sexta-feira, 5 de novembro de 2010

1985






Alheio como as pedras








Um de Janeiro
Transformamo-nos em espectadores e actores, assistindo ao espectáculo da nossa intimidade. Não a que temos com os demais, difícil já devido ao medo e à concorrência, mas a que usamos connosco próprios, levando-nos a sentir que representamos um papel, quase sempre com dificuldade e tensão.



23 de Janeiro
A minha vida é o produto de um idealismo adolescente que, oxalá, não venha a  desmentir.



Carta do Brasil a dizer que representam textos meus. À mesa de trabalho deixei de estar tão só. Agora devo esquecer esta companhia.



Paris, 20 de Junho
Aprovação em latim e inscrição em mais cadeiras do curso. Recomeçarei em Setembro, já de todo aqui...



Lisboa, 27 de Julho
Dói a morte, o saber que as coisas continuam mas eu acabo (que me consola a possibilidade de um depois, se deste agora sinto já saudades?) que o meu sentimento de harmonia entre mim e o Resto será lixo e esta plenitude de observar e ordenar um dia se extinguirá. Não, não me resigno, e nenhuma transcendência ou religião me conforta da relatividade do viver. Sim, olhando em redor e sentindo o vento no rosto, que me revolve e exalta, abarca-me o desgosto pelo dia em que jazerei no caixão.



Sem dia marcado, em Agosto
Dia sem solidão nem silêncio mas no qual se me aclaram as ideias, apesar do espaço que me confunde.



No comboio para Paris, sem dia marcado, em Agosto
Triste por deixar o meu país, abandonar esta gente que me fez e que sou, para procurar noutro lado o que neste, apesar da luta, não me é dado.
Em Portugal, aqui e agora, ou se governa ou se não existe.



Paris, 26 de Setembro
Renasci.
Excitação tão grande que, embora a aparência se mantenha calma, não alcanço o sono. Tudo me interessa e olho com horror a hipótese de um emprego só para ganhar dinheiro. Tal propósito parece contra-natura.



Paris, vinte e oito de Setembro
Percebo mal o que se passa.
Esta manhã escrevi uma carta à mãe pedindo-lhe perdão do meu comportamento, das discussões em que com ela me embrenhei. Porque me senti muito só e não pude conversar. Ainda sem emprego e o dinheiro gasta-se.



Esforço-me por não dormir. Cansaço? Desmotivação? Período sem escrita e por isso morto? Vivo por hibernações? Desisto de construir uma teoria sobre mim. As coisas talvez se repitam mas quando mais uma vez acontecem, esqueci-as no entretanto e tudo é outra vez novo. Rodeio-me de livros e questiono-me. Talvez seja melhor fazer mais e perguntar menos. Há muito que não passava um período tão maduro e destrambelhado. Por vezes escrevo como se o meu acto de escrita correspondesse a uma imagem. Porém ela tende a quebrar-se e talvez seja isso o melhor destes últimos dias. Porque já me senti um "grande escritor" e agora...
Agora escrevo e logo se verá.



Desinteresse e cansaço. Gostava de querer qualquer coisa mas o quê?
A ideia de que não sei cuidar de mim.
Alheio como as pedras.




29 de Setembro
Cansa-me contar histórias. Apetece destruir a narrativa - mesmo a que sobreviveu a Joyce.



30 de Setembro
Reequilibro-me. Passado o período de adaptação a Paris: desencontro, despersonalização, perda e  estranheza acompanhada do sentimento de grande solidão. Depois de uma série de decepções, criei uma cortina entre mim e as coisas: a defesa. Tão eficaz que me impossibilitou a paixão. E finalmente retomo a afectividade, já mais liberta, menos reprimida. Nos últimos tempos era só secura, como terra fértil incapaz de afecto porque sem adubo. Muitos com idênticas muralhas morreram dentro de si, no seu deserto.
Prefiro o sofrimento à anestesia.
Oxalá de novo me apaixone.
Não vejo o horizonte mas o muro já se dissolve.



