sábado, 6 de novembro de 2010

1979

Para ocupar o tempo com algo diferente do chuto inscrevi-me num curso da Gulbenkian para actores. (…) Um vício só passa se substituído por outro?







     11 de Janeiro
Como vou? Cada vez mais inseguro, como se a experiência me desse uma maior noção da relatividade. Ou como se fosse sempre o menino a quem dizem “olha o abismo” quando já ele já lá tombou. Porque não acordo? Terei que seguir a norma do “não confiar nos outros”? Preferiria não colocar a questão. Mas como ignorá-la, vivendo aqui e agora? Claro: se nada esperar não terei a mais pequena desilusão. Mas não ter esperança? Nem numa ideia? Um projecto? E acredito na humanidade? Quero-me racionalista e lúcido para colocar a questão do seguinte modo: acredite ou não numa sociedade mais justa, o importante é crê-lo, pois se confiar a acção terá mais êxito.





23 de Janeiro
Chegado ao fim. Cansaço, vontade de distrair, alienar mesmo, tristeza por um mundo que decepciona e - pior ainda – pelo facto de os mais próximos decepcionarem também. Afinal, só o negócio subsiste, o "toma lá-dá cá"!
Todavia escrever já significa alguma coisa, ou seja, é possível encarar as coisas doutra maneira e, inclusive, posso divertir-me.



30 de Janeiro
Tornei-me como S. Tomé: apalpo para crer.
(Escrevo a custo, pois não durmo profundamente há alguns dias)
Grande instabilidade psíquica.




31 de Janeiro
Acordo ao fim da tarde pensando ser de manhã.
Mais perto do indivíduo que já me conheci: frio, pesando os prós e os contras, não indo em conversas nem amores. Provavelmente não terei “coração” para usar certa terminologia. A verdade, porém, é que nesta estrutura não há lugar para a paixão: os poderosos perderiam a fortuna e os pobres nunca a obteriam.





20 de Fevereiro
Fingirei de estudante?
Retomo a atitude de turista: tanto faz aqui como noutro lado.




6 de Março
Irrito-me com facilidade e o pensamento paira-me no vácuo, assente num antecedente que esqueço. Só me sinto bem a dormir. A companhia dos outros é-me insuportável e. ao cabo de cinco minutos, fujo-lhes. Oxalá isto melhore.





8 de Março
Mais repousado. Passo os dias a dormir. Muito lasso para escrever. Mas desejo retomar a escrita tal qual a fazia quando estudava no liceu, bem cedo de manhãzinha, pelo romper da aurora.
Assegurei os próximos meses com uma bolsa de estudo.





10 de Março
Uma confusão toda aparente que me sai da gaveta: escrevo dois livros simultaneamente e, pelo meio, intercalei já algumas peças. E se editasse qualquer coisa? Mas logo advém o desejo contrário, o de não provocar esse acontecimento, capital todavia na vida de um escriba. "Capital"? Mas capital porquê? O que na realidade interessa é o acto da escrita e a ele me consagro. O resto, bom o resto logo se verá. Ou não verei, que importa?




26 de Março
Readquire-se a calma por via de perspectivar o futuro.
Se olhar para trás vejo que ocupei a maior parte do tempo a prosseguir o caminho que projectei bem cedo, lutando por pô-lo em prática, contra todas as sugestões de casamentos/negócios/empregos, e mais o quê!
Oxalá a bolsa de estudo me traga tranquilidade económica para escrever, pois só assim justifico a vida. Passar de ano para assegurar a bolsa… Se, entretanto, não suceder qualquer outra coisa, como arranjar trabalho num barco e andar por ai à vela...
Amanhã radiografam-me os pulmões para tirar de dúvidas.




28 de Março
Quero praticar natação, tenho feito ginástica, tomado banhos frios, fodido e até parece que constituí um lar!



Sono.
E no entanto ao chegar à cama não durmo, volto aos tempos em que saboreio a vigília, cada minuto desperto como se o tempo inconsciente fosse a morte prematura.



De manhã fiz amor, à tarde também e com pessoas diferentes. Não é que seja especialmente dotado para este tipo de coisas mas fazem parte da vida e, acima de tudo, não desejo sair da normalidade.




