sábado, 6 de novembro de 2010

1973


Graças ao amor não morri.



Odense, 28 de Janeiro
Zangado.
Lá fora faz um belo dia, ou como assim lhe chamam, enquanto o meu aspecto afasta mesmo o mais amigo.
Mas, escrito isto, sentir-me-ei aliviado, sorridente, até, e comerei, inclusive, o arroz que há pouco pus ao lume. Como se fora um normal comedor de arroz…
Merda!


Sem dia marcado, em Janeiro
Amélia,
Pouco a pouco, tudo se torna insuportável.
Como dar vazão aos homens e mulheres que, sei lá por que carga dos diabos, me habitam, principalmente agora que o nojo ao consumo me retrai o desejo de escrever algo com princípio, meio e fim? E já contrariado te envio esta carta, à qual não te sintas obrigada a responder, mas já não me satisfaz, como até aqui, arrumá-las na gaveta onde, aliás, o espaço já escasseia.
Sentado à normal mesa do quarto onde, à noite, se cumpre a função sexual e, de dia, a digestiva, nem uma ou outra, ou os mil livros que devoro, mais as gentes a quem falo, preenchem esta minha fome de ser deus. 
Nenhuma expressão me traduz e todas expressam a incapacidade do dito.
Precisava de explodir como um vulcão que vomita sem pré-aviso.
Onde a gente que, no lugar da cabeça, tenha o infinito.
Onde? 
Oh, morrer sob um colossal meteorito!
Sopra-me!
Beijo





Odense, onze de Fevereiro
Amélia
Esta a não sei quantas carta que te redijo na vã tentativa de esvaziar a força que acumulo, e vomita infinitas vidas do fundo do mundo.
Que fazes?
Eu sou teia que guarda amantes perdidos, memórias de risos outrora gentis. Sentir, em cada fibra que me urde, o mais leve fremir da terra, o vai-vem erótico do mundo.
Tocha de conteúdos em busca de formas-primas, sou um feixe de sensações que o vento dispersa. 
A minha vida é energia rolando por uma ravina.
Porque não me páras?
Beijo

 

 

Sem dia nem mês marcado

A escrita liberta e escraviza.

Mesmo no plano clínico serei “normal”? Mas para que quero eu os médicos mais à sua "normalidade psíquica"?


Bolas!

Recuso a escrita da minha zanga para que não ma comprem.

Fazer humanidades para ser humano!
Merda!


E sempre a impressão de que faço espectáculo!



Não pensar demasiado. Terça-feira sei a resposta do Flugninhaelp acerca do trabalho. Interessa-me ir. Ver como é. Não deixar o quarto. E talvez já tenha direito ao passaporte. Começarei em Março? Sim, aguento aqui em Odense até ao final do mês e logo abalo. Não vejo necessidade de me inscrever numa “high-school”.
Karen…
Talvez case com Karen e me naturalize. Mal tenha o passaporte. 
O barco nunca afunda e é mesmo possível evitar as tempestades ainda que estas o fortaleçam.



Merda! Merda! Merda! Merda! Merda! Merda! Merda!



Vapôr no cais dos outros sempre a partir de mim mesmo.
Sentimento de queda, de ligação ao nada ou a ninguém. Não quero filhos, criar ligações com uma sociedade que já tanto me aborrece. 
Evitar o medo de perder as coisas. Coisas são coisas, embora a vida passe por elas.
A minha diferença em relação aos demais será sempre o desprendimento: ligar-se é uma perda. Sim, o cavalo só é cavalo enquanto selvagem. Depois é… meio de transporte.
A liberdade brota de uma longa paciência. Unir-se a alguém uma perda? Não, desde que o outro permaneça livre.
A perspectiva evita o pânico.



Não quero sorrir.


- As batatas queimaram – dizem-me.
Que bom! Talvez se comam excrementos!



Amélia,
bom-dia, após um passeio pelo bosque com o Sol na boca, e a mão na mão da companheira.
Escrevi-te uma carta no decurso de uma noite fria, uma tentativa de sorriso por cima de uma lâmina crua. Hoje releio-a e nada me diz. Como vais por Paris que não me atrai tanto que da cama salte para um seu aeroporto? Viajar não cabe mais no tempo de um dia e todos os ecrãs do mundo não albergam metade da minha ânsia de espectáculo.
Habituo-me a saber de ti de tempos em tempos e também eu só escrevo se a felicidade (felicidade?) me afoga ou a depressão inunda. E ambas me esgotam. De ti, lembro-me quando a vida sufoca e o teu corpo perdoa a minha estreiteza. Ou quando a ferida do Sol queima.
Hoje, mais um domingo nesta pequena cidade de Odense, convencida que a habito a cada dia que nela acordo. Na realidade, nem mesmo o mundo nos conta por seus habitantes.
Aqui, a casa de uma amada minha, mar onde mergulho a minha sede de contornos por noites de exaltada frieza
Ao amor devo as sete vidas e graças a ele, e não a Deus, sobrevivi.
Beijo



Vivo num bairro onde nada falta e tudo se mede a compasso: uma zona em macadame para andar, outra de relva só para ver, uma terceira, e igualmente verde, para correr e, delimitado como o mais, um parque infantil, onde não há risco nem aventura. Mas o melhor, aliás, o indicado ou subrepticiamente aconselhado, será não pensar, deixando o tempo escorrer: a areia faz parte do relógio e de nada vale limpá-lo. E amanhã, que será outro dia, voltarei a cozer arroz neste fogão que ora uso, nesta casa que ora habito, neste Estado que ora me possui.
Merda!
Mas que outra coisa direi sem me abrir em sorrisos e democracias?
 
Farto de palavras e, no entanto, como ser doutro modo?
Sim, dormir com quem quero atingir.



















Nenhum comentário: