sábado, 6 de novembro de 2010

  
1975


À loucura colectiva chamam normalidade





Carcavelos, Julho/Agosto
Dia 00
Acordo sob forte luz e penso que adormeci com ela acesa. Afinal o Sol inunda o quarto.
Vontade de mijar mas, na cave que com mais sete ou oito ocupei - o nosso número varia ao sabor das circunstâncias - não há WC.
Saio.
A casa de banho do café mais próximo não presta mas, cansado e enfastiado, sirvo-me dela.
Já comigo sentado a uma mesa, aparece o Santo.
Partida direcção ao Sul.

Dia 01
No comboio não se paga, pois há boicote ao aumento dos bilhetes.
Viajo e não dou por nada porque a carruagem e eu tornamo-nos um. Mas as pessoas dividem a atenção entre o desenho com que me entretenho e as nossas figuras, os nossos vestires.
Alcântara.
Buscamos o acesso à ponte e logo seguimos na boleia de um casalinho surpresa pela nossa hora de partida.(Provavelmente ficaremos pelo caminho mas é o que queremos)
Setúbal.
Numa taberna um fulano chama-nos "turistas", quer que lhe paguemos uma bebida, diz-se ajudante de padeiro, gosta “de toda a gente” e insiste em levar-nos a Montemor. Temos trabalho em recusar, o taberneiro não tem pão, e o da padaria, talvez porque não o acompanhemos, já diz que somos do ELP. Por fim, livres do indivíduo, pedimos de novo boleia: duas horas em vão.
O sol declina e, esquecidos já do Sul, admiramo-lo.
De uma barraca numas obras sai música negra e, a conta-gotas, gente. Trabalhadores. Olham-nos desconfiados. Mas o som agrada-nos, os corpos movimentam-se e já os homens nos lançam um olhar menos agressivo. Finalmente o Sol esfuma-se e damo-nos conta de que não conseguimos boleia.
Regresso a Setúbal, ao centro da cidade.
Pelo caminho cravamos dois ou três burgueses a cinco coroas cada e abancamos numa esplanada, na cata de gente. À falta de melhor dormiremos ao relento, o que não nos preocupa e até gostamos. A noite não está fria e – dizem -  há uns campos jeitosos em redor.
Surge o Chico que, depois de dar um berro de satisfação por nos redescobrir, conta as últimas novidades: este, aquele mais aqueloutro foram embora, uns tantos meteram-se no chuto e a erva abunda mas não é grande coisa. Quanto a ele próprio nada traz consigo mas tem uma contra-fé para ir à "judite", pois a polícia quer saber das actividades de uma certa juventude setubalense. O Chico deixa-nos à porta do café mais mafioso, o Pental, mas é o dia de fecho e abancamos numa esplanada próxima, boa para travar conhecimentos.
Um grupo mal encarado discute notas de exame e métodos didácticos, três fulanos observam-nos, em silêncio, e uma mulher, sozinha numa mesa, olha-nos de esguelha. Talvez deseje meter conversa. No entretanto faço da mesa tambor - o café no entretanto  fechou – e, mercê do meu solo, há gente que pára e se junta.
Surge o Filipe e um amigo: seguem para Torremolinos dentro de duas semanas.
"Aqui não se passeia numa rua sem que se saiba na outra" - Lamentam.
Não há droga e os esquemas andam maus. Levam-nos a outro café, na mira de encontrarmos mais gente mas ninguém aparece e, finalmente, indicam-nos os lados do Bonfim para estendermos os sacos-camas.
Filipe e o amigo habitam com as respectivas famílias.

Dia 02 - Setúbal parece menos longa de atravessar que de véspera e, pedindo sempre dinheiro, reunimos sete escudos. A contribuição não é de monta para os duzentos kilómetros até ao Algarve, onde exporemos os artesanatos do Santo e os meus desenhos. (Acreditamos denotadamente vender, quer uns, quer  outros). Mas calmos e depreendidos (incluindo dos automóveis que passam e não nos dão boleia) entramos, finalmente, numa coisa de quatro rodas que nos coloca vinte kilómetros adiante. No entretanto fala-se da região, da fuga dos capitalistas, do desemprego, de mais uma fábrica em auto-gestão.
Levado talvez pelo hábito do medo, o condutor saúda os militares que nos cruzam num jeep do exército, contente por mostrar que as suas críticas não significam má vontade contra o 25 de Abril. Indiferente, importa-me sobretudo que o homem nos deixe, já sob Sol alentejano, numa estrada catita, no meio de um campo cheio de pequenas flores abarrotadas de amarelo.
Não apetece pedir mais transporte e dormimos.