Madrugada, 30 de Março
Dia preenchido, entre a universidade e a casa. Na primeira inscrevendo-me e, na segunda, retomando “Caldas”.
À porta um aviso “Não estou”.
Oxalá desmotive os importunos.
Talvez seja reflexo condicionado mas mal escrevo neste diário, logo bocejo. Porque não fazê-lo pela manhã e intitulá-lo “invenção dos dias”?
Quando o distanciamento se perde na promiscuidade eu-objecto uma outra lucidez nasce.



A Arte dá acesso a uma vida mais cósmica e só assim revoluciona.



Sem dia marcado, em Março
Ontem quis ir de todo. Foi ontem?
Nada me anima, talvez desista de encontrar o que necessito e, por fim, não aceito: a ternura, uma imensa ternura que me tem levado a amar a mulher acima de todas as coisas.
Há mesmo alturas em que não sei como encarar as pessoas.
Isto é ruim, não imaginava assim, não tem piada, é o "salve-se quem puder!" e, pela minha parte, gostaria de não ser mau. Mas para não sê-lo há que fazer tábua rasa de qualquer juízo de valor.
Perco-me cada vez mais, ninguém o sabe ou eu o confesso, e devo resistir até que um dia a morte me leve. Mas quem me manda? Os que disto gostam que cá continuem!



30 de Maio
Aguentar.



Sem dia marcado, em Julho
Uma irritação capaz de deflagrar em Hiroximas à menor brisa.
Receio tornar-me uma pessoa irritante e há que analisar isto, antes que o problema se avolume. A consequência final será a auto-destruição acompanhada de um arraial.




Licínio foi-se. No fundo provoquei a separação. Mas que fazer quando a relação era já só dor?



Apresento sinais de cansaço desde há bastante tempo, mais precisamente a partir de 77, altura em que na casa se aglomerou uma data de gente. A acrescentar à pressão dos vizinhos – comandados pelo abutre do esquerdo – que, aproveitando a nossa ingenuidade e o convite do Estado – recém-salvo da ruína e apelando ferozmente à restauração do pater-famílias, à repressão do diferente e do realmente novo – não poucas vezes nos enegreceram os dias chamando a polícia por tudo e por nada.




Ressaca da separação. Não se convive ano e meio sem culpa.



Das duas uma: ou à beira de catástrofe ou de salto direcção a...? (As duas hipóteses opõem-se?)
A sensação de preparar os ornamentos para um funeral, não tanto o meu mas o de muita coisa.   Impossibilidade de ver claro.

Gosto de:
- qualquer corpo até não gostar de nenhum. Se o tirar as calças dá muito trabalho, prefiro não foder. Nascido nu, cobrir-me é um insulto.
- Silêncio, sobretudo na companhia de outrem.
- Passar despercebido mas não demasiado. Isto é: aprecio a “anoninez”
- Viver sem desconfiar.
- Saber o que quero.
- Rir.



3 de Agosto
Aproximam-se os anos oitenta.
A certa altura propus-me cá ficar até ao seu início. Chega o fim? Construí uma casa... ou não?
Não sei amar.
Provavelmente suicidar-me-ei.
Viver, obriga a que se goste do poder, pois sem poder não se é. Mas o benefício pelo "bom comportamento" não vale o sacrifício.
Felizmente nem sou! (Digo-o para camuflar as minhas perturbações anti-sociais?)



9 de Agosto
Não me devo desprezar, pois a humanidade passa também por mim. Respeitá-la na minha pessoa para a aceitar nos outros. Qual a função do intelectual? Pôr o pensamento em prática. Que necessita o pensar? A disponibilidade total, até para pensar o que se não gosta de pensar.
Isto é um homem, além uma pedra.



10 de Agosto
Um sono bem dormido proporciona-me melhor disposição.
Saiu uma brochura com poemas meus, da minha algibeira, inclusive. Meia dúzia de páginas e já me pergunto para que as editei? Ao fim terei uma resposta?
Período difícil: calor e ausência de um mínimo de dinheiro, inclusive para café. Há quanto tempo não vou ao cinema? Gosto de estar em casa, sem ver pessoas, mas esta situação levada ao extremo não beneficia.
Possuo um bilhete de comboio para Paris e ainda não fui. O tempo não ajuda? Agosto difícil, uma espécie de parto para o Outono. altura em que, habitualmente, readquiro o gosto por Isto.