Paris, trinta de Setembro
Qual o meu âmago? A luta contra o Nada? A época torna o indivíduo consciente do seu aniquilamento e ninguém sobrevive à sua morte. E todavia em Mallarmé a indiferença substitui a força perdida. Também atingi esse estar além ou aquém. Não sei qual o melhor caminho para a musa. Ver o que o inconsciente dita, que me aconselham os sonhos. Influenciado por uma leitura de Jung, analiso agora a minha noite e de manhã, mal acordo, anoto o que sonhei. Ao encontro do Outro.
Manter o alheamento, não por fuga mas por escolha. Porém os dados foram lançados. Ou posso lê-los de várias maneiras? Dos usuais sentires desliguei-me. Mas o olhar extasia e oferece-me um prazer cada vez mais sábio, mais perto do climax.
Este tempo de adaptação a França tem sido de borrasca. Oxalá mantenha o leme.



O diário esgota-se? Ou é a exigência que já não aceita qualquer confissão por mais sincera? A autenticidade esvai-se na ressaca dos dias. Alegria e indiferença pela estreia dos meus textos no Brasil. Mas realizo-me eu comunicando o meu grito? Comunicar é uma palavra tão asséptica... O que me interessa é o fabrico artístico, a sensação de plenitude que isso traz. Egoísmo? Narcisismo? E imaginando um Leitor tomado pela minha obra, que sinto? Sim, algo se me acalma enquanto ouço esse eco, o reconhecimento de uma existência que passou a contar para outrém e não apenas para nós mesmos. (Se é que, ao cabo de tudo isto, ainda nos temos em boa conta...) Mas a aceitação de um domínio é grata. E apazigua. Ganha-se espaço. O instinto de poder ecoa. No meu caso, porém, logo advém a sensação do esvaziamento. De inutilidade. Perca. E não me há qualquer responsabilidade pelo que crio. Tal seria entrar num jogo que não interessa, desvirtuador do próprio acto artístico enquanto condensação da vida que lhe dá azo, lá onde ela se cristaliza mais que no etéreo quotidiano. Criar é atribuir sentido a peças à partida neutras, ultrapassar a vulgaridade do seu uso. Jogo, puro jogo. Gratuitidade significante.
O acto artístico é eminentemente individual embora, logicamente, tudo contribua para a obra.


Paris, sem dia marcado, em Setembro
Carta ao “Presidente” (entidade que sonhei)
Escrevo deste longe onde por ora sou, sem rumo nem história mas intuindo o sentido.
O rio bordeja de cactos e perder-me-ia não fora esta carta, este anotar do que nos afasta: um dia seremos finalmente unos.
A ambição, embora não desmedida, enlouquece o sonho, e arrasta-o tantas vezes pelo escuro.
Não fora a tua presença, Presidente, e o vazio cantaria hinos alardeando vitória. Assim, escrevendo-te me aproximo, neste falar que me liberta, tornando-me outro, nova vivência, para trás a solidão e o medo.
Mas que sigo?
Entre os homens não encontro alimento e, no entanto, entre eles vivo.
Pudera encontrar outros peregrinos, se não fora a sina de cada qual peregrinar sozinho.
Vosso,
Outro



Paris, dois de Outubro
A decepção com os outros é o que dói neste tempo de adaptação a novos hábitos, no meio dos quais persiste, como única e fiel companhia, a escrita: sentado à secretária reencontro-me.
Impressiona a despersonalização.
A sensação de que me guia algo intrínseco e profundo, mais certo e eficaz que a consciência, e a quem nem sempre tratei convenientemente: a voz interior, a dos impulsos. A sociedade ignora-a e gera mortos-vivos. A espécie tem de se pôr em acordo com o seu ritmo interno, o sonho, o irracional, sem cair no erro de torná-lo juíz em causa alheia. Erigir os direitos do claro/escuro, do entre a noite e o dia. O tempo acordado viola-nos e surge a necessidade do sonho. Ignorando-o, sujeitamo-nos às forças da igualização, ao nivelamento amorfo e estatístico. Em plena adolescência da humanidade será lamentável que não nos exijamos únicos.
Urgem os pedagogos.
O único trabalho válido é o da construção da sua psique.




