sexta-feira, 5 de novembro de 2010

1986


Não fazemos o que queremos mas o que somos.




Paris, oito de Janeiro,
No meio da tempestade por vezes assusto-me, fico ansioso, tremo. Depois, a lucidez volta e vejo a relatividade do meu receio.
O mal é a morte, sobretudo se continuamos vivos, isto é, não a percebemos e tornamo-nos mortos-vivos.
Este diário tortura-me quando o sinto público e surge a tendência para "arredondar" as coisas, construir poses: "voyeurismo" idiota perante mim mesmo.
A especialização em linguística soa-me inútil: uma tenda, um saco-cama e uma porção de arroz bastam às minhas necessidades. Se, para ser rico, devo desejar a riqueza, terei grande dificuldade em enriquecer.
Vontade de deixar o curso mas ficar um tempo mais nesta terra.
A vida compõe-se de anos, meses, dias, horas, minutos, segundos e etcs.



Passados os anos em que desejei o reconhecimento público, correspondente ao período em que queria saber se existia nos outros, a minha necessidade de Leitor tornou-se nula.
O conhecimento de si compreende o Outro: o social como consequência e não por busca




Paris, doze de Janeiro
Submerso socialmente, examino-me a ver onde estas relações baixas - que a estrutura impõe  e as pessoas, em si, permitem - já me contagiaram, levando-me a:
- Preferir a relação utilitária à luxuosa.
- Justificar com "falta de tempo" o que tem razões bem mais profundas.
- Evitar uma visita porque fica "longe" ou, pelo contrário, fazê-la, sob a capa da gentileza mas, de facto, para obter um favor.
Não quero que a idade me faça esquecer estes e outros itens, acabando por compreender tudo, até a crueldade de uns para os outros. Compreender, sim, mas aceitar não. Porque no dia em que o faça,  já não poderei condenar.



Manuela,
Porque existo, que faço ou para quê? A imortalidade nunca saberá a nada e tão pouco conforta. Inútil, completamente inútil e, no entanto, o intinto de sobrevivencia insiste em obtê-la. O meu quotidiano é sem graça e eu próprio não ma acho. Sinto-me desterrado. E não me interessa uma vida de sacríficio e esforço, ocupando o tempo com o Estado, um "patrão", o "assegurar do futuro" e desprezando, entretanto, valores que de facto são vida.
Construímos uma sociedade asfixiante e quando um pobre chega a rico está pior que uma fera, como se a generosidade só fosse possível a quem nunca precisou de matar para vencer. Ou seja, aos herdeiros das grandes fortunas, os quais encontram os "seus mortos” já assassinados.




Não tenho esperanças de encontrar quem. Não. Não tenho. Ao fim e ao cabo, os meus antecedentes de amamentado pelo mundo (uma mãe mas vários pais e nunca uma célula familiar restrita) deu como consequência alguém com grande dificuldade em encerrar-se num universo fechado. Tanto pior pois que, chegando o temporal, tudo recolhe à sua toca e eu...
Que se lixe!



Paris, dezoito de Janeiro
Discussão com Raul acerca de "Que fazer da vida?", "A necessidade de prever o futuro", e coisas assim.  Que importam mais uns tantos anos de vida se não forem obra minha, exercício do meu desejo?
A vida não vale dinheiro. Vale uma ideia. E haverá sempre alguém para lembrá-lo.
O meu problema neste isolamento parisiense rodeado de pequeno-burgueses ansiosos por "status" é o de manter-me suficientemente lúcido para não esquecer que vim, não por um curso, mas para saber o que se discute nestas paragens e, também, para desbloquear da estagnação que ultimamente sentia em Lisboa.
Lentamente reaparece a agradável ideia da independência.




Sem dia marcado, em Janeiro
Cada um tende a procurar o seu bem-estar e não o dos outros. Fazemo-lo por uma sabedoria prática que nos diz que o sofrimento, a dor, ou a tristeza são desagradáveis. Mas a busca do bem-estar geral é tarefa da lei. A ela incumbe providenciar que o bem particular não prejudique o geral. Ou a lei coloca a todos os indivíduos na mesma situação material, impossibilitando-os de adquirirem riqueza ou, sendo esta realizável, o Estado tem de cuidar sobretudo dos que não alcançam bens.




Aperfeiçoar-se é o objectivo da vida: tornar pior o que é mau e levar ao óptimo o bom, transmutando finalmente um e outro nos respectivos contrários para nova reformulação. A guerra existe no próprio humano e logo, na sociedade, pois cada grupo, associado segundo o seu carácter, procura impor-se aos demais. Nasce assim o Estado, o aparelho burocrático-repressivo que expressa a relação de forças entre as várias tendências ou grupos.



Cansado de tanto êxtase. Tornarei a mim? Ou reencontrarei o outro, a sombra?



Envelhecer é entrar na beatitude da doce compreensão e que “Deus seja louvado” até um dia se morrer com a extrema-unção.
Não quero envelhecer!
Quero-me salvaguardado desta sensibilidade piegas, doentia e lamurienta que se pega a tudo e a nada deixa com vida. Quero-me cruel e feroz. Tantas boas ideias perdidas porque os autores se fizeram "sérios", "honestos", “respeitáveis"", em vez de continuarem no sentido do caos que a tudo iguala e a nada respeita ou admira.
A minha admiração continua virgem: não admiro ninguém e nem por mim próprio sinto estima. Reconheço-me existente mas não descubro onde está o mérito de fazer assim, em vez doutra forma, embora veja, e bem, os portos onde não atraquei por não os haver merecido.
Quantos mais amigos "respeitáveis", mais me suspeito.
A "respeitabilidade", aqui e agora, é uma doença.



A maioria dos portugueses da região parisiense vieram do Norte de Portugal. São brutos, desconfiados e complexados perante o aparato francês. Vieram para ganhar dinheiro e tornaram-se subservientes e viscosos. Aos domingos ouvem um floklore pátrio adulterado ou vêem o cantor de serviço à lágrima fácil. E escutam rádios portuguesas que lhes injectam música de há vinte anos atrás e, ainda por cima, má.
Os serviços oficiais aproveitam-se desta pobre gente.