24 de Agosto
No Rossio, nas bancadas dos jornais, vendem uma mágoa minha, o tal caderno que editei. Como se, finalmente, tirasse a prova dos nove à minha parvoíce. Enfim, a dos outros torna a minha despercebida.
Dor de cabeça e enjoo!
Vontade de berrar “Deixem-me!”
Fase mais madura.
Olhar o rio… andar nas ruas sem encontrar ninguém… Apetece desvirginar locais como sucedia aos quinze anos. Mas cresci, não passo despercebido – nessa altura também não mas, pelo menos, tinha essa ilusão -  e sinto-me gato escondido de rabo de fora.
Isto complica-se mas não quero retroceder.
Sozinho, pois fui o único escritor do meu grupo e adeus espelhos que me reflictam.
A paixão torna-se serôdia e o amor uma forma de vida a dois. No entanto, não é tão chato quanto pareceria e, por momentos, até me divirto, sobretudo quando os outros me levam a sério, enquanto eu faço as coisas apenas para lhes ver o efeito.
Mas efeitos trazem consequências e oxalá a maré não me engula.
Céptico.
Descri do amor? Ou a separação de Licínio foi tão marcante que me vacinei contra qualquer solidão? Na verdade, mais só do que o que estive, só no mar alto.
Fins de tardes exangues e esta mansarda já assistiu á minha morte várias vezes.
Já não sinto.
As coisas existem, os dias passam e não tarda a morte, comigo gloriosamente morto.
Fanfarronada!
Com este silencioso verniz me engano!
Merda!
Serei isto? Não me reconheço. A separação de Licínio deixou-me outro. Vivi momentos de pesadelo e não foram sonhos. Gostaria de esquecer. Mas se esquecesse, estaria agora mais vulnerável. Licínio foi a prova para a minha frieza amorosa. Todavia algo subsiste e descubro agora na Alda uma boa companheira.
Basta!




26 de Agosto
Provavelmente desligar-me-ei de Alda. Não me agrada o correr das coisas. O dinheiro separa-nos? A minha capacidade de convidar continua nula. No entanto algo soa errado. Tenho a certeza que Alda mente. Cada dia mais cioso de mim, de não me trair, sinto todavia que me consomem. Ora para consumo existem as mercadorias. Aliás, já basta vender-me em cadernos!
Impõe-se nova companhia.



6 de Setembro
Relação com Alda cada vez mais difícil. A vida ganha-me consistência e não quero esvaí-la em problemas de nada.
(Perto das quatro da madrugada)
Aprendo mais com os falsos amigos do que com os outros. Estes... Que se passa com estes? Afinal a história de sempre: não tenho amigos mas amores. E como de amores me escaldo...
Vazio no estômago.





8 de Setembro
Festa do partido comunista. Que não teria igual importância se o país não contasse apenas uns tantos quilómetros quadrados e não recém-saísse da ditadura.
Ultimamente passei várias provas:
- O bronzeamento: toda a gente se torra e resisti.
- As férias ou saída em Agosto: tenho na gaveta um bilhete válido para Paris e ainda não arredei pé.
- Festa do PC: toda a gente lá vai! – Que vou lá fazer?




12 de Setembro
Ou jogo bem ou perco. E no entanto apenas uma vaga ideia do que faça. Mas o que se coloca é aguentar-me como escritor ou “escritor” tornar-se uma segunda profissão.




17 de Setembro
Jamais esquecerei a imagem que me desfez em incensos de ternura: um adolescente ardina, aí pelos treze anos, guardião, no Rossio, de uma banca de jornais, copiava para um canhenho de linhas um poema dos meus "Cantares"! Impossível as palavras chegarem às sensações. Foi tão belo, que eu próprio, olhando-o sem que ele me visse, me senti parte na cena. Mas vender-me nem sempre é risonho. Macabro encontro entre a Arte e o Lucro. E da sua associação depende em parte o meu futuro! A consciência de nunca haver traído, isto é, por razões de mercado, ter descido do nível artístico que me exijo.
Por incompetência, certamente.




