sexta-feira, 5 de novembro de 2010


1981



Da droga vi-me livre, agora d' Isto...
(…) Tornaste-te adulto. Ora toma!




     4 de Fevereiro
Tudo irrita. Ou antes: as pessoas. Não gosto delas, embora as reconheça como um mal necessário pois sozinho não sobreviria. As pessoas são úteis à observação. Quanto ao que resta do tempo, emprego-o de forma a chegar ao anoitecer com vontade de dormir, dado que a cama sem sono entedia, salvo se nela vem o devaneio. E, pelo meu lado, devaneio cada vez mais, sendo cada vez mais aparência.
Entrego-me a atividades que não causariam qualquer desgosto se as não produzisse. Apenas a perda de uns tantos hábitos que logo substituiria.




Sem dia marcado, em Março
Desolador não ter a quem olhar, apenas objectos, coisas, coisas...
E a solidão, afinal, inspira? Tenho escrito?
Não.



Noite de Carnaval. Na rua uma certa agitação, as pessoas movem-se mais depressa, parece que marcaram encontro.
Algumas máscaras dão mais nas vistas.

 

 

 

Sem dia marcado, em Abril

Mil novecentos e muitos...
Perto das duas da madrugada e os últimos dias da semana foram grandes, imensos.
Vive-se uma época incerta. Como diz X: cada escolha envolve de imediato contradições.



Boa-noite.
Desta vez não conto nada. Aliás nem apetece escrever (Ou apetece? Que importa!)
Madrugada...
(Se fora poeta escreveria um longo poema)
Jim Morrison no gravador.
Sono.
Ninguém neste silêncio recto.



Esta manhã desenhei, frente à cama, um grande ponto de exclamação. Que mais dizer?
Desmotivado.
E no entanto não é esta a palavra. Ou fazes um esforço para te desenvencilhares ou... A questão fundamental consiste em... Talvez consista, afinal, em coisa alguma. Não consegues viver sem problemas? Paradoxal porque tens interesse em viver e no entanto... Bom, é aborrecido submeteres-te a uma tanto trabalho – não é que te custe, tu gostas de escrever – mas caramba, uma pessoa necessita de viver por si, de... Só apetece escrita? Porque não vives? Viver é uma questão prática. Ora a prática... Enfim, tudo certo. Gostas do complicado, de descobrir questões... Mas não é a tua função? Só que deves manter a vida longe delas. Impossível?
Viver linearmente sabendo que nada é linear.



Fome de absoluto e oferecem-me chocolates!



Como viver quotidianamente uma vida de entrar, sair, cumprimentar os vizinhos, como se tudo se repetira, em vez de cada gesto ser único?
Busco a banalidade e encontro sempre o monstruoso.
Cansaço!
Há em mim combates épicos cujos murmúrios lembram berros.



Todos sentiram, pelo menos uma vez, a violência do ser em luta, sem bússola nem jangada.

 

 

Principio de Maio

A escrita isola-me e lamento a minha parte subtraída ao convívio, obrigada a luto ou a uma só paisagem. Encarcerada. E tenho tendências suicidas. Mas quem em mim? A parte em revolta? Ou o todo? E é o que se passa? Ou, simplesmente, já tanto aconteceu que nem sou capaz de me entregar de novo? Sequei? Sentimento desagradável. E poderei viver assim? Porque a questão é ser-se, ou não, feliz. Volto a dizê-lo: existe em mim desejo de fim. Porquê já? E hoje, que fiz? Sobrevivi? Vontade de choro. De conforto. Pena? Comprazo-me no lamento? E por que não reagir? Não se poderá viver? Ora...



13 de Junho
Há muito (talvez desde os quinze anos) que não sentia um tal desespero. Como se, no deserto, faltasse a gasolina para o carro chegar ao oásis. Então a sede leva a que se não saiba se o sonho existe e olha-se em redor sem saber o que fazer. Leio num papel os objectivos que me propus e imagino-os sobre-humanos. Ocorre-me abreviar a agonia estoirando os miolos. Mas uma voz – e não há a certeza de que não seja mero masoquismo – diz “Continua!”. Porém, esqueci tudo. Os impulsos dominam-me e peço-lhes uma trégua, por umas horas, ao menos: o tempo de chegar a casa de alguém, o evitar ficar só. Esta batalha dura há muito. Há tanto que já desconheço quem sou. Serei? Ou o que é já por mim? Esgoto-me em pensamentos e becos. Quero ar. Dirijo-me à praia e não sou capaz de mergulhar. Derrotado sem ter ido à batalha, não aceito porém tal derrota.