Os meus lados sombra: indecisão, falta de firmeza e insegurança, a qual me gera avareza. Gosto pela destruição. Se algo se destrói a meu lado, a minha sombra logo exige mais destruição, como fera a quem o sangue excita.



Em adolescente quis conhecer o "outro lado" da vida, o dos explorados e humilhados. A verdadeira excursão a estoutro país começou no liceu, com o conhecimento de colegas comunistas. Mas no exílio inicia-se o calvário: despersonalização, regresso a Portugal e mergulho lúcido na droga "para contar como é" (que ingénuo!) e, logo, mais despersonalização ainda. Finalmente a reconstrução pelo curso de Teatro, sob o nome de Samuel Lara. Indecisão entre os nomes e também o uso de "Bornes". Ao início - antes da viagem - era claramente Carlos... Ou seja, perdi o nome pelo caminho.




Paris, dez de Outubro
Sem dinheiro devido a um atraso na transferência de fundos de Lisboa para Paris tive de pedir um emprego junto da comunidade portuguesa: embora relutantemente (devido à minha posição de autor actualmente representado no Brasil?) foi-me oferecido o lugar de contínuo numa escola francesa.
Um intelectual que não se adapte ao "best-seller" e tão pouco na sua conduta pessoal sirva a produção mercantil, não pode, em vida, esperar muito.



Enjoo das letras. Vontade de não me meter em muita coisa. Antes pouco que "muito e mal" ou "a correr".
Hoje tudo parece mais simples.



Paris, 15 de Outubro
Irene,
Na escola onde sou contínuo ao início foi o caos. O funcionário mostrou-se de uma bagagem cultural absurda num contínuo e os professores viram-se invadidos no seu poder: era o contínuo quem propunha actividades culturais e chegou ao ponto de oferecer um álbum de textos sobre as Descobertas como  prémio ao “melhor aluno” da escola.
Surgiram as reclamações, ridicularias a mascararem o poder ofendido.
Agora, entendido que o contínuo deve parecer-se minimamente com um "contínuo", falo pouco e, no intervalo do trabalho (apagar o quadro, limpar as carteiras, abrir as portas das salas) sento-me numa cadeira no corredor. Em consequência, reapareceram os sorrisos, as gentilezas e a paz voltou à escola.
(Numa das aulas talvez se fale da vida de um qualquer autor, do que fez para se salvar da lama geral)
A estrutura, para funcionar, assegura-se que os papéis são escrupulosamente cumpridos e daí os entraves (diplomas, certificados de comportamentos, etc.) que põe ao selvagem que lhe apareça. E eu, sentado no corredor da escola, fingindo-me contínuo (a uns a profissão esgota, a outros incentiva) sou um seu cúmplice.
O existencialismo saiu do desarranjo do mundo, das ruínas da guerra. Do já feito que pode sair? Nova destruição, outro cataclismo. Mas o nuclear, ameaçando também a espécie,  bloqueou a hipótese.
O terrorismo, a "solução" do desespero.
Beijo.




Paris, vinte e cinco de Outubro
No primeiro mês desta estadia fechei-me em casa e no segundo abri-me ao exterior: a experiência não se tornou mais enriquecedora.
As relações imbuíram-se a tal ponto de mercantilismo que raros o evitam. Como se todos se encontrassem apenas no fito da troca e quem mais o ressente são os pobres que, nada tendo para trocar, vivem no pavor de descerem cada vez mais na escala social.
Na faculdade encontrei um professor em pleno funcionamento cerebral ou seja, a pensar ao vivo. De resto, a maioria dos docentes são leitores de cábulas e repetitivos. E eu, no meio das aulas, a perguntar-me se aquelas me interessam e a responder-me um rotundo não. Na verdade não estou certo que conclua as cadeiras em falta. Ah, o canudo e a disponibilidade económica!
Disciplina!
Agradável o passeio junto ao Sena, com os sinos a baterem as ave-marias num largo sereno, o chão de pedra, em meio ao crepúsculo.
Poderia regressar à Rua Augusta. Mas se o protecionismo materno foi útil ao manancial da escrita, esta exige agora outro ambiente.
Escrevo (directamente em francês) Le Succés. 
Falar de mim cada vez é mais difícil. A mentira insinua-se e impossibilita a destrinça entre o dito e o sentido.