20 de Setembro
Alheio.
O tempo, a edição, a venda... À parte neste diário pouco escrevo. Mas hoje já fui mais meu: distribui alguns "Cantares" por quiosques de Alfama e o resto foi paisagem, doce devaneio e, mesmo, sono.
Adoro dormir.
Senão vejamos. Que se faz quando se não dorme? Para a generalidade das pessoas o sono recupera-as do esforço gasto no que as aliena, libertando-as de novo para trabalhos que não sentem e para os quais a domesticação as preparou. Mas o meu dormir - tantas vezes de estômago mal cheio – que é? Não um refúgio mas o sono para sonhar, o reencontro, a realização que, já acordado, quase obtenho e a dormir menos se constrange. Dormindo afasto Isto e eis porque raramente tenho pesadelos. Aliás eles só surgem se me preocupo com o dia a dia, com a burocracia que aliena e ensopa a vida. Mas, na generalidade, também como Anaïs Nin, digo: “as minhas noites são mais belas que os vossos dias.”
É tão sensual escrever! Dir-se-ia amor puro.
Não fora a visão do adolescente copiando-me os poemas e bem pouco haveria de agradável para recordar nesta decisão de me tornar público.





24 de Setembro
De novo a escuridão e nem o gizar do lápis alcança luz visível.



25 de Setembro
Este mês (que me meti a editar = dinheiro = prejuízos = lucros) ando com os nervos à flor da cútis como se solitário florido.



Sem dia marcado, em Setembro
Nada do que escrevo é gratuito porque, pelo menos, orientou uma vida.



Sensação de capaz de tudo. Em relação a isso faço pouco.



Luís Pacheco disse numa entrevista que um editor "com olhinhos" me editaria.
Haverá?




Excita-me o movimento que, de novo, imprimo à vida. Mas só quando paro – como agora – o noto. De resto é cansaço, vazia sensação de corrida para nada. Por que me apresso? Para mais consumo? Subir na consideração de quem nunca me importou? Por mais que pense só vejo uma razão na corrida: perceber-lhe o efeito. Aprendiz de feiticeiro? A minha busca terá então como resultado a autodestruição. Mas, ciente do perigo, e porque também me quero ver à luz do efeito “envelhecimento”, ousarei atingi-lo. Ou estarei a tornar-me consumista? A simplicidade mantém-se dificilmente num meio que a contraria.
Resiste-se?




17 de Outubro
Denso.
Como se bicho-da-seda construindo há muito o casulo que só agora consciencializa.
À beira dos trinta anos, vejo que a minha geração se fez adulta na guerra ou no exílio.
Transferência de Letras para “Educação Em Arte”  depois do chumbo na prova oral da minha candidatura a Cinema, chumbo que atribuo ao meu confessado gosto por Manoel de Oliveira.
Comentário azedo do lente:
- É um místico!
E então?
De qualquer modo enriqueço a minha colecção de facs: vou na quarta, se não contar o curso de Dinamarquês na de Odense!



25 de Outubro
O chicote dos dias.
Esgotado. E todavia nem atingi a meia duração. A consciência de que o meu mal, esta chatice ou desinteresse, não me são exclusivos mas comuns a um geração que, vitoriosa nas posições assumidas, só encontra bolor por limpar, não sendo ainda a altura de deitar fora o mobiliário!
Longe dos meus desejos – eis como me sinto.
E durmo à falta de escrever.
O sexo também entedia.



28 (?) de Outubro
Mal.
Vontade de esqueicarar tudo e escrevo para não estoirar, para aguentar o melhor que posso até... até... até... o quê?



Odeio Isto porque obriga à perpétua mentira enquanto pede honestidade.



28 de Novembro
A sequer chatice, a barrenta continuidade do encher/vazar encontrando motivos nem mesmo grandiloquentes, o descer Isto e ver como é, sem rosas nem prateados, apenas o claro/escuro da foto desfocada, a carência de um incêndio que ateie as individualidades e faça do mundo algo mais que uma soma de parcelas idênticas; difícil a bruma das multidão avessa, dos seus gritos ocos e todavia uníssonos.




Constipado de uma constipação que não passa, embora de vez em quando me pense curado.
E espirro vezes sem conta na noite igualmente contínua, interminável de escuridão.




Sem dia marcado, em Novembro
Chateado.
Quero ter um gato, dois, quinze.
Gosto do que leio. Fala das grandes aventuras. A grande aventura do viver, do relacionar-se.
Apetece mar.
Desaparecer.
"Regressar limpo" – como diz Nídia. Esta noite sonhei com ela. Havia qualquer coisa de estranho no sonho. Desapareceu o cão que trouxe da rua. Mas ele quis ir, vi-lhe o olhar contente de liberdade. Nunca seria um bibelot. Engordaria. Repousou cá em casa como tantos outros incluindo humanos. Sem nada pedir em troca.
O mais difícil, quando muito nos matou, é renascer na nossa especificidade. Isto é, não ressuscitarmos igual a qualquer outro.