 

 

Sem dia marcado, em Junho

Deserto. Para trás e para diante. Zumbidos e ameaças. E eu que quisera unicamente existir... Necessário explodir para ser?




Estado, senão de desespero, pelo menos próximo. Os factores que contribuem para isto são: o meu isolamento e a minha falta de perspectivas. (Isto é tão real que nem consigo analisar a situação) Ou seja: sinto-me a estoirar contra e dentro de mim. Farto de me reprimir. Farto. Chega! É isso: ando sem válvula de escape. E sem ela estoira-se. Estou, pois, a rebentar. E não sei se aguento o balanço. Não espero nada. Mas tenho desespero que chega para vinte. Talvez deva desviar a atenção para as coisas pequenas, género “que fazer esta tarde”, etc. Se sobreviver a esta maré ficarei mais forte.



Mal. Muito mal de condições.
Quero sair deste círculo e não sei se consigo. E esta dúvida – não saber se – assusta-me. Pela primeira vez penso que me sinto mal, tenho de tal consciência e não sei se sairei, isto é, desconheço se estou numa crise ou num poço sem fundo. Porque não tem semelhanças com uma “crise”.
Medo.
Sinto medo.
Um medo enorme que me faz sentir rato, minúsculo, no meio do mundo tentacular. Nunca tinha experimentado isto e é terrível, sente-se na pele, parece que o monstro-mundo se nos cola e tem a forma de um enorme buraco do qual fujo mas donde irresistivelmente me aproximo e em que, por fim, me transformo. Uma espécie de condenação â morte suspensa que me cega e emagrece. Já me alimento de mim mesmo.
Inferno.
Ir para onde?
E como?
Onde raio estás? No fundo dos fundos? Não. Ainda não. Não sabes nada de nada. Sentes. És coisa mas tão coisa, tão intensamente coisa, que a ausência de ser te faz berrar e então dás ideia de que vives. A paralisia é a tua forma de acção. És, mas algures. E todavia trazes contigo a seriedade de um rei.




Nem calma nem tranquilidade, prazer ou sossego. Tudo o que me cerca só me motiva uma colossal revolta, ou enjoo, e apetece matar-me pondo ponto final a tudo. As amizades atraem-me para logo as deixar, raramente uso a lista dos telefones, perco os contactos, fecho-me num sono nauseabundo onde já nem os sonhos brilham. Mas nem a morte – a física que a psíquica deve ser este profundo desinteresse por tudo – consigo. E lá continuo.
Sofrer ainda é qualquer coisa. Mas eu nem sofro: peso!
O problema é que, ao mesmo tempo que existe a vontade de deixar tudo, há a educação que inculcou a ideia da missão histórica, da predestinação...




Como se tivesse ido ao fundo de alguma coisa. Não que chafurdasse no âmago mas andei perto.
E nem me apetece deitar de tal modo estou de novo acordado e dormir me parece já insano.




Escrever até cair para o lado, experimentar a exaustão mais completa, aplicá-la a tudo, olhar as coisas através dos óculos do cansaço e saboreá-las, não sôfrego mas pacientemente, como se tivera uma eternidade para observá-las e outra, ainda, para as amar, odiar, ser indiferente. Aliás, não acredito na indiferença – "ele não acredita na indiferença"...
As costas doem, doem como se as torturasse continuamente e a vista fecha-se-me sem que dê por isso.



Que um diário também sirva, contra a teoria de que a felicidade não tem história, para anotar a satisfação pelo momento, a alegria de estar vivo, o prazer de não desejar coisa alguma, o rir das grandezas de ouro e poderio.
Tranquilo.
Pacatamente fecho a janela. Olho a parede nua e imagino tudo nela. Os meus sonhos são dignos do melhor Dali e sucede-me acordar em êxtase espantado pelo que vi.
Os deuses, sim, faço testemunhas desta minha necessidade de ser só, liberto de todas as trelas. Nem perguntas, ou interesse geral pelas pessoas. Também não preciso de fazer o que quer que seja para me justificar: vivo, eis tudo. A morte, a dos outros ou a minha, não me perturbam.
O amor é um sentimento que não me diz respeito.
A paixão, sim.
Gosto dos dias de Outono, não aprecio a claridade excessiva, o ruído, a paisagem das pessoas-gafanhotos saltando de montra em montra, aos pinotes nos semáforos.
Se a sociedade de consumo satisfizesse as necessidades logo desapareceria.