Instantâneos do percurso:
- Uma roda de mulheres falando doutra ausente.
- Vulto negro em terra parda.
- Tortel: tudo pequenino, casas de um andar, senhores de barriga ao alto.
- Eu, vestindo um carro ridículo e apertado.
- Camionista de cara cheia, lobrigando por lentes polaroid um século vinte a que chegou atrasado.
- Portal: a mesma parvoíce de anos atrás mas com muros sarapintados.
- Um caixeiro cheio de viagens.
- Cagando ao relento: Terra, recebe a minha merda que um dia receberás o meu corpo!
- Uma camioneta. Atrás? À frente? Metemo-nos adiante. O Sr. José no lugar oposto ao motorista. Qualquer coisa estranha, uns gramas de mistério, os suficientes para o meu faro. Toda a viagem se passa entre o calor dos corpos, o vai-vem, ora de uns, ora doutros, por fim o destino e o fim da conversa.
Que não foi o mais importante.

Dia 03 - Nem um carro! Mas a vontade de pedir boleia também é nula.
Sobe-se a estrada, direitos a uma tasca "mesmo perto, ai junto à curva" mas ela não aparece e só vemos caminho e montes de ambos os lados.
Cruzamos três homens que acompanham a pé um outro numa bicicleta e lançamos:
- É verdade que há uma tasca por aqui?
Afinal dizem-nos que já a passámos, que a porta talvez estivesse fechada e não teríamos reparado.
- Era necessário bater! – Explicam. - Mas aí à frente – E um deles aponta o sentido em que seguimos - Há outra, "Uns onze kilómetros adiante"

 

Lisboa, sem dia marcado

Miséria.

Não tenho um vintém.
Os valores que possuo (uma máquina de escrever e um leitor de cassettes) empenhados. Frio no quarto alugado por uma amiga.
Doem as costas, os dentes, um ouvido. Constipado.
Os editores recusam-me.
Adenda: sinto-me bem.

A filosofia é um desenvolvimento linguístico tendo como partida o pronome pessoal da primeira pessoa.

Absolutamente nada a acrescentar ao vazio de ontem, ao inexistente hoje.
Escrever, esquecendo o escrito, eis a luta de quem escreve, pinta ou caga livremente, depois que o acusam de "artista".
Escrever, esquecendo que se será lido, servindo-se da vida como pena… A tinta no papel como se a injectara na veia.

O Artista quando fala de si, fala da humanidade.
De repouso, saindo da necessidade de me injectar. E vim aqui parar porque lá atrás quis escrever sobre droga…
Cada qual sabe dos túneis em que se mete. Regresso à luz? A certeza de que a cura não é fácil e exige vontade, paciência, etc. E finalmente compreendo porque alguns não voltam, ficando até à morte na necessidade de uma dose cada vez mais forte.
Enfim, parti numa ideia minha e não atribuo responsabilidades a ninguém.
Que me aproveite.
P. Scritpum: medo de me deitar. Mas devo fazê-lo, encontrar-me comigo, sem o alívio – ou intermediário – do papel e da caneta, da – chamemos-lhe então – Arte.


Desintoxicação
Dia I
Vontade de dormir mas o sono...
Olho as mudanças que fiz no quarto, agora pintado de branco e quase vazio a lembrar a cela de um monge (…)
Seis horas, a manhã nasce - ladram os cães, há pouco calaram-se os galos - e chega ao fim este primeiro dia da cura. Desde que me encerrei ainda não dormi.
Evito os soporíferos, pois sair de um vício para entrar noutro...
Reencontrar o meu eu mais antigo, antes da queda na toxicomania, quando frequentava a pequena biblioteca do Largo de São Lázaro, antes mesmo do exílio.
E levava livros para casa... E lia... lia...