António,
Escrevo porque não apetece a companhia dos pensamentos.
Apatia.
Uma quantidade de folhas escritas, o desejo lá atrás de ser escriba e agora...
Sem projectos, eu que não concebo a vida sem realizações!
Dói ligeiramente uma mão de dor providencial, pois a sensação de qualquer coisa por fazer (no caso tratá-la) liga-me a Isto. Mas é fútil.
Já telefonei para A, B e C e ninguém atendeu.
E não posso sair daqui, embora nestes momentos tenha sempre partido. Reencontro, assim, o desespero que outrora passeava de cidade em cidade, fazendo por esquecer que não sou de parte alguma, que não há “a quem” - e visitando outros precisamente para me convencer do contrário - regressando sempre, e prodigamente, à solidão.
Não sei para onde vou, se aparece o tal emprego de "animador cultural" de que me falaram e já lamento a ausência das vozes que, pelo menos, chateavam. O vazio é pior. E não arranjei cão, não sabia que resultava. Nem filhos. Dormir? Não há sono. Comprei um maço de tabaco e fumo-o. E por hoje passa mas se isto repete - sou já um senhor de alguma idade - arranjo uma pistola. Não o digo para receber apoio ou etc. Digo-to porque posso dizê-lo sem que me respondas "distrai-te" ou coisas assim. Aliás, distrair talvez seja a solução porque abrir a janela e ver-lhe a altura também não apetece, por demasiado burocrático, pouco estético. Mas o esforço é grande. O suicídio é anti-natura e eu - com os obstáculos com que, apesar de tudo, me construí -  sempre me considerei um acto artístico. E deve ser isso: meio constipado, a sensibilidade embotou-se. Assim, não sinto, senão isto de me manter vivo, dar comer ao corpo e tarefas similares. Um dia deixaram Sartre sozinho e ele embebedou-se. Só, também não sobrevivo e não me digam que é fraqueza porque lhe chamo humanidade.
Beijo




Irritam-me as cobardias quotidianas com direito a uns dias livres por semana. Não pertenço a ninguém e tão pouco ao mundo.
Situação de revoltado cumpridor.





Paris 3 de Fevereiro
Irene,
Um intervalo nestes meses de aço e agulhas. Quando perguntam "Como vai?" digo "Óptimo" no desejo de me sentir bom de verdade.
Paris, para o recém-vindo em jeito de imigrante,  tem a espessura de uma muralha da China. Até onde se resiste? Mas o que mais ensurdece é este não haver a quem. Isto leva onde? Um dia resolvi que viveria mais uns tempos e que lhes daria forma. Mas qual? Quem fabrico? O que, outrora, só antevia, tornou-se realidade, e as minhas crenças são fios partidos ao vento. Anseio por uma pausa n' Isto e ela não existe. Percebe-o agora. Só hoje. A vida é um carrossel e não pára. Quando os romeiros abandonam o brinquedo é que foram cuspidos, o peso foi-lhes menor do que a velocidade que os prendia à corrida.
Irene, pela primeira vez reconheço: a engrenagem tomou-me, não sei se lhe chego a cabo. Onde o outrora leve e capaz de fechar portas sem dar por nada? A juventude passou, a maturidade tem o peso do ferro. Tens uma palavra de companhia?
A nossa força agora é outra?
Porque continuo vivo.
Beijo.




Paris, 11 de Fevereiro
Não fazemos o que queremos mas o que somos.



Paris, 12 de Fevereiro
João perguntou-me se fazia da minha vida "uma obra". Mas se é a única coisa que possuo de meu!
Concebi um anúncio radiofónico para uma empresa imobiliária. Durante oito dias deixei-me obsessionar pelo nome da empresa. Um tal esforço convenceu-me de que o melhor emprego para um escriba é onde ganhe dinheiro sem alugar os miolos.
De um lado eu a não querer ser distraído, do outro o mundo, a sua vacuidade, boas maneiras, o palco.  (De mim para mim existe já representação bastante para encher vários teatros. Mas estamos em via de redução de reportório: procura-se a verdade.)
Difícil dizer não aos outros e com que facilidade mo digo!
A única razão pela qual ainda me acho algum mérito é porque nunca hipotequei o presente por causa do futuro. Ou se o fiz, estava em causa a possibilidade material da escrita.
A cada qual seu preço.




Paris 20 de Fevereiro
Escrevo com a vida.
Vejo-me sempre por fora. Que espectáculo! Diariamente, em sessões contínuas: "Desespero e Solidão"...




Paris 4 de Março
As atitudes nem sempre concordam com os objectivos.



Paris, 30 de Março
O falhanço, o não ter acertado no alvo, o ser nada quando desejei imenso.
Não quero ver ninguém e que nem perguntem se existo.
Do outro lado do espelho.
Gostaria de me tornar algo mas nada me enforma. Talvez este desejo de morte que escondo. No mundo das utilidades não me há nenhuma e a sensação é de "a mais", falho de originalidade, o dizer sempre o que outros já disseram.
Não me sou.
Em mim, qualquer coisa é mas à revelia, ao contrário, e nem a assumo por impossível, ou tão pouco saber qual seja. Uma força que remói, puxa e, por fim, me desimporta. Talvez esse o problema: na sociedade onde urge querer coisas, não desejo nenhuma, e o que gostaria era de andar, andar, apenas, pastando pelo caminho. Mas a mãe quer-me diplomata, esposo de mulher rica e eu...
Eu não colo à paisagem, vago sei lá onde, e sinto-me incapaz de apego. E assim, não há mulher, ou homem, embora olhe a tudo tão intensamente que me esqueço que olho. Desconheço o fim disto e nem me preocupa a ausência de perspectiva. Falta de maturidade? Não, sou apenas assim.
O desencontro com Isto é tal que assusta. Ou dá vertigem.





Paris, sem dia marcado, Março
Durante um certo tempo preocupei-me com algo que me parece agora desnecessário, senão inusitado: ser escritor. Foi um erro. Escrever é independente da preocupação de sê-lo. Disponível, pois, para tratar das coisas práticas.
Abandono o ceticismo. Não se coaduna com a necessidade que a energia sente em fluir, dando-nos forma. Volto - se alguma vez a deixei! - à crença dos dezassete anos: tudo é movimento. Energia.





Paris, 3 de Abril
Antes da escrita o receio. Depois, o pudor, a timidez e o medo desaparecem, ficando sem saber que dizer, pois tanto há!
Desta estadia parisiense retiro uma ideia sobre as pessoas só agora tão clara: são lobos, feras em busca de presa. Para sua satisfação sexual, para todas as suas necessidades. A propósito de sexo: assumi numa carta a Lídia a minha vivência com Licínio. Ou seja, dada a mediocridade da moral eleitoral, pus termo a qualquer veleidade política de me candidatar a presidente de uma república. Serei escritor. Não é menos difícil.
Irritado com o telefone, mantive-o desligado durante quinze dias para não me interromperem com conversas talvez necessárias mas para mim inúteis. Gosto de estar em casa entre livros ou numa sala do cinema. Evasão. Assumo-a, não me obrigo a gostar disto. Depois, as mulheres. Ainda atraente, tenho dificuldade em evitar-lhes a corte. Mas quero dedicar-me ao pensamento, à reflexão e impossível fazê-lo com gente atrás. Provavelmente isto é consequência de uma mãe possessiva que quase diariamente me telefona e obriga a carregar com o Império às costas, quando de bom grado resignaria, pois ainda não me convenci da necessidade daquele para a vida de escriba. Neste assunto da mãe é difícil ver claro. Num lado a atracção, noutro a repulsa. Todavia, apesar da opressão materna que me poderia ter feito exclusivamente homossexual, a mulher atrai-me. Talvez porque a educação, no mundo dos anos cinquenta, ainda claramente dividido em masculino/feminino, me preparou para o papel de "macho".
Alheia às nossas necessidades profundas, a educação que não nos respeita, prepara-nos para o fracasso.
O conhecimento da coisa em si é-nos impossível. E que importa? O mundo não existe para nós? Somos o seu Outro.