Sete de Novembro
Uma lassidão muito grande como se, esgotada a vivência, não fosse possível arrecadar mais factos. Agora vomito imagens e palavras, não por desejo de arte, mas por «over-dose»




Bruxelas, dez de Novembro
Sono.
Ao mesmo tempo desperto.
O véu das palavras a amaciar o caos.
O sentimento de que a corrida não foi inútil, a aposta não foi em vão mas que ela poderia ter sido outra. Sem nenhuma é que não se sobreviveria.




Só me apetece dormir e não compreendo se é cansaço ou vontade de morte. E cresce-me uma vontade assoberbadora de autodestruição. Depois, não gosto do que vejo, acho isto uma chatice. Talvez em  Portugal ainda escreva. Aqui, neste ambiente, já não sei. Tentarei, em todo o caso. Mas para quê? Porque não me hei-de matar, se o desejo tanto? Seguir cursos, fingir que estes me interessam, acabando até por sentir interesse e assim por diante... Que paciência! Vivi intensamente a vida de escriba. Vivi...




Paris, 14 de Novembro
Sem mistério nem novidade a vida desinteressa-me.
Redescubro um eu submerso pela assumpção das personalidades de "escritor", "actor", etc. Finda a viagem, quero-me de regresso a casa, à tranquilidade, ao habitual. Absorve-me de novo o sentimento de que a vida me pertence, e tenho esperanças em mudá-la. Isto não me interessa e tão pouco a celebridade, o ficar na história como "escritor" ou qualquer outra coisa.
Devo cortar com algumas relações que me obrigam a uma intensa actividade sexual que, desde há algum tempo, me soa absurda e, no contexto, inútil.




A sensação de não funcionar como os demais é grande e a confusão ou desadaptação que daí resulta, cresce.
Qualquer coisa não vai bem.
Quero acabar.




Irene,
Sem conseguir dormir, na cama, de luz esmorecida e rádio aberto para saber as horas, pensando em como é imprescindível a sensatez para obter um objectivo - dinheiro, canudo, etc. - enquanto uma subversão pequenina já se me infiltra e logo a esmago: vais continuar na fac, até Junho continuas...
Felícia telefonou. Quer que lhe acabe a decoração do apartamento. O meu mundo aqui é o da pequeno-burguesia e por isso ainda mais sufocante. A asfixia dentro da asfixia. Preciso de uma mulher. A tal que sempre aparece, me leva, deseja e distrai, deixando-me eu ir. Sempre grato à "mulher" (ao feminino) e amando cada qual, sem nunca as compreender.
E isto tudo porque sem sono.
Oh, como me sinto outra vez vivo e disponível e capaz de grandes feitos! Oh, como a estrada se apresenta mais uma vez larga e profunda, o medo do despiste desapareceu, esse medo que atribuo ao contágio do social pequeno-burguês num individuo isolado e à mercê.
Posto a funcionar noutros parâmetros, emperro. Não rendo. O meu registo é o da sã loucura, não a Disto, esta loucura pretensamente razoável - falo por mim e pelos que sucumbiram ordeiros nos psiquiatras, abandonados e dependentes da indústria farmacêutica.
Não apetecem as relações sem grandeza que por aqui tenho. Poderei chamar-lhes relações sem champanhe? Associo champanhe a êxito e tantas me têm sido as vitórias sobre a descaracterização - a maioria ausentes desta escrita - que preciso de barris do espumoso néctar para um festejo condigno. Este diário atravessa um período de abrandamento e talvez fique bem anotar "Em mudança". Só quem a faz  percebe o que seja uma cambalhota na vida! O sabor meio acre meio desafiador do... - não procuro a palavra. Cada qual sabe o que o excita. A mim quase tudo mas cada vez menos o sexo.
Olhar.
Torno-me um «voyeur»?
E não escrevo. Só cartas. E teatro. A vida neste momento é excessiva como um chuto, indescritível no preciso momento em que se sente. E o trabalho sobre Vian faz-se como ele o merece: desprendidamente, sem que se atribua demasiado valor  ao humano, o  animal mais porco entre todos mas o único que olha as estrelas.
23 horas e 40 m.
Amanhã, pelas 11 horas, entrevista com a directora de uma casa de repouso para gente de idade. Conversa de bla-blá? O desejo de beijar as bocas é maior quando discursam sobre o dever.
As paredes deste quarto são de mel, face ao magma que me irrompe e liquefaz. Tomo um calmante? Que se lixe! Tenho de viver! E esmoreço. As paredes afinal são irredutíveis e além delas vejo ainda opaco.
De novo sufoco.
A vida é isto?
E o sono não vem...
E... e... e...
Beijo





