a pensar que sou uma pessoa muito interessada. Que me rala que o mundo deixe de ser mundo? Quando não sinto, eis os meus melhores momentos. Os outros são pura perda, alienação. Não dizem. Outrora pensava ter coisas para dizer. Agora elas são nenhumas e a tranquilidade é toda minha. Tornei-me olhos e observo os desejos nos outros, a pressa com que correm e partem à conquista. Deixá-los ir.
Quando voltarem talvez ainda cá esteja.



Vazio, porque esvaziado, do que aos outros compõe e faz. Por vezes, penso se penso e que finalmente penso quando isso acontece. Não me encontro e acho que sou - única e exclusivamente - esta ausência de ser, este permanente quarto por alugar. Não sei se é triste se  alegre mas espantam-me as opiniões, sobretudo científicas, dos outros. Algures qualquer coisa se perdeu, uma válvula abriu-se e deixou que saísse definitivamente de mim um tal que, esse sim, era.
Quem seria?



Devo expressar o que me é. Para isso sou capaz de me pôr de mal com a humanidade.



Sem dia marcado, em Outubro
O meu mais belo livro é Christianna. Também o mais difícil de escrever e de ser entendido. Nunca o acabei.



Inútil lutar contra a maré.



No percurso da sua vida cheia de desastres o humano comum recusa-se a vê-los. Conta-se histórias... e quer que outros lhas contem também




Que os medíocres nunca te aplaudam.

 X, que gostaria de ser escritor, diz-me: “Por vezes sento-me à máquina mas... já está tudo dito.”
Como é evidente, uma pessoa não se senta a escrever para dizer o que quer que seja, mesmo que ainda não dito. A questão nem importa. É inútil. Escreve-se porque nos tira do tempo e tem a mesma função que a pesca desportiva.




Sem dia marcado em Outubro
A vida é simplesmente insuportável. Afora o amor, o querer a alguém, que vale?
Viver é um desconcerto onde o mais que podemos fazer é procurar que a peça dê a ideia de acabada.

3 de Novembro
Não sou nada.
Depois de alguns dias de maior assiduidade no partido X nunca mais lá fui. Ao fim e ao cabo não faço senão escrever.
Frustração por não ser um grande escritor. Ainda será possível?




7 de Novembro
A luta pela sentido é a luta da sobrevivência humana.
Se aprofundar o múltiplo encontro a unidade. Se aprofundo a unidade encontro o múltiplo.

7 de Novembro
A questão que tanto me atormentou "eu escrevo?" não se me atenuou. Mas não quero perder mais tempo com ela.



14 de Novembro
Começa a ver-se o que se fez da vida: amontoei papéis. Bizarro e, no entanto, foi o que quis. Também já não interessa fazer outra coisa e a diferença entre o lá atrás e o presente é que, no entretanto, me perdi. Só por isto os tais papéis me dizem respeito: fiquei-me neles.
Acabo uma novela. Sem esperança, ou qualquer outro sentimento festivo. Porque tem de ser, por hábito, por incapacidade de ligar verdadeiramente a qualquer outra coisa. Entre mim e o mais erigi uma cortina de tinta.

16 de Novembro
Trinta e oito anos. Existo? Terei uma existência para além deste amontoar de anos? Vivo numa casa que compartiho com a mãe e um padrasto. Por vezes penso que deveria arranjar um apartamento só para mim. Mas escrever, escreve-se em qualquer lado, desde que me possa alhear do resto, e, quando assim penso, esta casa serve. É possível que haja uma série de coisas que, por ter de olhar ao compromisso de viver com os outros, não possa fazer. Mas verdadeiramente elas interessam-me? Não. Convívios, festas, excessos, boémia, deixaram de me atrair e o que gosto é de leitura, escrita, estar quieto num canto a pensar, ou nem isso, a olhar, simplesmente. Para quê, pois, procurar outro espaço? No entanto acho a vida estranha como se tivesse projectado uma outra e me sentisse alheio nesta. Gostava de ter um futuro literário, porém quanto mais a idade cresce menos nele acredito, ou com menos frequência. Mas já disse que não gastarei mais tempo com a questão. Aqui, neste silêncio em redor, sinto-me. O resto que importa?
A sensação de nada a dizer. Um vazio todavia consistente. Consistentemente vazio como se a realização de uma vida. A escrita não é alheia a isto.