Quanto mais saio mais quero estar em casa. Sofrerei ainda os efeitos da venda dos meus trabalhos na rua, da minha exposição pública? Saboreio o silêncio da casa e temo perdê-lo, ter gente por alojar, recebê-la, coisas assim. O convívio é-me penoso. Porque afinal me fujo? Fuga pelo menos à perseguição familiar: não pedi nada, não quero nada e a mãe, no intuito de me conseguir trabalho, põe funcionários da presidência da república, em Lisboa, a telefonarem-me para casa! Assim, o esforço por deixar o seu domínio logo se torna inútil, acarretado-me ainda um sentimento de impotência mais o desejar-lhe mal, com o consequente remorso. E no fundo... No fundo quero que me larguem ou sou eu quem não larga também os outros? Seja como seja, penso cada vez mais em desaparecer. Sair pela porta do cavalo sem avisar. E fá-lo-ei. Já por questão de sobrevivência. Preciso de “matar” a mãe, impedir-lhe a intromissão na minha vida, pois o ódio que assim lhe quero, toma-me já em demasia. E todavia... É isto verdade? É.  Eu... (eu...) preciso de uma decisão... Porque temo a escrita, que este problema ma impeça. Sim, devo mandar algumas pessoas à fava e com um grande F.
Dia seguinte:
Deitei-me e acordei com o sentimento de que escrevera neste diário páginas reveladoras. Vim relê-las. Afinal... apenas vida. Como desapontarei os possíveis leitores com o indivíduo que aqui encontram: um ser tomado pelas coisas, a mais das vezes incapaz de dominá-las e logo subjugado! Mas suficientemente lúcido, é verdade, para se perguntar se nesta sua exposição não há ainda o prazer da abjecção, do destruir mitos, imagens. E se, afinal, tudo não é artifício, apenas literatura! Seja! Esta  me suicida, nela ressuscito.
Pura escrita.




Ora me iludo, ora dor imensa. 
Nos piores momentos a questão é indiferente: não sinto.



Paris, 15 de Abril
Compreendo que raros deixem a fachada para se verem no espelho de si próprios.




Paris 19 de Abril
"Nenhum dia sem linha"...
Nada ocorre que valha ser aqui posto. E todavia não se trata de aridez. É outra coisa. Uma calma, como depois de muito percurso andado, a qual deixa não apatia mas indiferença. 
Por vezes obrigo-me à actividade, ao fabrico de coisas. E digo-me: estarás velho quando já não agires sobretudo sobre ti próprio. Neste sentido fazer-me alguém que não desmereça na minha consideração é o que mais me trabalha. Obra de todos os dias. Sim, a existência tem sido plena, vivida até à exaustão. E envelheço. Ainda não, no entanto, o declíneo. Mas o corpo gasta-se, os cabelos embranquecem. Que ficará ao cabo disto? Por vezes, parece tanto e, doutras, apenas razão de riso… Não,  não me sinto desiludido. Ao princípio o animal revoltava-se, debatendo-se contra a engrenagem; hoje, aceito-a porque me tornei uma sua peça. Porém, tenho consciência de não haver cedido muito. O gosto da batalha mais do que o da vitória. Um destes dias fiz um currículo com vista à venda dalgum do meu tempo e apercebi-me que, decidindo pelos onze anos ser escriba, me tornei no decidido. Realizei um desejo de menino e, se cada um de nós fosse menos resignado, ou cobarde, contribuiria para uma humanidade mais feliz. Mais plena de indivíduos únicos e, logo, menos amorfa. Por cada humano que vinga, quantos não se suicidam, continuando todavia a nosso lado, mexendo e fazendo ruído? 
E sou feliz, desta felicidade de galinha que põe um ovo, olha-o, e diz: "Aí está! Ponho ovos e logo, sou galinha!". Por vezes pesamos tanto que se nos vai a graça. Doutras, damos graças por fazermos connosco o que desejávamos. Mas anseio - preciso -  de mais tempo para a perfeição. Passei quase vinte anos a juntar esboços e não quero morrer antes de revê-los.
Que o destino se cumpra.




Numa igreja onde tocavam Messian, Paris reconciliou-se comigo. Sensação de não deixar a cidade tão cedo. Curiosidade de menino pequeno antes do circo começar.




Paris 16 de Abril
Ao telefone, a meio da conversa, a mãe deu-me esta manhã a notícia da morte de Licínio. Como se de qualquer outra pessoa ou contasse o último "fait-divers" "Ah é verdade, sabes quem morreu?"




Domingo à tarde nas festas das associações emigrantes a vender "Cantares", reunindo dinheiro para a semana. "Quer ver se gosta?"... Ah, se a música emudecesse, os cantos gelassem e tudo gritasse, de modo a petrificarem-se as estrelas: "Desapareceu quem muito o Carlos amou!"




O respeito por quem já não é, pela presença d'ora avante invisível. O nojo. A repugnância. De um lado o morto - que nada quer connosco - e do outro nós, que já nada dele queremos e muito menos que nos chame ou deseje para companhia.
Nada disto sinto. Antes lassitude e impressão de vida por viver, alimentá-la até que vá também.




Paris 20 de Abril
Outrora o ódio contra a sociedade que privilegia os ricos, os poderosos. Agora... A espécie é igualmente vítima de si própria, do instinto e a junção de mais de dois humanos tem pouca possibilidade de instituir algo que reflicta o que de melhor há em ambos. O homem ou a mulher unem-se para se defenderem e o social será sempre uma armadura contra a natureza, contra o Outro, do qual  cada um sabe a força, a maldade, pois em si mesmo as reconhece. Por isso já não odeio mas compreendo, embora a compreensão não me leve a aceitar o socialmente instituído.
O que se não expressa, não é.
Quero-me conforme ao que sinto.
N' "O Sucesso" a idade do rapaz encontrado por "Maurício" nos urinóis tem descido. Os hipócritas ou "distraídos" acharão chocante. Mas não os escandaliza a quantidade de crianças que diariamente o mesmo mundo conduz à prostituição. Canto o desagradável? Por cada um que diz "O rei vai nu"  milhares gritam que ele “veste damasco!”
Escrevo o que sinto e nenhuma glória há no que faço. Existe, sim, o desejo de não mentir. A escrita mantém-me lúcido.

Desejei dedicar-me à política. Acalentava-me a "justiça" que fomentaria mas, no fundo, queria o domínio. E fui um homem sem escrúpulos, desinteressado de quem não lhe servisse os propósitos. O mal advém da vontade de poder.
Agora refaço-me.
Lambo as feridas mas as cicatrizes perduram. A escada que desce ao abismo é funda. Tornei-me calculista e o lobo substituiu o poeta. Abomino quem fui. Dói o mal que desejei e o desprezo que quis. Tive que sabê-lo para chegar aqui? Não sei. Lançados na nossa travessia nunca sabemos o que encontraremos.
Serei exclusivamente homem de letras.



Paris, 25 de Abril
Finda a escrita, desaparece a euforia, fica o vazio mais o quotidiano. Como se me fizsse de papel. Sem este, não passo de uma avidez de preenchimento.