Quinze de Novembro
De novo uma certa acalmia e à-vontade perante o «stress» (Tomei um calmante. De quando em quando ajuda a ver mais distante.)
Escrevi "O Papel" e sinto-me menos tenso. Do comprimido? Ou da escrita? Mas a tensão impossibilitava-a pois ela é luxo, arte do distanciamento. Os românticos, sim, escreviam em estado de fúria sanguinária com o temporal nas balaustradas...
Depois de Bruxelas levei algum tempo a readaptar-me às minhas carências. Mas fez-se.





Há cerca de dois meses que anoto os meus sonhos. A confusão ou o imbróglio são grandes. Temas que se repetem: a pressão social (simbolizada na mãe) a ambiguidade sexual, a passagem vertiginosa pelas  ruas com a ameaça do embate que, afinal, não sucede, a viagem (factor de angústia e, depois, libertação) os colegas do tempo da escola.
E a realidade?
A realidade desfaz-se e Paris descaracteriza-me mas ajuda ao reencontro. No fundo a minha descoberta.
Nada consegui porque nada há por conseguir.
Ao escrever no topo a data lembro que faço hoje anos: trinta e cinco!





Paris, dezassete de Novembro
O inconsciente é lento em relação à velocidade a que vivemos e nos sonhos só recentemente realizo a viagem até Paris. Tal explica o fracasso de muitas transformações políticas e os limites da militância. Quantos gestos quotidianos não pertencem ainda ao tempo da horda?
Ultimamente escrevo pouco neste diário. A adaptação a Paris é tão violenta, assim como excitante, que a escrita mal responde ao desafio entre a intensidade do silêncio e a pobreza da palavra.





Irene,
Há dois dias que, a pretexto da gripe, não saio de casa, desliguei o telefone (não há quem mo atenda e saturei-me da teoria - que nunca perfilhei -  de que nas relações é que está tudo: o mundo entra-me de facto através dos outros mas raros me trazem um mundo que me interesse) e não sei se faço o  ponto da situação mas, em todo o caso trinta e tal, já cá constam
Paris revela-se o que pretendia: local de reflexão. O problema tem sido o conseguir isolar-me, dada a necessidade da troca. Sim, os outros atraem-me na medida em que os conheça. Mas a humanidade é-me indiferente. Sei a cobardia de que somos capazes para que qualquer herói me seduza. 
Onde quero chegar?
A minha ausência de projecto pareceu-me pela primeira vez absurda ao ler um livro dedicado ao "sucesso".
Não sei...
As coisas não se tornam tão complicadas quanto o parecem vistas do lugar do medo.
Beijo






Paris, cinco de Dezembro
Porque não aceito o centro? Porque me é difícil a norma?
A ascese coaduna-se com a calma que procuro para os sentidos. A tranquilidade existe, quer na satisfação do desejo, quer na sua sublimação. Ora numa, ora noutra é que é difícil. Mas o custoso, neste caminho, é os outros em mim. Porque a minha pertença ao mundo do lucro e da corrida torna-se cada vez mais aparente. Todavia o percurso do jovem idealista ao homem sem ilusões fez-se. Ou seja, o que em determinado momento receei - a morte do adolescente idealista - sucedeu. Foi seu autor o tempo, aqui e agora. Já não sei escrever acerca da glória da espécie ou, tão pouco, creio na sua grandeza. Para mim, neste momento, a humanidade existe. Apenas. Para quê tecer-lhe considerandos? Chame-lhe "desinteressante", "feroz", ou outra coisa mais e tudo são ainda adjectivos nascidos da minha anterior esperança. Submeto-me aos factos. Não acredito, nem deixo de acreditar. Indiferente. A existência processa-se e, através dela, criam-se mitos, padrões, totens. Para quê atribuir-lhes outra importância senão a de ajudarem a passar o tempo?