Oásis ou já mar?
Dobrei o Bojador?


O Leitão teve uma apoplexia, a Regina não se tem de pé, o Celestino… O Vital... Mais os que foram de over-dose! Eh lá! Estão a ir todos! A morte, a grande, a única, a universal, a que nos amadurece quando nos fazemos seus cúmplices. A prova do mundo, a única capaz de parar tudo, de estarrecer.
A Morte.
Eia!


(No café “Nicola”)
Os fumos dos cafés, estes, os outros, todos se parecem, igualam a luminosidade de uma câmara de gás.
O empregado, dentes saídos, a minha escrita nervosa, um cliente que deita abaixo o cálice...
Que fazer?
Que fazer da vida que corre viscosa?
Hoje sonhei.
Sonhei de manhã acordado e sonhei, ainda, a dormir.
Sonhei.
Como resistir à usura se não fora o sonho?




Entardecer desvairado e aparentemente sereno, ou desesperado, nesta sala onde as vozes, rareando, cedem o lugar ao nada, ao absurdo do lugar-comum.
Aqui, nesta sala, poiso das aves sem asas, a sua queda arrefece os lugares dos fantasmas arrependidos de nascer.
Só.
O sabor lúcido da diferença ou apenas o terreno esmaecido de tanto parto desfeito?
Não.
Automaticamente carrego no chape-chape dos fonemas e, emagrecendo no esfiapar das linhas, atinjo alturas negras de pudor, nuvens cegas de sol.
Como se já não houvera Cabo das Tormentas.




Sem dia marcado, em Dezembro
Insone, madrugada cedo, Inverno
Quase nos trinta.
Os vinte e nove entediam: nem carne nem peixe.



Sem dia ou mês
Não muito calmo (a lembrança do chuto ainda sobressalta)
Cinco anos desde que cheguei a Portugal com uma ideia: editar.
Afinal...




Vivo por debaixo.
Entro nos locais públicos pelas portas de trás, peço as coisas em voz baixa, vivo numa casa de tectos baixos, subo as escadas, como se para baixo, passeio-me por ruas da "baixa", respiro, com receio de acordar os outros, de peito baixo, visto propositadamente de forma baixa e conheço gentes baixas que, por sua vez, vivem em quartos de renda igualmente baixa.
(O olhar é a única coisa que me vem do alto)



Ou isto melhora ou... mas que alternativa?
E como não se possui o que se escolheu, desleixa-se o que se tem.
Apesar de tudo, andou-se hoje a colocar os vidros nas janelas o que não impede que no sítio onde durmo chova.
Sensações... sensações... sensações...