Paris, 1 de Maio
Escolhe-se uma hierarquia de valores por horror ao caos. Mas o horror ao caos tem servido ao domínio do caos de uns sobre o caos doutros.
Romance com Lénia. Escrevo-lhe cartas amorosas e pergunto-me se o que sinto não passa de uma muito agradável invenção minha, para que o tempo não seja tão sem nada. Ninguém deveria apaixonar-se por mim. Há seres que deveriam transportar um aviso: "Consumo perigoso!".
Dificuldade em decidir. O ano chega ao fim em Paris e interrogo-me se voltarei. Como se me repugnasse a cisão. A indiferença que o exterior me provoca e a necessidade de escolha, quando as coisas me são a maioria das vezes sem importância, traduz-se num  esforço sem glória e pura perda de tempo. Também os outros não me são imprescindíveis e a sua constante necessidade de serem necessários, ou que deles necessitem, distrai-me do essencial. Desaparecessem todos e a minha vida continuaria, desde que houvesse terra produtiva. Impossível a vida olhando continuamente o sol? Não acho. Quando me sinto cansado adormeço e olho espantado o sonho. A admiração pelo psíquico não me tem limites e o desejo de saber também não.




Paris, 4 de Maio
A admirada cretinice dos que me viram oficialmente convidado para um espectáculo pela embaixada portuguesa e hoje deram comigo a vender cadernos à porta de uma romaria popular! Todavia, não será a "oficiliatice" que me incapacitará a venda da minha mercadoria como qualquer vendedor de limões. Claro, para quem me viu hoje a estender a brochura e a perguntar: "Quer ler!" devo ter descido milhares de metros”! Mas o importante é que, graças a essa venda, ainda não necessitei de fazer oficiais salamaleques. Ou seja, o povo paga-me o papel, a tinta e eu devolvo-lhe com devoção a minha escolha de tornar literariamente Portugal um pouco maior. "Cantares" vende-se e sorrio-me matreiro quando uma camponesa já muito aburguesada me diz "Não. Não quero" e, depois, não tira os olhos daquele verso "Proibi a memória de te recordar...", acabando a perguntar-me: "Quanto quer por isto?". Ou eles, os maridos, endomingados nos fatos muito azuis a olharem-me o caderno "Para que é?", a folhearem-no um pouco e a deixarem sair: "É bonito, sim senhor! Ó mulher, dá aí dinheiro para pagar isto!"




Paris, 5 de Maio
Prazer de estar só. Desliguei o telefone e, à parte o tempo gasto a fazer comida, no resto do dia trabalhei. Jules Renard no seu diário diz que se esquece de que só o trabalho pode trazer satisfação. Eu - que aprendi isso desde há muito - não quero esquecê-lo.
Numa das aulas de linguística fala-se do autor, da sua morte. A vida deste deixa de importar para a compreensão da sua obra. De facto, transportar, além da escrita, também a vida para dar a ler, não é lá muito razoável.
Quis saber tudo de mim e ainda não acabei. Visto ao microscópio não há herói que resista.
Não me agarrar nem a pessoas nem a coisas: hoje pensei de novo nisto. Talvez um dia ache este diário inútil. Pela leitura do de J.R., dou-me conta dos raros acontecimentos que este inclui. Coisas exteriores, quero dizer. O que denota a pouca importância que o fora de mim me tem.
Progrido na análise dos sonhos. Nem sempre é cómodo o que se vai percebendo mas a teimosia em querer saber quem sou, é, talvez, o único mérito que me encontro. Um dia não investigarei mais e ficarei a observar os outros?
Não sou de companhia.




Paris 4 de Maio
Se me dessem um emissor que chegasse a todo o mundo diria: viva a vida!
À medida que este diário avança mais me questiono porque o faço. Obra literária? Ao início achava que não. A literatura não entraria aqui, ficava à porta. Mas onde? O instrumento com que escrevo é um eu que preenche eus de ficções. Ora, não alimento também aqui uma ficção, a da continuidade de um certo indivíduo que anota os seus dias? Há pois um eu que fala nestas folhas e tem de constante o ser autor delas, assumir como sua uma escrita. Mas a minha identidade é esparsa, só nos pontos de vista existo.



Readquiro a disponibilidade que sentia quando marginal, não inserido no processo produtivo. A pressão quase me tornou número. Mas o verniz estala e renasço.




Paris, madrugada, 13 de Maio
No sofá da sala, antes de me deitar para dormir, olhei o outro lado vazio e pensei "gostaria de receber a visita de meu pai".
Acordei há pouco com o sonho de que ele estava prestes a entrar.
O soalho range.
A sensação da presença de alguém é nítida. Penso que talvez pela rádio meu pai possa comunicar e abro o aparelho. Chico Buarque d' Holanda canta: "Morreu num sábado atrapalhando o tráfego".
Soube da morte do meu pai num sábado...
Escrevo isto agora mesmo para amanhã de manhã, quando acordar, ter a certeza de que não foi sonho.
A sensação de ser observado continua.




Paris, 16 de Maio de 1986
Nove meses de auto-análise de sonhos: faço por me tornar no que descobri. Sinto-me melhor mas houve alturas em que... A redescoberta do meu eu religioso. A redescoberta da ligação com o Cosmos de que andei arredado por uma condução dos assuntos psíquicos exclusivamente racional. E o sentir este diário no fim. Que desejo dar-me à contemplação e à tranquilidade que nascem do estar em paz comigo, depois da imensa volta levada a cabo. Fiz, experimentei, sacudi: estou saciado e o tempo da reflexão chega. E também o das longas viagens, das longas ausências...




Paris, 20 de Maio de 1986
Quanto mais me encontro mais os outros se aproximam de mim e, em meu torno, cria-se um espaço de atração. Quem sou para que assim me queiram? Ou antes: quem se fizeram os outros para que os abale tanto? Máscaras pouco seguras que um vento mais sincero abana e confunde?
Já não me canso do que se ocasiona. Aceito. Por vezes gostaria de conservar indefinidamente uma mulher meramente companheira. Por agora parece impossível.
Perante o ser livre as amarras do hábito caem. À semelhança das prostitutas, o celibatário ajuda à manutenção dos casamentos. E como aquelas, também ele conhece melhor a sociedade.
Doce não haver quem interrompa a escrita.
Por vezes tenho o sentimento de viver em tão profunda harmonia que basta que me escute para seguir o deus. E todavia não penso a espécie humana indispensável.
Deus traduz a objectivação de um projecto utópico que  - na nossa concepção de mortais e finitos - deveria existir, tal uma plataforma onde desembocasse o percurso da vida. "Aceitar Deus" significa, para o comum deste final de século, reconhecer em si a existência dessa dinâmica ou  energia.
Difícil sentir o que se sente e não o que desejam que se sinta. Mas quem sente o que de verdade sente, sente o lume da consciência.




Paris, 31 de Maio
Como se tivesse deixado de existir. E cada vez mais escrevo o vazio. O abismo. Não negro mas branco, transparente, sem fundo. A impossibilidade de ser? O nada, em suma, o seu dentro.
Não apetece falar do que tenha nome. Do indizível, sim. Dizer desse outro lado da expressão, do silêncio que murmura, rosna e mesmo mata. Morro-me de não me calar, de prosseguir nesta via falante onde há sempre por dizer mas ouvindo-me cada vez menos. Ponte, apenas. E não é literatura. Antes qualquer coisa que nela nasce.