Paris, sete de Dezembro
Dado o percorrido e chegado aqui, tenho alguma dificuldade em saber o que faço em terra humana. Na verdade a questão não é importante. Nasce-se, vive-se e morre-se. No entretanto... Correr para isto? Correr para aquilo? Não interessa e nunca o senti com tanta intensidade, sobretudo agora que pareço muito interessado em obter um diploma. Aparência. Desimporto-me do fato e rio dos que lhe atribuem importância. A humanidade é presunçosa. Sabemos que sabemos e, de imediato, nos julgamos "sábios". Quanto mais ignorante o indivíduo mais importante se sente. Nem vejo isto como uma passagem - descreio no "depois" - mas se o há, é-me indiferente. Não por uma ausência de sentimento religioso mas, porventura, devido ao seu excesso, o qual destrói o Interlocutor e institui o Acompanhamento. É-se.
A certa altura pensei que construía uma obra literária. Deixou de interessar. Assim como o "entrar na estrutura para a denunciar". Só quem não a quer ver, precisa que lha mostrem. A minha escolha é existir à margem da corrida. Olhar os outros, vê-los envaidecerem-se e sentirem muitos sentimentos.
Não sinto.
Talvez por excesso de ter sentido, talvez porque nunca senti e foi tudo literatura. Não lamento, constato. Quando alguém descobre uma regularidade no mundo físico põe-se à cata de mais, grita "ciência", cria o seu poder, compartilha-o, assegura a criação dos filhos, de um nome (por algum tempo) pensando que trabalha para a espécie. Ninguém trabalha para nada. Cada qual trabalha para si só. Mas os "sis" têm interesses comuns e dão origem ao Estado. No entanto sempre houve homens e mulheres à margem de tudo, das construções que se ergueram. Não deixaram testemunho da sua indiferença? Indiferente. Indiferentes mas não neutralizados.
Lúcidos.




É preciso experimentar os extremos para conhecer o equilíbrio? E equilíbrio é o que sinto? Ou antes uma enorme disponibilidade durante anos ausente?
Aceitar as coisas.
Não ir contra as situações. Aceitá-las como ondas a que nos entregamos para que não nos derrubem e, finalmente, as ultrapassemos.
Sabe bem nada ter, salvo umas tantas folhas escritas que todavia dirigiram uma vida. Quando não sei a direcção pergunto-me: "Qual a da escrita?" A opção torna-se clara.



Paris, treze de Dezembro
Três meses nesta cidade. Adapto-me.
Ganho dinheiro vendendo, aos sábados e domingos, "Cantares" nas festas dos emigrantes portugueses, cujas reacções pouco diferem das dos residentes em Portugal. No entanto a percentagem dos que olham o fascículo e perguntam "Para que serve?" ou me sacodem com um ar de extrema importância aumentou. O imigrado que tenho conhecido é, na sua maioria, uma pessoa convencida de si: tem na manga o triunfo sobre a dura luta de adaptação e, ao mesmo tempo, acumulou uma  ignorância que frutificou em preconceito. Tornou-se petulante.
Mas, à saída da festa onde no domingo fui vender – (um centro cultural com nome de escritor e no qual, para entrar, mesmo mostrando a mercadoria e afirmando-me seu autor - "vivo disto" -  me exigiram a compra do bilhete) dei comigo a abandonar o salão do baile de nariz  no ar e ares de grande pessoa, como se  vingasse o desprezo que, lá dentro, me lançaram. Que estúpido e medíocre sou!
Com que direito tomei aquela atitude? Nem a ignorância ma desculpa!