17 de Novembro
O vazio. Ele sobretudo. Um oco que me deixa indiferente. Toda a actividade exterior face a este nada torna-se irrisória e ridícula. Grave, no entanto, de tão intensa. A consistência do que é ausente sem todavia a saudade. Assim não há melancolia, a qual face a isto ainda é plena e gratificante. Porque sou um balão a que caiu a válvula. Uma queda brusca de contornos, doravante soltos, esparsos, diluídos como gás que se derrama. Dissipo-me numa não existência. Nome, apenas. Hábito de ser, exclusivamente




"Meu amor, não me deixes..."  e todavia mesmo essa memória - a tua - sou eu que ma invento. Mas hoje é mais difícil fingir que foste e daí a própria saudade sair inautêntica. "Bloeuf", apenas. Nesta ausência, onde o vazio a tudo preenche, sou um barco fantasma que o próprio mar repele. Uma aberração todavia activa, pensante. Mas os pensamentos circulam sem construírem linguagem. Perderam o significante. Ou o significado? Nem eles sabem. Ruídos, rumorejares perdidos de si mesmos, ecos transviados e batendo nas paredes do cérebro, ao acaso, loucos de perda. Carentes.
Enfim, sou qualquer coisa para a qual não há tempo nem vislumbre.




Não é não acreditar. É sequer a importância disso. E os anos à frente e os anos para trás. A existência em X calendários metodicamente desfolhados. Porque tinha de ser. Porque o suicídio tem tanta importância como a vida e a inércia, afinal, comanda.





19 de Novembro
E assim vamos, sós, falando uns com os outros.
A sensação de uníssono é-me grande. De tal modo que, pensando numa coisa, encontro referência a essa mesma coisa num jornal abandonado. O que explico assim: o individuo vivendo em harmonia com os seus desejos, dialogando com os seus conflitos, oferecendo-lhes espaço e escuta, age de tal modo que a fronteira consciente/inconsciente se torna mais fluida, menos forte, acabando então por realizar o pensamento. Noutra linguagem, dir-se-ia um apurar do faro. Neste aspecto tornei-me bastante animal.
Cada dia de melhor com a força que me impulsiona e de pior com a lei humana.




Porque amamento um diário? Esperança de posteriormente - pelos olhos de um futuro Leitor - oferecer companhia a este meu tempo, a esta vida sem com quem falar para o lado? Ou apenas para me sentir melhor (diria: mais consolado) menos inútil? Certas condições - tais e tais - levarão uma pessoa a "diarizar": a solidão - o seu desejo ou a sua existência - é obviamente uma delas. O meu maior prazer - mais mesmo que o sexual que não poucas vezes se revela mera função orgânica - é em estar comigo, sentir-me em casa. Em mim há tranquilidade. Um calmo mar. Tão pacífico que chega a impressionar, e busco então uma actividade que me sacuda. Como se a calma me pudesse submergir, tornar invisível, desvanecer ou dissipar. Enfim, nestas alturas sou tão ausente de sensações que perco consistência. E isto vem-me de longe, já me existia em criança, quando, sozinho, ficava  tempos perdidos com coisas de nada. Não ser, sendo. Olhar, apenas. As coisas e nós. E o pensar em reproduzi-las (pintá-las, por exemplo) simplesmente absurdo. Para quê? Mas se neste mesmo mar sucede a menor ondulação, logo surge o conflito e o exterior torna-se problemático. E há vontade de dominá-lo, expressá-lo, transformá-lo. O pensamento é englobante e colonizador. O homem ocidental, habituado a racionalizar, a fazer uso constante do seu pensar, tornou-se um apropriador.
Cansaço!



Leio o diário de Kafka. Sentimentos diversos. Ainda não tinha lido nenhum diário, cujo autor me interessasse tanto. É uma atracção mesmo física, uma simpatia de formas, a quase certeza de que seria possível o entendimento.