Paris, sem dia marcado, Maio
Sou o locatário de um quarto que toma a cor de quem o ocupa.




Lisboa, sem dia nem mês
A sedução que os outros me encontram, surpreende-me. Agrado-me tão pouco!
Este diário balbucia. Como eu. Por uma questão de desenfastio e, também, para juntar dinheiro para o café e o cinema, vendo de novo na rua.
Mês intenso.
Dissuadi Lénia de ir para Paris. Não me parece possível coabitar com alguém, perdi-me na incapacidade de assumir os meus sentimentos. Ou, de tanto assumi-los, deixaram-me de ter importância, tornando-se coisa acessória e não principal. Agora não sinto. Sobrevivo-me. E gostaria imenso de ter paz mas só a morte ma trará. Ou o olhar das coisas através da grande indiferença. Quando sinto, porém, é como se outra vez acordasse para a vida. Fosse seu igual. (Sentindo-a demasiado, ela tornara-se-me mortal. Olhá-la de longe foi a solução ou o ópio)
A quantidade de folhas que escrevi faz-me sentir absurdo, votado a trabalho inútil. E todavia continuo. O aborrecido foi os outros (os mais próximos) haverem dado por isto. Não me sinto escritor nem sei o que tal seja. Segrego frases como outros suam dos pés. E diz-se que escrevo.
Concluí "Le Succés". Trabalho que me ofereceu o único pesadelo sério de que me lembre em adulto, quase a visão do terror em puro. Acho que é uma peça que funciona. Um "boulevard" negro. A seguir trabalharei "O Mar". V.F., numa entrevista, diz que um indivíduo publica cinquenta páginas nas quais conta a própria vida e logo se acha escritor. Neste aspecto gosto de escrever com ideias. Mas elas são tão raras. Breves lampejos. O "já dito" é a norma. Que também todo o escritor - diz ainda V.F. - o é de um só livro. Em acordo. Nunca deixei de escrever a mesma história, a de um amor, o Amor.
Decidido a editar.
Hoje sinto-me e o estado é descontente. A perspectiva de voltar Paris aterroriza e, ao mesmo tempo, desejo-a. Os primeiros seis meses foram difíceis.




Paris, 5 de Junho
Não acabarei o curso de letras. Perco o meu tempo e, mais grave, o meu maior bem: a possibilidade da escrita. Desejo o que os outros mais temem: a solidão.


Paris, 6 de Junho
Dia de pesadelo.
Acordo com a sensação de um vazio mais agudo que nunca. De perca algures. Engano. Paris distrai-me. Deixa-me fora do essencial. Esta gente que corre, telefona e contacta na euforia de não cair da teia. Desejo a solidão. Que me esqueçam! Difícil o acabar este diploma. E falta uma única cadeira! Que sacrifício! O nojo do que não agrada nem interessa. A dificuldade do viver em sentido unívoco sem que o exterior ria, zombe e mate. Nada é sério ou talvez  apenas o nada o seja. Literatura. Tudo mo é e não sou senão frases mais ou menos escritas. Sem qualquer certeza. Vivo uma consciência que não me pertence. Coabitação difícil.




7 de Junho
No caos a escrita surge como aresta onde o resto ganha sentido.
Nada me sustém. A sensação do perdido e da derrota são grandes. Mas jogo. Não me reconheço nas marcas  alheias e, com o desabar dos valores não mercantis,  resto-me sem referência. A dignidade, a honra, coisas que conferiam ao humano a medida do seu dia-a-dia desaparecem na voracidade dos apetites ligeiros. A sociedade do espelho. A idade média ligava o homem. A burguesia isolou-o. A tecnologia torna-o aparente. Mas reage-se e a religião recrudesce. Anuncia-se outra época. Talvez ética.



22 de Junho
Contradição entre o desejo de morte, de repouso absoluto e a necessidade de concluir a obra, não deixá-la inacabada. Disposto a tudo para consegui-lo.
PS. Tudo?



25 de Junho
Nada. Sensação muito clara de que não há senão o nada. E serenidade perante a constatação.
Falecimento de J.L. Borges do qual cito "A minha grande esperança é a morte". E eu? Espero o quê? A incapacidade de viver o presente torna a esperança uma fatalidade. Durante muito tempo quis acreditar e acreditei. Agora tudo é calmo. Também vazio. Não porém, menos pleno. Olho as coisas na nitidez dos seus contornos, sem metafísica. Dispo-me de saberes. O grande incómodo é a fome. Assim ou assado a existência resulta sempre em sensações existenciais. Nenhuma bandeira a assinalar chegadas ou partidas. Invenções de percurso. O homem atingirá a plena consciência de si, o claro ser? Sempre a vida por viver, o quotidiano. Pobre diabo! E no entanto, pela sua finitude, comovem-no as estrelas. Não será tudo uma longa viagem? Nada é definitivo para nós.




Lisboa, 26 de Junho
Fulano de Tal diz-me: estou quase a ser uma vedeta!" Pergunto-lhe: "a que sabe isso?"
O meu desinteresse por "vingar", como se diz, no sistema, é nulo. A custo cumpro as burocracias indispensáveis à compra da casa da Rua Augusta, em Lisboa, a qual o senhorio quer vender e de que todos dizem "é de não perder!" E lá me esforço por me convencer da sua necessidade!
A morte é a meta, a escrita o caminho.
Vender na rua é uma forma de ganhar dinheiro com qualquer coisa que me diz respeito mas tenho asco a vender-me e será porventura a incapacidade que me leva a exibir como autor.
Alívio enorme por saber que não fui premiado no concurso literário da emigração. Afastar o mais possível a integração. Apenas gosto de escrever e é um contratempo toda a gente que encontro e me força a beber um copo e coisas assim.



Sem dia marcado, em Junho
Tarde de calor parisiense, quase a entrar em casa, aborda-me um miúdo africano, à volta dos dez anos.
- O senhor desculpe mas era capaz de me fazer um favor?
- Se puder.
- Tenho a certeza que vai dizer que não...
- Não sei.
- O meu pai está com um pé muito doente e eu gostava de ver o pé do senhor para comparar com o do meu pai.
- Como?
- O meu pai está com um pé muito doente e eu gostava de ver o pé do senhor para comparar com o do meu pai.
- Ah!
- Podemos ir ali para a entrada daquela porta?
Acedi e, na sombra de um anónimo patamar, descalço o sapato e a meia, apresento ao garoto o objecto do seu desejo,
- Porque é que o senhor sua?
- Porque ando muito.
- Posso dar um beijo?
- Sim.
- Muito obrigado meu senhor, muito obrigado.
Subido ao meu apartamento - a cena era na minha própria rua, na l'Ermitage - fui à janela ver se o garoto era verdade. Sim, lá ia ele, no passeio, com o ar de missão cumprida!



O silêncio empalidece.
Finjo o papel de escritor que conclui um curso para não cair na sarjeta. Aqui ela é mais visível porque o céu menos azul.
De acordo: tudo é inútil. Mas a fome existe.
Um anúncio na parede: "Bebe vinho - Transforma as coisas!"