Paris, 15/12/85
Há dias, alturas, momentos - que se prolongam imenso - em que não se vê coisa alguma. Não vale a pena olhar para trás, porque o passado nos parece de outro, e o olhar em frente é nulo. Tão pouco se sabe o que se quer. Não há futuro e o melhor que ainda se encontra é o saber que um patrão nos suporta e, desde que, às horas aprazadas, vendamos a nossa liberdade, a despreocupação é-nos permitida.
Não haver a quem dar razões é um bem de inegável estima. Hoje, porém, cansa e é cansaço o que sinto. Um escritor afinal é isto e eu que o idealizava como nos livros e revistas: sorridente ou fotograficamente façanhudo mas, em todo o caso, resplandecente!
No meu caso talvez ofusque por dentro mas por fora cai o brilho.




Vinte e três de Dezembro
Concordo com Deleuze quando diz que o acto da escrita não se justifica, nem pelo resultado nem pela intenção, e sim pelo processo.




No comboio, entre Paris e Bruxelas
Saudades do Tejo e da tristeza portuguesa. Aqui não se é alegre nem triste: funciona-se. Ou os efeitos de um sistema funcional, com vista a certos fins, funcionando eficazmente há já algum tempo.
A caminho de Bruxelas apetece Lisboa.




Bruxelas, vinte e oito de Dezembro
Esta cidade tem-me proporcionado amizades e estadias de ameno deleite, enquanto Paris, os seus boulevards, me tornam consciente da existência. Lisboa, essa, enche-me de um lírico aborrecimento. Por entre tudo isto, as capacidades afinam-se e escrever torna-se disciplina.
Uma tentativa de mudança de regimen alimentar de carnívero para vegetariano, feita sem vigilância médica, enfraqueceu-me a tal ponto que mexer-me ou concentrar-me por alguns dias estiveram fora do meu alcance. "Surménage nerveux" - disse o médico. Assim, a actividade tem sido, além da inerente à necessidade de me prover, principalmente a de esperar. Esperar que pense qualquer coisa para saber o que penso, pois as anteriores concepções afundaram-se.
Por algum tempo pensamento e escrita estiveram ameaçados na sua interioridade, primeiro pela minha exposição enquanto vendia os "Cantares " em Lisboa, depois, pelo saber da representação de "Título" no Brasil. Como se o consumo da minha escrita prejudicasse a sua realização. Mas de novo me recolho na capa de um estudante de linguística. A actividade social retira-me do meu centro e sem aquela não existiria: contradição do não desejar os outros e não lhes passar sem.




Sem dia nem mês marcados
Sobrevivo a custo num social que entendo, aceito e do qual, por nascimento, função e fim faço parte, mas que me mata, impede a vida e obriga à fuga.
Pelo final da adolescência, a unidade tornou-se impossível e surgiram em mim vários interlocutores, dominando-me alternadamente. Ora o Sr. Ético com o seu "deve ser", ora, sob os mais variados pretextos - uma festa, a justificação de que "a excepção confirma a regra" - o Caos.
Sob o Caos a vida processa-se numa "terra de ninguém", e o que se faz, além de indiferente, torna-se inútil. Prazer e desgosto equivalem-se e, nessa altura, da generosa submissão à Ética resta apenas a memória pois quem manda é a lassidão. E só não se comete o maior dos crimes porque as implicações legais entediam, dado que o próprio sentimento de culpa, nestas circunstâncias, se reconhece absurdo. Até que, no intuito de acabar com alterações psiquicamente desgastantes, a Ética de novo se impõe, logo acompanhada por uma colecção de corolários, tanto mais urgentes quanto, se a Ética põe em causa apenas o Caos, já este coloca em perigo a tudo.
Porém a pobre Ética, incapaz de se assumir como universal e equiparando-se a um qualquer valor em si, não se ultrapassa e sucumbe às suas próprias contradições, após árduos - e nunca épicos - combates: afinal ela mesma que vale?
Questão de época, da relatividade onde nos afogamos.




Escandalizado pelo que sei.




O máximo respeito pelos nebulosos dados do inconsciente.
Não imagino - porque não posso - até onde me manterei quieto. Por vezes, chega a ser sensual estar em Paris, doutras assemelha-se a uma prisão, a tal ponto me encontro sempre onde não estou.
Insaciável.
E partir, partir que chegar não tem mistério.



Na luta com as palavras liberto o futuro.