31 de Agosto
Em poucas palavras: estoiro. Porque não peço no Júlio de Matos que me internem para repousar? Todavia estou lúcido. De uma lucidez que faz ver transparente, anotando cada pormenor cómico deste quotidiano.
Na rua uma cega, empoleirada numa esquina, exigia:
- Quero ir para a esquerda! Quero ir para a esquerda!



3 de Setembro
Sem interesse algum salvo o da escrita.
Inscrevi-me num curso de actores para me obrigar a cuidar do corpo e evitar o regresso às drogas duras.



5 de Setembro
Ser não é apenas um movimento. Para ser há que saber saber-se e este adquire-se a cada tentativa de mais ser. A questão reside no diálogo com as pulsões.
Na escrita descubro a minha gramática tomando de empréstimo outra. E deleita.



Sem dia marcado, em Setembro
Cheio de energia, ando, discretamente claro, aos guinchos pela rua.




O quê? Lá fora chove? Em mim, bruma.
Não tenho a menor ilusão – ou ela é tão pálida, tão longínqua que... Não. Não consigo apagá-la, reconheço.
Os últimos dias têm sido... Marcantes? Dar à luz não deve ser menos doloroso em correspondência com o que tenho sentido. Por exemplo, esta vontade de chorar. Bem sei que não escrevo há alguns dias e por isso arrisco uma crise…
É difícil ser aqui: as tentações são imensas e ainda não sou suficientemente forte. Digo tentações como sinónimo de alienações. Ser é possível, pois por vezes sucede-me. Já suporto melhor a solidão. Até porque o trabalho teatral extenua e a seguir o repouso sabe.



Mais calmo.
A impressão de que os maus momentos são cada vez mais fortes mas também menos duradoiros. Se quero sobreviver-lhes devo evitar a proximidade de armas de fogo. É tão agradável o equilíbrio que ora sinto que queria manter-me sempre assim. Possível? Também noto que faço o que devo mesmo quando tudo desvai: o piloto automático trabalha.
Nesta crise passei por fases de grande liberdade (uivei nas ruas nos passeios mais solitários) e de grande opressão (a casa, o seu ambiente – mas agora já me parece que sou eu quem o faz).
A brevidade da existência é o que, apesar de tudo, me obriga a funcionar nestas alturas: quero acabar certas coisas.


Que é mais importante: gostarem de nós ou gostarmos de nós mesmos?
Olho com gosto a minha sombra: o meu corpo e o meu perfil dão-me prazer. (Mais tarde referir-me-ei ao poder dissertatório, ao conhecimento científico, à sabedoria. Ou mesmo ao passado. Sem nada não se vive.)
Cada vez mais premente a vontade de berrar nas ruas que não gosto disto e que nem lhe acho remédio, salvo o paliativo de uma televisão ou umas “férias em Agosto”



Boa-noite.
As coisas correm melhor. Muito melhor. Agora vou então ver o fim. O Sol. Depois de cada sentimento o Sol esvoaça no tampo de mármore. Agora, sim. A excitação depois do trabalho. Destilada a caneta. Agora sim. Pois. Ah, o sonho... Palavras... Muitas palavras.
Merda.
Sem equilíbrio.
Encontro uma via, desprezo-a, no momento seguinte volto à mesma e, logo a seguir, tomo outra que, por sua vez...
Gente desenraizada. Camponeses de boquilha, pescadores efeminados, varinas de xaile negro vendendo gelados. Desconcerto.
O desemprego aumenta o desespero.
Tudo um imenso forno onde as revoltas se cozem na mornice de um Verão retardado.
A epopeia acabou.
Restam os desastres de automóvel e os atrasos nos comboios da linha de Sintra.
Pequenez, mesquinhice, intrigas.
Viver com maiúscula obriga a que se grite para que nos abram passagem.
Ser razoável e sentir no entretanto a pele estalar sob a tempestade do sentimento. A quê a bonança? A paz toda aparente, a quietude de maneiras que o  monstro veste e com que sorri à criança, na expetativa do momento em  que a degolará.