Lisboa, 1 de Agosto
O telefone toca e digo-me: ora atendamos placidamente  um telefonema. Afinal é Marta: "Sinto-me muito comovida com o teu escrito Tal" (emprestar-lhe para leitura).  Solto uma gargalhada, como quem ri da inocente partida que pregou, e por resposta, ouço um... copioso choro! Do outro lado a comoção é, de facto, enorme e, à pressa, tento pôr-me ao nível da interlocutora. Mas foi há muito que li o escrito que Marta, porventura, terá ainda sob os olhos e a placidez com que atravesso o dia tão pouco me impulsiona a grandes sentimentos. Por fim, acabado o  telefonema, nova gargalhada me acossa! Sou feliz! Fui percebido! E vem um sentimento preciso: não apetece ser conhecido, prefiro passar por entre as ondas do mar como se fora mais uma.


Lisboa, 9 de Agosto
Tempo difícil.
Desligo o telefone e à porta mando dizer que não estou. Mas o aborrecimento permanece. O mundo do supérfluo, da vaidade, do acessório, do domínio e da riqueza entra-me pelo Outro. Tenho ouvido arengas intermináveis sobre a arte do "saber viver". Receitas. E discursos do medo. Limito os contactos ao indispensável. Aos que me desejam na cama respondo com vómitos.




Paris, 27 de Agosto
Um escritor desaparece à medida que escreve. Quando já só é papel cumprimentam-no pelo suicídio.



Lisboa, 18 de Setembro
Cada vez mais dolorosa a perca de contacto com o âmago.
Apatia activa.
Tanto faz e, desperto, assisto à indiferença. Um destes dias pensei que poderia queimar os escritos, a papelada, e que me sentiria melhor, mais livre, menos comprometido, pesado, preso. E seria bom. A existência do que escrevo é-me indiferente. Por uma questão de levar as coisas a cabo, no entanto, pensei dedicar os próximos meses a colocar em forma definitiva, organizada, a quantidade de papéis que me jazem em volta. E depois morrerei. Ou começará aí a vida? Que tenho feito, desde os dezoito anos, senão viver para escrever? Não no sentido de não fazer outra coisa mas de, materialmente, colocar-me sempre na situação de poder fazê-lo. Outra constante tem sido o desapego. Nada interessa. E, aparte o tempo da primeira paixão, nunca senti. Depois, a droga desresponsabilizou-me e durante algum tempo não fui eu: tornei-me desatento.
Admira-me a continuidade deste diário.
Sensação de que não vivi mas escrevi.

Lisboa, vinte e três de Setembro
Dias em que tudo vibra e sente, em que o Sol aquece e inflama, momentos em que a vida, de tão brilhante, devora o próprio desejo de viver.
Momentos tão uníssonos com o Universo que as lágrimas, que então assomam, são pérolas de chuva.
Viver de acordo consigo é a única coisa que vale a pena. Ainda que conduza a uma pena de morte.



27 de Setembro
Um só desejo: escrita.



Sem dia marcado, Paris, em Setembro
O nojo do trabalhar todo o dia para conclui-lo vazio e ausente.
Porque me irrito?
Porque me deixo embeber no reino das necessidades dos comuns mortais sujeitos à publicidade e vítimas dos bons costumes?
Quero viver longe disto e dar aulas para que me convidaram num tal Instituto de Teatro soa a armadilha.



Dias que ferem a pele e deixam rasgos de lâmina.
Dias em que a divindade se nos escapa e, fora de toda a harmonia, somos estrondo, caos e sombra.



Um de Outubro
Não tenho sentimentos e, se me assome algum, entretenho-me a ver-lhe as causas. Por fim, sinto apenas uma sucessão de fenómenos.



Lisboa, oito de Outubro
Cada vez há mais velhos, mendigos e estropiados nas ruas.
Otelo continua a ser julgado.
O novo estilo do presidente consiste em mostrar ao mundo a tranquilidade da classe dominante em Portugal.
À medida que envelheço o sentimento de injustiça social apura-se e sinto-me cada vez mais incapaz de condenar um ignorante.
Como convencer um rico a ganhar menos dinheiro?
A humanidade precisa de um contrato social diferente, inverter os valores que julgam as coisas e os homens.
O honesto passa por parvo e a regra é o apelo ao instinto mais primário. O domínio é a origem do mal social.
Nota-se uma transição mas o futuro surge mesclado de crueldade. Uma crueldade civilizada, refinada.




26 de Outubro
Noite criança. Começa o frio que só é fresco ainda. Não fui para Paris. Impossibilidade de saber… Ia a dizer: "de saber o que farei dois dias depois..." e no entanto... Necessito de acabar com a venda directa. A vida activa é-me desagradável mas consigo mesmo nadar diariamente. Porém nada me interessa e ficaria de bom grado o dia todo em casa, apenas com papel e caneta. Nenhuma vaidade no que os outros dizem que fui capaz de fazer e, inclusive, irrita-me que falem disso. Gostaria de ser só. A política causa-me náuseas e todo o ajuntamento humano lembra-me a imagem de um grupo de macacos em reunião. O humano uniu-se, primeiro para dominar o ambiente e, logo, o Outro.




Paris, sem dia marcado, em Outubro
Já pensava que conhecia Isto. Os internatos, as burocracias, os bonbons envenenados, as terras de acolhimento para refugiados de ditaduras (e as  ditaduras) os seres que isto habitam e o são. Mas, quanto mais conheço, mais o horror cresce, culminando no encontro do homem e da mulher-números. A vida aviltada.
Viver tornou-se um inferno.



11 de Novembro
Deixei de fazer diário, pois rareiam os momentos de calma e percepção nítida das coisas. A vertigem, pela voz dos outros, invadiu-me e o medo fez a sua entrada na carruagem dos ratos. Por um lado quero apenas a escrita e, por outro, ouço os demais com as suas invectivas: "Vê lá o que fazes! Trata da vidinha!" Há alturas em que resisto e disponho-me à morte, para não haver sido senão escriba, noutras porém, não vejo caminho algum e tão pouco sei como sobreviva. Depois, o tempo passa e lá vou ficando... e outra folha se rascunha. Oásis no meio da viscosa dúvida. Até onde se aguenta? Enquanto escrever - respondo.



Quatorze de Novembro
Talvez tenha hoje escrito de novo, alcançado uma vez mais aquela atmosfera que, ao envolver-me, me adensa a plácida tristeza do ser, sem risos nem foguetes. Uma graça de mim próprio no meu último deserto.