Confissões
Vivo numa mansarda, alta de seis andares, na baixa pombalina.
Tenho por vizinhos gente duas gerações mais velha e a incompreensão é absoluta. Dizem-se os bons-dias mas épocas há de fala impossível. Não consigo mentir e detesto a hipocrisia. Por esta razão perco empregos e, ultimamente, consegui uma bolsa de estudo. Tenho-a há três anos, este o último em que a usufruirei. Pensar-se-á que estou prestes a alcançar o diploma final... Mentira. Em vez de prosseguir no mesmo curso, fui anualmente mudando. As razões devem-se a não achar interesse nas matérias, à dificuldade em adaptar-me a um determinado estudo ou, simplesmente, ao cansaço. Enfim, a nada, em especial, ou a tudo. Como tenho tendências hipocondríacas nunca sei se acredite, ou não, nos meus sintomas. Em todo o caso tenho fome de silêncio, e delicio-me quando na rua – o que é raro – não se ouve barulho algum ou nenhuma criança grita no prédio.
Nunca quis ter filhos (salvo de uma vez em que pedi a Tina que não abortasse e ela não aceitou) mas gosto de conversar com as crianças, que são quem melhor entendo. Na minha família há muitas crianças mas creio que as aconselham a não se aproximarem de mim. Sinto-me só e quando a solidão é asfixiante, ou tomo um comprimido, ou vou a um local isolado, e berro à vontade, sem perigo de que me enviem para o manicómio. Já casei várias vezes. Agora prefiro o celibatarismo. Mas ainda sucede querer partilhar a vida com a primeira pessoa que encontro no caminho. Aprendi que não se pode confiar em toda a gente da vez em que abri a casa a um fulano e ele se pirou com a aparelhagem! Tenho um pequeno rádio-gravador e saudades do que outrora possuía. Os meus pais ainda são vivos ou pelo menos o pai era-o há alguns dias, antes da trombose. A mãe foi uma bela mulher e faz tudo por continuar a sê-lo, nisso empregando o seu tempo. Não alimento esperanças de chegar a velho: tenho perdido noites por brincadeira ou apenas para ver o efeito e, a certa altura, injectava-me com frequência. O meu corpo emagreceu, mirrou e recupero lentamente. Mas como o dinheiro não chega para a alimentação que gostaria, aceito o convite deste ou daquele e vou também comer a casa da mãe. Não sei, pois, o que seja comer livremente mas suponho-me um bom garfo. Pela mesma razão – falta de dinheiro –não saio com quem me apetece e penso que o fracasso das minhas relações afectivas não lhe é alheio. “Amor e uma cabana” é muito difícil ou mesmo impossível numa capital.
Para ajudar à manutenção da casa acedi em alojar um casal com uma criança.
Gosto de escrever em segredo, sem ruídos em volta, com uma letra pequenina que, por fim, ganha todo o papel, dando uma configuração diferente ao espaço outrora branco. A qualidade das folhas em que escrevo é boa e devo-as ao Sr. Lino que, sabendo do meu gosto, oferece-me com regularidade uma caixa cheia delas, retiradas de restos do banco onde trabalha.
O papel está caríssimo. 
Gostava de escrever com uma boa caneta mas faço-o a lapiseira.
A máquina de escrever está empenhada. Assim como a de barbear, o condicionador de ar e as duas colunas que o ladrão da aparelhagem não levou. A televisão continua em casa.
Acerca do que escrevo não sei que diga.
Tenho feito peças para encenar, volumes de prosa, outros com poesia. Reuni doze poemas e fiz uma edição de autor, pequenina, muito pequenina, mais para não morrer sem primeiro ter visto uma coisa minha em forma de livro. Ficou com o aspecto de uma brochura mas não podia gastar muito na edição. Mesmo assim, deu para ter uma ideia do que seja o lançamento de um livro. E houve a tarde em que descobri o ardina adolescente copiando um poema num caderno de duas linhas, branco, muito branco. Também editei uma peça de teatro (a mais curta que tenho) mas nunca a distribuí, guardo todos os exemplares empilhados em cima de um banco. Porquê não sei. E tão pouco apetece falar disto.




Para ocupar o tempo com algo diferente do chuto inscrevi-me num curso da Gulbenkian para actores. Éramos cerca de trezentos e fiquei entre os quinze admitidos!
Um vício só passa se substituído por outro?



Sento-me à secretária (minha, do outro que me subsiste, do outro que recriei?) e faço planos. Eu isto, eu aquilo...



Viver desprendidamente é colocar entre as coisas e nós um amortecedor. Depois, já só se sente por correspondência.



"Escreves para a gaveta!"
Achei a expressão pertinente mas nunca me dera conta.
Não receio a fome.
A morte venci-a e sigo-a feliz.



Pela primeira vez sinto o valor da idade.

As regras de gentileza estão ao alcance de quem não blasfema a sua sorte a cada manhã que acorda.



Impossível viver sob o signo de alguém. Gosto de viajar, percorrer caminhos, sentar-me num bar desconhecido, andar só e sê-lo. Não sou de companhia e a nada desejo com cega força senão a mim mesmo.



Escrever é-me o ofício e quando não o pratico emporcalho-me nas coisas mais idiotas, desde o imaginar crimes perfeitos para logo descobrir-lhes deficiências.
A lassidão toma-me e as decisões são andorinhas que não alcanço, sempre no mar a voarem. De vez em quando lá pousa uma. Ultimamente, por exemplo, decidi levar à cena uma peça minha.
Durmo.




A paixão ou morre ou leva ao desespero.



Ter todo o tempo, não haver onde passá-lo e, no entanto, durar, ter de durar. Viver sem ilusões,  na precariedade dos sentimentos. Mas como estes nos fazem agir, não são tão precários como isso.
Terror de tudo, vontade de dormir só dominada desde que no cerne da luta: o meu espírito necessita  de ocupação, não se entrega a si mesmo. E sobretudo quer distinguir-se. Sempre mais e mais.