P. Scriptum: Os outros consideram-me “doido” embora diferentemente do que disso pensam as gentes da rua. Estas há muito teriam chamado o psiquiatra e, além de inestético, seria pura perda de tempo: não há nele cura para mim. Se é lícito que desconfiem de nós, importa que a dúvida não nos contagie, tornando-nos cúmplices da loucura.
Louco é o indivíduo que perante si próprio já não se sabe explicar, compreender o que faz.
À loucura colectiva chamam normalidade.
(…) escrita, comunicação com o Outro, com o que de mais profundo me há, aquilo a que talvez a humanidade chame Deus.

Para deixar o vício devo reencontrar o meu eu menos temporal, expresso ao longo da minha vida pela austeridade, disciplina e rigor. Qualidades que preciso para regressar não sei onde, pois não me submeto a isto para repetir o que já fui mas para abandonar o que por ora não desejo: as drogas duras.
Qual a porta, a rua por onde enverederei, ignoro. Essa a aventura. A minha aposta?
O que será, será.

Dia II
Dostoievski.
O ambiente pobre e apodrecido dos bairros de Petersburgo condiz, por contraste, com a severidade que me rodeia.
Calmo, depois de tomar um café. O organismo precisa de cafeína, algo que o excite. Já ontem, com outra bica, senti-me melhor.

Só a necessidade nos empenha totalmente no que devemos querer.

(…)

Não voltarei tão cedo à Brasileira do Chiado. Desintoxicar o corpo não é fácil e tenho passado momentos difíceis devido à falta de droga. Mas persigo a cura. Pelo menos, ultrapassou-se a fase em que era penoso ouvir a música ao som da qual chutava. O passeio pelo mosteiro e parte velha de Odivelas fez-me bem. Como se fora o reencontro com alguém desde há muito esquecido. Mas será possível retomar o passado? Ou não resta senão testemunhar a diferença?



Dia III
Para comemorar a libertação do preludim comprei nova seringa. Mais pequena, maneja-se melhor e o êmbolo escorrega facilmente.
Fiz um chuto de analgésicos e o resultado foi um sono de quatro horas. E como ultrapassei a carência física modifiquei de novo o quarto, introduzindo-lhe alguma cor.
Tomei LSD.


Dia?
Se deixei de me injectar não deixei, todavia, de me picar.
Mas se, na primeira noite, após a compra da nova seringa, me limitei a enfiar e tirar a agulha repetidas vezes, “em busca” da veia, num prazer todo erótico de me sentir, na segunda madrugada já injectei mesmo soporíferos, sem grande resultado, aliás, pois passaram cerca de duas horas – li sobre Klee, fiz chá e um poema a Irene (antes ou depois do chuto?) – e, afinal, ainda aqui vou, escrevendo isto…
Dizia o quê…?
Amanhece e gostaria de terminar a noite com uma frase do género “O canto do galo suspende a natureza..." mas nada disto se anuncia.
Dormir, a ver se me liberto desta obsessão de ver o sangue subir pela seringa dentro, misturando-se, primeiro denso e, depois, já fluído, na droga a injectar, sinal de que a agulha acertou na veia e o embolo pode finalmente descer ao fundo do poço onde, do elixir, só já sinto a alegria…
Depois desta descrição que me levou quase "flaxar" ainda acham que me curo?
Outra prova!
Em todo o caso lá para o dia oito picar-me-ei com “prelo” – decidi-o há pouco, a propósito de não sei o quê.
Continuo a leitura de Dostoievski.
Des-morte.



O meu mundo não existe e resta-me o dos outros quando o vazio por demais me assusta.
Actor de comédias de bons sentimentos e fins felizes, seria um pai de família extremoso se não esquecera o papel ou a interpretação não apodrecesse.



Dispersão.
Desejo de coisas diferentes, de fuga, de me esquivar. Mas, mais real que nunca, a impossibilidade doutra saída que não seja a morte. E das duas alternativas - matar-me ou assumir Isto - qual a pior? 
  































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