Dia de aniversário
Nenhuma vontade de sair e aparecer em público. Que não me chamem nem proclamem a existência! Se me sinto bem só, para quê obrigarem-me a praxes e companhias? Ficar quieto num canto, com folhas à frente ou nem isso: apenas o nada, o vazio, deleitando-me já a leitura do mundo.
De mais não preciso.
A vontade de escrita desvanece-se. Ou durante algum tempo (um mês, dois, mais?) esteve ausente, não fui como habitualmente; e não me senti mal, embora na verdade não saiba o que fui, ou aconteceu: tempo sem pena e logo um nevoeiro portátil e todo interior me acompanha.
A vida não tem fim nem cura.
Mas sim, que não me falem e perguntem como estou ou o que faço! Que tenho a ver com tais perguntas! Uma máquina, ou apenas um papel com tinta, e a coisa corre como seiva que se liquefaz no ar que respira.
Gostaria de inventar um longo escrito para não parar de escrever, evitando os capítulos, os intervalos, ainda que tivesse de contar o nada, o movimento gratuito do para coisa alguma, o prazer do refazer o código, ensaiar palavras ou nem isso, apenas a sua musicalidade nos ouvidos, diluindo-me nela. E esta coisa que diz e não se cala, como mulher tagarela ou homem sem medida, sempre no excesso da verborreia. Se alguma vez pudesse dizer tudo... Não me alimenta o dito mas o não dito, o implícito, num jogo que mostra o possível e sabe o outro lado sempre escondido, colocando palavras como quem lança terra na sepultura, cobrindo o escândalo, originando uma pequena saliência, ou mesmo monumento, o lugar do morto, a palavra revelada, transviada, pervertida. Sou o que nada diz e a quem o nada nutre, o que no esvaziamento finalmente se apreende.



Nunca tinha tido trinta e seis anos. Afinal é isto. Mas isto o quê?
O juízo, o ar de adulto, tudo...
Asco.



Emprego no ensino: dou aulas de “História do Teatro” num instituto, o IFICT.



Lisboa, dezasseis de Novembro
Tudo se afoga, não há escritor, não há folhas ou papéis nos quais se disse que a vida nada valia perante uma ideia: tudo é branco, vazio, inútil. E os anos passam e o nascer foi lá atrás e a morte há-de ser um dia.
Deserto.
Olho a mesa de trabalho e sinto-a alheia. Que tenho a ver com isto? Que fiz à vida? Uma montanha de papel inutilizado e, de quando em quando, uma sensação de plenitude. "A minha vida e a minha obra são a mesma coisa" pensava hoje. E espanto-me. Viver o que é? Uma sucessão de momentos, dias, por fim, anos, décadas... Ao inicio, a sensação de uma diferença enorme e de algo terrível a dizer. Depois... Que sinto já? Pasmo. Fiz ontem trinta e seis anos e não sei o que seja esta idade, ela não me diz ou é este desencanto por, afinal, ser assim "quiseste ser escritor, ora sê-lo!" Vazio, como se a escrita se fizesse contra mim, levando-me nela. Já quase não falo do que me cala fundo, como se receasse a ablação da última intimidade. Tudo se revela. Tornei-me coisa manifesta. Oh, a ideia que algures se faz do artista: jovial, despreocupado, boémio...
Eu, uma noite de nevoeiro.



Dezanove de Novembro
A luz e o sorriso teimam no recôndito do forro mais surrado. Não morri. Que acontecerá aos mais? Terão a sensação do êxito ou do fracasso? Deve ser desconfortável sentir que se viveu para nada, que tudo foi ao contrário do que se esperava. Neste aspecto a minha vida é um sucesso. A diferença é que ser escritor não sabe ou sabe a oco.
A vida a preencher folhas, a maioria das vezes levado pela necessidade de não dar em louco, tentando o equilíbrio pela escrita, a ver se ela me afirma, pelo menos no próprio acto em que a faço, procurando a certeza de que existo, de que não sou uma miragem. Ignoro quanto tempo isto durará, talvez a eternidade mas, desde que o papel não falte... No entretanto esqueci-me de ser, de cuidar do meu jardim e perco sistematicamente os comboios nas gares dos outros. Busco-me aflitivamente em sonhos e em todo o lado que me diga respeito. Com isto, todavia, ganhei ternura pelos demais. Mas nem sei o que sinto. Como se o acordar de um pesado sono e ver-me submerso num mundo alheio, descobrindo-me no entanto no aquário que eu próprio enchi.



21 de Novembro
Não sei.
Não tenho certeza alguma e o que for, será, num fatalismo que não sabe donde vem, se do medo, se da angustia ou é propriedade da vida. Mas continua-se, força investida da necessidade de derrubar arenas e despedaçar toureiros. Que não me gritem e falem em certezas ou mortes ás quartas-feiras. Que interessa isso quando o prazer e o riso são a lei que se deseja? Ah, guardem os comedimentos para os domingos de missa e as fotos no álbum de família. Eu sou vaga ao invés em praia de areia desmedida, sob lua furiosa de mercúrio. Que esta escrita não desdança e segue todavia literatura, bem feita, bem perversa, coisa de ler e guardar na livraria. Não vale a pena, quem me afirmou de leitura? Conjuguem-me escolarmente os verbos e rimem em doces redondilhas mas fique-me a vida. Isto tem medida? Meu escrever, por de meu uso tão alheio, já me nauseia: que sabe da cartilha gente sem pai nem beira? Por mim, filho do destino, só a contrariedade me vomita, num âmago de fel em rama florescida. Ó ai, ó linda, a tua saia roda num vira de fúria... Chega, chega! Não dizer mais, a voz silenciada em teima de coisa alguma, derrame de mágoa por não ser invisível, coisa definitivamente dita. A vida o que é, senão desejo intenso de vertigem? Tirem-me daqui, este trapézio não balança e, lá em baixo, os espectadores esperam a queda do artista. Não tornem a ferida salífera que sou mina de cor viva e os mineiros é a mim que delapidam. Cala-te de vez, ó voz furibunda que só alimentas literatura e é sempre aquém. E todavia... Mas mando? Faça-se dia e reine a harmonia que em mim só há trevas e baralhos de cartas de espadas uma. Que sou coevo neste ser assim e, diariamente, me suicido como menino de coro em eucaristia. Não me leiam que já o meu dito se volatiliza e noutras esferas o raio ribombardeia. Mal sem cura, cancro da linguagem, abertura por onde se me escoa a vida, ali  vai o escritor, o teatro onde o pano nunca cerra ou a cena atinge mesura. Ponto final parágrafo, fim de página! E no entanto... Impossível. Uma catástrofe emperrar-me-á a linha? Doutor, a tragédia é ininterrupta, meu dizer uma doença maligna e já uma conjunção coordenada se anuncia! Horror! O texto não acaba! Folhas, folhas que amortalhem em camadas sucessivas minha vida escriba. Mea culpa.





Lisboa, vinte e cinco de Novembro
Dia marcado pelos opostos. Prazer inefável de viver da escrita e frieza laminar do mercado. Depois, escreveu-se em texto a acerba realidade e esqueceu-se um pouco o seu incómodo. Cresço em "saber-de-vida". A dos pobres é triste, desamparada e, naturalmente, riem e divertem-se senão rebentavam de infelicidade. Riso e alegria como mera expressão de sobrevivência. E não podem ser gentis uns com os outros. Têm de ser mesmo muito maus senão morrem. A gentileza custa dinheiro.
Outrora era só ódio. Hoje ele subsiste mas tem alvos preferenciais.
Urgente reinventar novos contratos sociais.