Incerteza no ser. Fluidez face aos outros que me leva a fugir-lhes para que não me tomem e possuam. Sou incapaz de dizer não e, no entanto, a recusa existe em mim, atinjo habitualmente o meu objectivo. Mas quanto tempo perdido no entretanto!




Temos construído o nosso eu à custa do planeta.



Terror face à hipótese da morte da mãe. Já lhe desejei o fim devido ao seu enorme egoísmo e sofro por intuir que mais tarde terei remorsos. Mas ao que se me oponha (a esta vontade de me realizar, expandir em ser) não consigo senão desejar a morte, o fim, a saída do meu caminho. E acho isto justo em acordo com as leis da vida, as que regem a sucessão das formas.
Sem culpa.




O telefone avariou-se, pelo que não houve qualquer hipótese de me desinquietarem. Serão calmo, só, no meu quarto, escrevendo e lendo, falando com o gato. Andava com desejos de ter um siamês - são muito meigos, dizem - e numa destas madrugadas encontrei uma siamesa na rua.



Os outros... Os outros... A incapacidade em resistir-lhes a não ser que feche a porta com força.
E porque não?



Encontro com Eduardo que quer escrever e ser "útil", fazer da literatura um "combate". Há nele grandeza. Infelizmente comemos num restaurante péssimo. Na mesma noite encontro com Miguel. Que amuou porque não lhe consagrei mais tempo. Que confusão! Fiz bem quando lá atrás não me importei de ficar só e, cruzando desertos, aprendi a paz em mim.



27/11
É melhor não olhar para baixo. Causa vertigem.



Cada vez mais avaro do meu tempo.
Kafka: o trabalho que ele se dá para conseguir um horário disponível para escrever! Poderia assinar muitas daquelas linhas. Levantar por exemplo às três da manhã para encontrar a casa silenciosa - no meu caso.

Pensamentos idiotas a que não confiro o direito de entrarem aqui.



28 de Novembro
Resigno-me: a literatura é-me a única realidade.
Visita de Miguel. Outrora, algum tempo de separação e logo desejava vê-lo. Hoje quando me visitou e disse "Tive saudades tuas" só fui capaz de apontar o dedo e responder: "comprei ontem aquele quadro". E uma tranquilidade muito grande por ser assim mesmo. Onde levará isto? A ficar só com a escrita? É que nada mais interessa e o resto são sonhos, coisas que imagino, embora, não raro, me prendam na sua teia. Mas logo esvoaço. Fim dos encontros com Vitória. Dormir na sua cama, sentir-lhe a pele macia é, ao dia seguinte, algo que só lembro pelo incómodo da viagem até  sua casa.
Comprei (enfim, foi isso mesmo!) um gato para fazer companhia à gata e também para não sentir tanta vontade de me distrair na rua, levando, em consequência, mais tempo a reatar com a caneta. Confraternizo também com a trepadeira no varandim, cujo crescimento acompanho.

Sem dia marcado, em Nov.
Mal qualquer coisa se desconcentra logo me fujo, toma-me a pressa, o desejo de findar um presente que se exerce, a ansiedade por uma chegada como se prestes a partir. É isto o viver aqui e agora?
Não sinto a solidão. Pelo contrário, embrulho-me na sua espessura como manto fino que, de tanto se afazer ao corpo, advém quente. Não desejo ninguém embora uma companhia não fosse desagradável. Mas não procuro. A ver quanto tempo me mantenho neste solitário acompanhamento.
Kafka teve o condão de me fazer voltar a mim.
Onde a validade do que digo? Na coerência do  sistema.

Não sair, não ir a parte alguma. Não encontrar, não ver nem querer saber. Apenas papel e tinta.
Prazer de chegar a casa e ficar em silêncio. Ser este que se escuta sem ninguém a interpor-se. E deixar-me dizer. Ele que diga tudo e depois descanse.
Ou se mate.