A felicidade reside no despojamento.
Que sinto?
Carro em marcha depois de longa paragem, uno finalmente projecto e realidade.
O amor entre dois seres idênticos é obra de arte. E sinto-me mais humano, mais antinatural, lembrando Gauguin: “A arte é o homem somado à natureza”.
Cada vez mais pensante e destruidor de quantos lugares-comuns os jornais apregoam.
Abomino a vulgaridade.
A simplicidade, sim, mas a que se alcança pelo  complexo.
Sinto tudo.




Viver até ao fim esta ridicularia. E mesmo que me suicide a questão não acaba. A partir do momento em que se nasce, condenamo-nos à história.
A tragédia da consciência que descobre a sua perecibilidade.
Que raio de ser este que não aceita, nem por um momento, deixar de se expressar? Que só na impossibilidade do sentimento sente, na impotência se experimenta? E cá estou de caneta deslizando, eu que jurara não mais libertar palavra, não mais, em toda a vida, dar-me a este movimento pleno de tudo e conducente, afinal, ao nada, não mais me abandonar a devaneios de me querer avesso, vivendo a contradição, que fere como aço rubro, de desejar o máximo calamento e nunca conseguir o silêncio.
Tirem-me as notícias, escondam o papel e também o lápis, que um decreto me interdite a visão e mesmo assim continuarei dizendo da incapacidade da expressão.
A minha vida é um passatempo fútil na busca do que só na morte encontrarei: a harmonia do pó.
Fingir que se não é louco é retrógrado. A diferença deve vir ao de cima para ser subversiva, contagiar os robots.
A verdade desarma porque a vergonha do que é, desaparece. O indivíduo assume-se, não se esconde, e utiliza em seu favor as energias outrora encaminhadas para a simulação.
O homem que reprime o desejo oprime os outros. E estes retribuem-lhe com mais repressão: eis a sociedade.
Passar despercebido é difícil quando se tem "génio"
Portugal: tudo aqui é perro, impossível e longo. País imperfeitamente aburguesado e já não camponês.
Desinteressa-me o curso de actuação, quero apenas a escrita. Mas aquilo obriga-me a não chutar e... Enfim, apanhado por modos de vida alheios. Repor as coisas não é fácil



"Ter" é uma prisão. A liberdade reside no usufruto.



Olho em redor. A máquina. O rosto sobre as mãos e os cotovelos na mesa. Desalento? Efeito do tempo? Recordações que o teclado evoca? Contar a vida? Para saber por que se morre?
A rotina sufoca. Já não sei onde buscar originalidade.
Que algo aconteça!




Miguel,
perdi a tal ponto hábitos de consumo que te pareço miserável? Mas a verdade é esta: quanto mais neste lado das coisas, maior a resistência do que, ainda há pouco, vivia no outro. E, sentindo já nojo por uma realidade que me desgosta, desejo apenas papel, lápis e alguma comida.
O resto não me importa.
 
 
 
O médico no hospital dos cancros:
- Mas porque fez isso? (Refere-se ao furo na orelha que, infectado, levou à consulta)
Olho-o e não respondo.
Implicara tanta coisa: o encontro da "alma gémea", o sacrifício do corpo em sua glória, a partilha de um mesmo símbolo... E tudo em segredo.
Como dizê-lo na consulta da senha tantas?