Lisboa, trinta de Novembro
Confusão.
Desinteresse.
Nada para dizer e a escrita resulta do vício de pegar na caneta. Não corresponde já a nenhuma força. Cansaço? Andança? Não sei. Apetece dormir como se a solução estivesse no sono. Tenho que mudar de casa o mais depressa possível. Esta inibe-me. Sinto-me alheio e ausente. Deitar-me, sonhar e analisar os sonhos é o meu único interesse. Vontade de deixar tudo. As aulas não me dizem respeito e dou-as, embora me gratifiquem a outros níveis, na carteira, por exemplo.



Evitar a pose, "o" escritor.
Ontem vi-me na TV a interpretar "Título". Detestável.


Sem dia marcado, em Novembro
E o que fizemos, porque doutro modo não poderíamos ser, é-nos agradecido e julgado boa acção.



Dois de Dezembro
A leitura é o toque da escrita.
Um bocado de escrita bem construído resulta do trabalho, nem tanto do fazê-lo mas daqueloutro em roda de muitos textos que, por imperfeitos, se deitaram fora. Não alcançaram a perfeição mas permitiram-na a um vindouro.
Da utilização de um código comum a escrita torna-se propriedade alheia, foge ao autor, ao mesmo tempo que se atém a um registo privado. O escritor fá-la a seu modo mas, ao decifrá-la, o Leitor torna-a sua. Ambos cúmplices e co-criadores.
O artífice que faz um candeeiro deve utilizar certos materiais: fios, lâmpada, etc. Mas que exige a escrita para que agrade? Um "quid" que define o escritor. Na sua ausência, o escriba será um bom contador de anedotas, um bom conhecedor de gramática mas, sem esse mesmo quid, falta-lhe a distinção do génio, a capacidade de criar o nunca antes daquela maneira...




14 de Dezembro
Um Tal fala-me da minha figura na rua vendendo um caderno onde afirmo que me droguei com drogas duras. Mas se me decidi a mostrá-lo foi para desdramatizar o assunto, numa sociedade bloqueada por tabus e indigestões.
Período em que se não vislumbra muito além. Talvez deva investigar neste diário se durante o Inverno escrevinho...
Não vejo o meu papel na literatura mas o papel da literatura em mim, oh sim!
E nenhuma paciência para contar histórias. Em mim, só o prazer da escrita. Dará ela prazer de leitura?
É necessária muita teimosia para remar contra a coacção dos outros, o seu desejo de nos ver seguir-lhes a conduta.
Adoro o silêncio, o bater de um relógio de parede. E o nevoeiro. E levantar cedo. E os dias límpidos. Viver é inusitado.

Preocupa-me uma questão exterior à escrita ("eu escrevo?") quando, para escrever, chega a sua necessidade! Aliás ela alheia-se-me e a isto não é estranho o incentivo que o povo da rua me trouxe. Porque ao mesmo tempo esse aplauso enoja-me. Ou seja: torna-me nojento porque carente desse nojo. Decido, pois, não vender mais na rua. Assim isto se  torne economicamente viável. Porque o único dinheiro, ultimamente aparecido, proveio dessa mesma venda e das aulas que comecei a dar. Enfim, apoio também da mãe a quem, num arroubo de temeridade, disse: "Ajuda-me na escrita que quando render eu retribuo!"
Render!
Nunca fiz nada por render!




15 de Dezembro
Sentimento, não de ligação a um deus particular mas ao Universo, entendido como tudo o que não me é e sinto. A emoção pela minha pequenez e mediocridade é grande mas também me emociono por fazer parte de tão incomparável Orquestra. E desejo tocá-la, embora a eternidade não chegue para fazê-lo. E já a mágoa me toma por esta finitude, pela prece ser sempre aquém.
Nenhuma necessidade de partido religioso: sou a ponte.



Produtos contaminados por Chernobyl leiloados para servirem de alimento a esfomeados em África.
Esta ordem não presta.




Talvez escreva. Talvez alcance uma vez mais a plácida tristeza que se sabe destinada à morte. Talvez ainda o oásis no deserto que me atravessa.
O ser é inapreensível.
Daí a minha energia.



Vinte e nove de Dezembro
Não ser obrigado a existir de uma forma específica. E que os demais nunca queiram saber o que me é. Porque o que me é, são eles.



Confusão.
O actor, o escritor, o que gostaria de uma carreira política e tornar-se primeiro-ministro saciando os desejos da nação, tudo uma amálgama onde não há tendência que ganhe mas todas excedem em competência: não sei quem seja, e o que é nunca satisfaz, nunca é o que deveria ser. No fundo, indiferente a qualquer dos papéis, logo a insaciável ambição se torna desejo sagrado de nula existência.
Em contradições se passa a vida e de constante apenas a escrita, este debitar mais ou menos contínuo de um fluxo que, pelo seu simples fluir, me renova. E como só escrevendo me sinto escritor, não tenciono empregar-me noutra coisa, para que o delírio das possibilidades passe e uma única via apareça. Mas ser escritor ou assumi-lo significa escrever para leitores que nos esperam. Ora eu nem escrevo para um Leitor, ainda que hipotético, e na minha própria leitura encontro satisfação. Portanto a profissão de escriba não me existe e daí, creio, este sentimento de vida vaga e fluida, onde não sei ao certo o que nela faço, enquanto tantos papéis me apelam. Mas ressurja o desejo da escrita e tudo o mais se torna inútil.




Sem dia marcado, em Dezembro
Irrepreensível é o ser.
Votadas ao fracasso todas as tentativas de me encaixarem.



Sem dia nem mês marcados
O mundo burguês vende expressões a que chama Arte, regulamentadas por críticos que fazzem o papel de legistas. Por um lado sancionam o que não tem preço e, do mesmo golpe, mitificam o artista.
Não me interessa ter público.




Minha Mãe,
A impotência que sinto ao escrever-te, significa bem o poder que exerceste sobre mim e que, como todo o poder, tenta subjugar quem se lhe oponha. Consciente da perca da minha autonomia, combati-te, do que me resultaram não poucos problemas de consciência, pois não é sem danos que destruímos quem nos deu a vida. Derrotar-te, foi combater em mim a tendência para a auto-aniquilação, a facilidade, o status quo. E, no entanto, houve que contrariar a tua vontade sem cair na abolição do Outro, do poder em geral, do social. E quanto é difícil o meio termo a quem deve levar com êxito uma tal luta! Entre o desejar-te e o matar-te construí a vida.




Se alguns alcançam, ou mesmo nascem, mais predispostos à unidade do ser, ela em mim foi o produto de uma longa e conflituosa elaboração, durante a qual se me foram paulatinamente tornando inúteis os vários nomes com que baptizara as - parecia que inconciliáveis - tendências que em mim se debatiam: Águeda Bornes (nunca me soou nome feminino), Samuel Lara, Adélio Dias… heterónimos com que funcionei, embora o primeiro me surgisse, primeiramente como um pseudónimo que, pouco a pouco, se desvinculou da função. O meu próprio nome durante a desunião, serviu para alcançar o equilíbrio entre as várias personalidades, gerir a casa, digamos.





A Licínio
Dói a vitória da minha vida sobre a tua
e mais ainda ela servir a literatura
Mas se só a forma me cura...


























































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