Desenfiado: eis a minha atitude no mundo. Ensaiei vários papéis e enjoei a todos. No entretanto tenho escrito e bastas vezes sem esperança ou fé. As palavras saem, possuem sonoridades e formam isto. Então sinto-me mais calmo porque o tempo foi menos doloroso: estive noutro sítio, num afastamento amargo-delicioso. A vida passou.

Não fiz família, filhos ou coisa alguma. Terei escrito e todavia nem sei se com mestria. Mas os dados foram lançados.
E nenhum gosto, nenhuma vontade fora este pegar na pena. No entretanto saem-me vidas e devaneios, invenções que sequer invento. Expirações incapazes de reter porque nocivas. São-me outros e, no limite, anulo-me. Por fim, se esses outros se anulam ou a atracção do nada os trucida, resto no vazio e em volta é a tortura.
No interior do drama suicida-se o herói e o final desvenda-se.
Aplausos.
Na plateia é voz comum a grandiosidade da cena. Mas ninguém sabe qual ela seja, embora todos tenham a certeza de que são o protagonista.

Resigno-me a ser mas causa alguma confusão. Não me estranha o nevoeiro que Kafka diz sentir quando fala com alguém. Também as minhas opiniões se esfumam se é que chegam a formar-se. Como se não tivessem importância.
Interessa-me a matemática e a escrita. O resto é fingimento. Por vezes tão bem fingido que me convenço.



Trinta e oito anos. A minha vida cifra-se num vazio. Amontoei papéis. Que frio! Por fim, já não sinto, não passo de uma imensa narrativa do nada, na qual o sujeito pouco a pouco se ausentou.




17 de Dezembro
Já me interessou ser um escritor, ainda que medíocre. Neste momento nem isso! Viver e sentir-me bem é única e exclusivamente o objectivo.
Os outros, o mundo, o que se deve fazer e o que compete, ou o que "fica bem", é-me tão indiferente que, se fosse possível visualizar esta indiferença, certamente causaria escândalo.



19 de Dezembro
Não apetece fechar as portas e esconder-me do Sol que, em fundo azul limpo, se derrama magnífico lá fora. Impossível. Não admira que nós, portugueses, tenhamos em tão pouco apreço o trabalho. Para outros povos, noutros climas, o cerrar das janelas, o baixar das persianas alivia da cinzetez  do céu opaco dias a fio. Mas para as gentes do Sul, fechar-se em casa é contra-natura. Aqui o trabalho, o esforço, são ainda um castigo divino. E este próprio texto construo-a à pressa, desejoso de Sol, de aspirar lá fora a atmosfera límpida de um dia de Dezembro.

28 de Dezembro
A minha vida tem sido a luta pelo que não me foi dado e, nesta medida, a procura da dificuldade, do esforço. Porquê não sei. Necessidade de acção? De guerra? O cristianismo transmitido pela mãe? A opção da minha geração, a atracção pela vida difícil dos deserdados, dos "proletários". Enfim, revejo tudo isto face à hipótese de percorrer Portugal para escrever um  livro sobre o país. Mas que me leva ainda a querer deixar a relativa segurança?  Gosto pela aventura? Uma vida faz-se na teima pela nossa via? Ou constrói-se utilizando os carris à sua disposição? Pela primeira vez apetece experimentar onde eles levam. 



Sem dia marcado em Dezembro
Perdi-me no percurso e tento reencontrar o caminho. No entanto não estou certo disto, embora haja sinais suspeitos. Por exemplo o estar neste momento numa casa onde não devo dar um grito apenas por receio do que digam. Tenho de reatar com uma altura em que fui mais livre. E recomeçar daí.



A caneta em riste e no entanto nada a anotar. Hoje almocei com Pedro que me disse:
"Relaciono-me com pessoas porque tenho uma teoria sobre a afectividade e quero experimentá-la."
Em mim, o meu interesse pelos outros é exclusivamente literário.



Sem dia nem mês marcados
Entretemos a vida com pequenas coisas quando ela não se entretém com coisa alguma.


Impossível, sempre o impossível, que o realizável sabe a pouco.


A vida cumpre-se apesar de mim.


Só um caminho: para a frente.




















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