Sem dia nem mês marcados
Saio de casa, o sol dói, e vou esplanar para uma espelunca que um tipo de olhinhos plantou à beira rio, na caça de moscas como eu. Todavia não lhe dou grande rendimento, pois não vou além da bica e de um croissant. Depois, ponho-me a mirar a paisagem e ainda um cu doirado que passa e deslumbra quem o vê. Antes pensara chegar ainda a tempo a casa do José, cravar-lhe um almoço mas, com o acordar tarde, o tempo passou e ainda não almocei.
Regresso a casa com vontade – será do calor? – de enfiar o caralho em qualquer parte. Mas não há ninguém à vista e não estou para a trabalheira de ir para o engate. Pacientemente, como qualquer dona de casa sem dinheiro para pagar empregada, ponho então arroz ao lume. Não tarda meter-me-ei no casarão do teatro e, no entanto, detesto exibições. O trabalho de actor parece-me sempre ridículo e falta-me a paciência para os treinos. (O arroz cheira a queimado e não atino com a razão. Tanto pior!)
Ontem à noite já estava enfronhado a ler quando, da rua, berraram o meu nome. (Nesta rua sou o único por quem chamam. O resto é gente respeitável) Felizmente (ou não) fiz de conta que não estava e a voz foi embora. Por vezes a paciência só chega para aturar uma pessoa de cada vez e aturo-me a mim. Desloco de novo a mesa onde escrevo para que a claridade caia sobre o papel. Já mudei vezes sem conta a posição dos móveis deste buraco. Depois de tantas mudanças, só falta a minha. Partilho a casa com um bêbado que trabalha numa cervejaria. Ou com um empregado de cervejaria que se embebeda todos os dias. Mas aturar bêbados, só bêbado também. Aliás, nem o aturo, pois raro nos vemos e os contactos limitam-se aos cumprimentos da praxe no corredor.
O que chateia nesta gaita de trabalhar em teatro é não poder dar cabo do canastro à vontade. Quantos excessos já não perdi! Uma tarde fui para o ensaio chutado e foi o cabo das tormentas, para fazer de conta que nada se passava. O meu contentamento era sobre-humano. Enfim, agora embebedo-me apenas ao fim de semana, ou seja, cada vez me embriago menos e não sei ao certo porquê. Devo pensar no assunto, pois o mundo continua o mesmo. Miguel diz que o alcóol lhe tira a angústia. O desgraçado volta não volta caminha para o psiquiatra para que este o "salve". E o homem lá lhe receita umas injecções que, não só o "curam", como o põem num estado de alegre imbecilidade. Fiz-lhe notar que as injecções o tornavam pateta e ele retrucou-me "se assim for, os pobres de espírito devem ser mesmo felizes".
Não insisti.
O livro que estou a ler traz uma gaja nua na capa e cada vez que a olho sinto ganas de passar a pila pela fotografia. Aliás, já que estou em casa levo a ideia à prática e concentro a atenção não tanto nas mamas como no buraco do umbigo, pequeno e redondinho.
Sou uma pessoa civilizada.
O contraponto destes malabarismos é a vontade que, depois, sobrevém de uma boa refeição. E lá dou comigo a ir á casa da vizinha – por sinal minha mãe - que faz umas sopas de uma pessoa se vir. Infelizmente a mãe também se sente na obrigação de velar pelo meu bom comportamento, ou reputação, e tal não é nada fácil, pois recebo em casa a escória toda da cidade.
Lúcia telefona-me e a sua voz rouba-me a um pesadelo. Que sim, mais isto e aquilo e o todo resulta que vou a toque de caixa para um encontro com ela e o Miguel. As mulheres fazem-me isto: tiram-me da letargia. O encontro é em casa dos pais do Miguel (que “naturalmente” lá não estão) e tomo o comboio no Rossio, para descer três estações adiante. A carruagem vai mais cheia do que habitualmente, pois os revisores estão em greve. Ou seja, muita da gente que me acompanha ficaria em casa se a viagem fosse paga. Quando serão os transportes gratuitos?
À saída do comboio encontro o Miguel que me informa que deixou a Lúcia em casa, em “decomposição alcoólica” para vir à rua comprar bebidas. Por fim, com os três já sentados nos sofás da sala do Miguel – ou dos pais, sempre ausentes - peroramos sobre a informação e o nuclear, isto é, a conversa  desliza como se fôramos bonecos de corda cheia. Lúcia ainda não lembrou o filho falecido e, inquieto, senão ansioso, aguardo o momento da sua evocação. (Lúcia fala sempre do miúdo como se ele estivera presente e, pelo meio, retira da carteira fotos do gaiato e olha-as pela enésima vez, acabando a cena num choro convulsivo.) O tempo passa – não me posso alargar na bebida por causa do teatro – e, esgotadas as garrafas, transportamo-nos ainda para o bar mais próximo. E eis a hecatombe: Lúcia mostra as fotos do miúdo (desta vez são apenas duas (outrora eram três mas, ou ela perdeu uma, ou alguém lha atirou ao lixo) e repete incessantemente: “Ora vê aqui…” “Agora vê esta”. (Lúcia tanto clama que há-de reencontrar o filho no além como, no mais puro materialismo, confessa que depois da morte, nicles!) Mas eu, se não quero outro no meu lugar, devo regressar ao teatro, coisa que, enfim, até nem me seria penoso, caso pudesse voltar à minha vida de excessos!
Assim…
De regresso ao Rossio, penso no absurdo de tudo isto!

















































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