sábado, 6 de novembro de 2010



1977

Entre o mal e o nada…





Sem dia marcado, em Maio
Nova casa, cheia pelas memórias da defunta que cá morava. Somos cabazes de recordações.

Desperto escrevo. Desperto leio. Sou quem me faço, descontando quão já encontrei feito.
Ser quem seria se a emancipação se obtivesse - vá lá - pelos quatro anos.


Sem dia marcado, Agosto
Como se não fora eu quem agora me é, mas outro, alguém que todavia ainda não compreendo. E  acumulam-se as dúvidas: acerca do meu valor como escriba, da minha capacidade de resistência e, a pior de todas, dúvida na resposta á questão “Vale a pena?”.
Que decido?

30 de Setembro
Reencontro este caderno e de novo escrevo.


Madrugada de 7 para 8 de Outubro
Náusea.
Não há saída, há que viver até à morte onde tudo então acaba. Viver a morte.
Preso entre o mal e o nada.



10 de Outubro
Não quero esconder o que faço privadamente embora defenda a vida privada. Mas esta é uma ratoeira.
Pôr sempre tudo em causa.




15 de Outubro
Antes não consumir a ser escravo do consumo. A questão é a fome. E a casa. A primeira é fundamental e, quanto à segunda, há sempre uma caverna. No fundo, o problema reside em não permitir que o consumo nos contagie.
É tão bom um passeio a pé!




Sem dia nem mês marcados
As mulheres e os homens que amei... tanta gente que já não lembro. A minha cabeça – ou o que nela subsiste – é um cosmos em ebulição, um planisfério cuja leitura perdi.
Quem chama?
Afinal é em mim.




20 de Dezembro
Mais maduro, mais senhor de mim, com menos ilusões (cedo me afastei das “vaidades mundanas” mas  desprezo-as agora com mais consciência) mais sabedor, enfim, e, também, cauteloso.
Já não corro atrás do "diferente" e o desejo de mudança tornou-se mais profundo e paciente. Talvez comece a ser o que, pelos onze anos, me propus. Ou seja, vivo com a cabeça e a vida realiza-se-me segundo um projecto. Seria um modo de vida capitalista (poupar para chegar a...) se quotidianamente não pusesse tudo em risco. Aliás, a maioria das vezes esqueço o plano.



23 de Dezembro
A meio da montanha e com poucos víveres: parar é morrer e o regresso impossível.


Dia contrariado é dia que se mente.


A explicação está lá: pode é não ser legível.



A noite toma-me e eis a angústia.
Nem pai nem mãe e os deuses também faliram: contra o que quer que seja, resto. 
Assumo-me.
Quem dera a transmutação, o fim deste pulsar consciente, o alheamento do que me cerca.
(Porque escolhi isto e não outra coisa?)
Tragam a guilhotina! Lâmina,  desce!




Até onde?
Até não haver mais caminho.


Esta máquina de escrever é verdadeiramente notável, pois a cada pressão numa tecla produz letra e tanto mais quanto, em não me enganando, sai a que desejei.
Assim se vive de coisas pequenas que tornam a vida – a sua vertigem e solidão – um brinquedo a que, divertidos, damos corda.




Encontro com uma mulher, cujo sabor guardo.




Não matemos os inimigos mas não os deixemos conspirar.




Saturado desta teimosia. A questão é que não sei teimar doutro modo.
Sem dinheiro, terei de continuar por mais algum tempo solteiro. E um dia, terei finalmente aprendido a viver só. Autonomia?


Só é possível fazer da vida uma trincheira do Belo pela recusa da venda, pela manutenção, contra todas as seduções, de algo que permaneça alheio ao mercado
Hoje passeei como qualquer outro, procurando não pensar mas olhar de uma forma afastada, quase indiferente. Ver a tudo como um cenário bem montado, ao qual não colo e donde, todavia, já não caio.



Já não tenho medo do que penso e por isso me calo.



Somos um fenómeno tentando compreender outro.



Cada vez mais convencido de que viverei só.



Enquanto esperava Maria olhei as montras: espantado, descubro o consumo, a quantidade inusitada de produtos que servem o mesmo fim.
Miserável abundância.



Carta a mim próprio no dia dos vinte e sete anos
Acima de tudo – tens visto como é difícil mas o tempo já te mostrou que és um animal resistente – preserva na auto-suficiência.
Só perseguindo o que és, te manterás íntegro e obterás o mais importante: o respeito por ti próprio, a alegria de haver vivido a tua vida, seja ela, ou não, dura.
Vê como o mundo é breve e que o sofrimento resulta da excessiva (porque tudo é medíocre e passageiro) atenção ao provisório.
Se, chegado aos vinte e sete anos, continuas sem acasalar, continua então bravo como os gatos que, na avenida, não se deixam prender: a cela do sentimento  gera tortura. E porque condenado à lucidez, cuja vantagem é a larga vista que a sua janela alcança, não queiras diminuí-la.
Encara a vida como no fundo és: um indivíduo selvagem, nascido numa família-fantasma, e tira disso as consequências.
Não esperes por ninguém.
Ligaste-te ao movimento e não temas agora a velocidade: os problemas surgem à medida das respectivas soluções.
Mais que nunca, e vistos os outros, o mundo e a sua moda, desce ao que és: indiferente à posse,  interessado no justo usufruto e depreendido de tudo.
Ama a humanidade no que ela tem de aproveitável e a ninguém em especial.
Talvez te tornes um pouco seco, mas que importa? Acaso nasceste para convívio?
E só mais uma coisa: o ser é o que conta, não o que ele veste.
Olha, finge-te igual aos demais: é o melhor modo de passares despercebido e sem chatices.



Um bocado inquieto. Mesmo para um marginal (aqui entendido como alguém que não consome ou fá-lo o menos possível) viver está a tornar-se cada vez mais caro. Sequer tenho dinheiro para tomar um copo com os amigos sem que os obrigue ao gesto de mo pagarem. Assim, a mais das vezes fico em casa ou ando por onde não encontre conhecidos.
Vontades de me matar, ainda que pressinta que, se aguentar mais uns tempos, as coisas mudarão. Mas não me sinto feliz, não gosto de viver e o meu melhor tempo é na cama, na esfera dos sonhos.
Talvez deva abandonar o estado sedentário e voltar à vida nómada.



Acordado mas como se tudo se passasse ainda a dormir. Não chega a ser uma depressão, será antes.. Indiferença? Aborrecimento?
Sonhei que o meu quarto era o Terreiro do Paço e a entrada era o cais das colunas.
Os rios parecem-me sempre calmos, filosóficos no sentido do desprendimento.




Moro onde escrevo.




Hoje quero lembrar a tudo e que a escrita não me faça esquecer o desconforto da vida.
A noite cresce, os conhecidos afastam-se e o deserto alaga não só as ruas.
O cansaço atenua-se.
Tomo revitalizantes e recomecei a escrever, deixando mais a cama. Não já a fome do saber mas a penosa consciência de que, entre o tédio e o cansaço, não posso optar senão pela fadiga.
Cada vez acredito menos em mim mas os outros  começam a crer-me.
Só por nascimento, profissão, temperamento e necessidade de concentração.
"A arte é a exasperação da solidão" – quem disse?

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