Irene,
Pensando no que me tem acontecido (submetido a uma sociedade pequeno-burguesa e, na Rua Augusta, a troco de tempo para escrita, a uma mãe imperialmente protectora: alimentação, dinheiro, empregos, noivas) verifico que ainda vivo, ao contrário do que já pensava. Sartre desejava que soubessem que ele existia. Eu desejo o contrário e congratulo-me, pois enquanto vendia os "Cantares" na rua nunca dei qualquer entrevista, salvo uma a "O Jornal" onde afirmei que tudo devia parar, incluindo a reprodução humana "para pensarmos no que fazemos." Felizmente a conversa nunca foi publicada e pude reconsiderar, não mais me comprometendo com falas públicas.
Ultimamente não escrevo, passo a limpo coisas antigas e mergulho em pó. Não vivo. Escondo-me.
Beijo




Sem os fantasmas que nos acompanham quem seríamos? Pessoas sem história e capazes de tudo?

À minha volta só vejo carreirismo. Chegado aos trinta e cinco, parece que nada construí. Que ainda vou começar. Mas não consigo saber se isto é verdade. Sensação de falta de espaço e de viver entre velharias, entre o elogio do que não vale.




O "real" é uma declinação do possível. (Fui eu quem disse isto ou ouvi-o?)



Inútil a escrita de linhas que não ajudem a viver.



Transportamos o Outro connosco e ele faz ruído e perturba-nos o silêncio.


Quando um humano não se respeita perde o respeito pelos outros.
A vida é a realização de uma vontade.
Na adversidade conhecemo-nos.
A busca da verdade torna o humano original.
Os menos dotados são os mais necessitados de protecção da Lei.
O sentido da vida é o da perfeição.
A guerra é natural na comunidade humana e o Estado uma sua construção.
O amor nasce quando o amante se reflecte.
A paixão deseja a posse e a destruição do seu objecto.



Mil desejos de ser tudo.
Nada satisfaz.
A vida corre de um lado a outro, na busca de qualquer coisa que, mal surge, logo esquece, e assim até ao esgotamento.
Quero a tudo, ao antes e ao depois, o momento exacto, a hora não assinalada.



Uma obra de arte não pode ser feita à medida do público. Tem que ser feita à do Autor, pois é a sua diferença que o distingue da maioria.




Segunda carta ao "Presidente"
Na minha solidão e pouca segurança sonho-te de novo.
O julgamento do homem não me importa mas o meu próprio inquieta-me pela sua fragilidade. Então (há o suicídio enquanto refúgio mas como assassinar-te?) tudo se perde e o que me cerca transforma-se em confusão, ruído, imagens estragadas de um bom pai algures.
Uma companhia talvez fosse útil mas, chegado aqui, não sei onde a encontre: o sexo não me atrai e pretendo o silêncio. A quem procurar?
Cada reunião contigo um elo que me reforça e, sonhando a tua figura, tenderei a sê-la. Que a força que me faz e, depois de mim, há-de fazer ainda, me erga e empurre!
Teu
Outro



Terceira Carta ao "Presidente",
As dificuldades e a solidão são enormes. Os meus amigos ou me fazem perguntas para que não tenho resposta ou se suicidam, deixando-me a dúvida e uma hipótese de caminho.
A náusea e o nojo atacam e durante tempos a paralisia domina. Doutras vezes, impõe-se a febre do ser, do fazer e, dia a dia, metodicamente construo.
O equilíbrio torna-se ínfimo e penso na desistência.
Hoje, por exemplo, a vontade de dormir exige que escute o outro lado das coisas e a sobrevivência que me mantenha acordado junto de quem não prezo.
Nada me diz que o além não exista ou não seja tão mau como por vezes Isto
Um forte aperto de mão
Teu,
Outro



De vez em quando a corda parte e a guitarra desafina.
Ha dois ou três dias entre mim e as coisas interpôs-se o desinteresse, não a rotina mas a falta de vontade, o desânimo ou, mais precisamente, o tédio. E leio, e faço, e arrumo, como autómato de bom fabrico. Mas escrever não sucede. Passo a limpo Rua Augusta e são mais os dias em que não a passo.




Não se sabe mas teima-se.

O medo, a novidade, o dia no crepúsculo





















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