Ontem nuvem, hoje rochedo. Onde o mal? Na visão que me possui ou naquele que a fabrica?



A questão é: faço ou não o que quero?



13 de Novembro
O dia em que passares a condescender estarás velho ou caquético. Mais tarde isto parecer-te-á exagerado mas lembra-te que esse mesmo parecer será já sinal de caquetice.



Carta a mim quando faço trinta e um anos:
que o Bem te dê forças para lutar contra a perfídia.
Que a tua única ambição seja a luta pela verdade, pela autenticidade, contra tudo o que a civilização encerra de nefasto.
Pela construção de um universo onde o homem e a mulher vivam sem desconfiança, diferentes e iguais no amor.
Que se inventem novas palavras, pois as que usamos levam o vício deste agora.
Pela vida segundo a razão, não do mais forte mas do que transportar a chama da esperança, até ao começo de Tudo, da Terra Prometida, aqui e agora.


Nada justifica a sacanice. Porque o sacana coloca o poder à frente do indivíduo.
A situação de semi-integração talvez seja mais dolorosa que a da completa marginalização ou total integração.
No estado de semi-integrado o indivíduo só tem obrigações e nenhuma recompensa. Por exemplo: devo estar a X horas no teatro mas nem sequer ganho dinheiro para os transportes! Não tenho com que me mimar e, no entanto, um actor deve cuidar de si.
E se desse um “ganda” chuto e mandasse de novo tudo à fava?



24 de Dezembro
Cristãos,
Hoje, dia em que comemorais o meu nascimento, venho lembrar-vos que o deveis fazer no único espírito possível: o da comunhão com todo o ser, independentemente da sua categoria social, cor, credo, espécie.
Nós somos a abertura, nós somos o sim misericordioso, a cura de todas as feridas.
Em nós a alegria do Perdão.
Lembrando-vos ainda os valores da Paz e da Justiça - e quanto a primeira é devedora da segunda - desejo aos que me festejam, como aos que, por ostentação, ignorância ou sábio repúdio me desprezam, uma noite tranquila e Amiga.
Vosso
Jesus Cristo



Sem dia nem mês marcados
Disposição péssima. A vida que me tracei, pesa. Era escritor, agora sou actor. Ou actor e escritor? Mas escrevo? A diferença em relação aos próximos é grande. Quase angustiante.
Dói. Dói-me em geral. Se tivesse uma pistola... Preciso talvez de companhia.
Fechar-me tem sido a obra mais difícil da minha vida. Desabrocharei em morte, aliás.
Não me interessa vencer, quero apenas que não me devorem.
Saudades da escrita.
Tenho de deixar a actuação. Actuar e escrever em simultâneo é impossível. 
Desespero de sentir o futuro profundamente neutro e a vida a exigir que continue, como se nada fosse.
Dor nos olhos. Cansaço de ver. Tensão nos sentidos. Expetativa. Ruído em torno. Vozes. Vozes. Vozes. Sensação de mais ainda. Sensação - também - da possibilidade de reformulação de tudo. Gente que me aguarda. Telefones que tocam. Ruído outra vez. Vozes. Vozes. Sono às migalhas. Máscaras, máscaras… Verdade, ”cher ilusion”…



A loucura: que sei da loucura se, das vezes em que me senti mais louco, todo eu era vazio e plenitude, um desimportamento colossal e grandioso?



A perfectibilidade corresponde ao máximo da capacidade de adaptação.
Tornaste-te adulto!
Ora toma!




Entre mim e o papel apenas eu e uma luz que mal ilumina.
A insatisfação.
Escrever. Escrever. Escrever.
Tomado de uma tranquilidade meio apalermada (porque ainda muito novo para que seja sábia) aborreço-me.
Os dias sabem pela sua mesquinhez e, na rua, afasto-me dos outros: não apetece companhia, sinto-me melhor na minha.
Se pudesse seria um funcionário pontual e zeloso, nem medíocre nem extraordinário e, esta noite, estaria na sala de um cinema acompanhado da mulher, deixadas as crianças com a empregada.
Mas não.
Sinto-me obtuso, não me agrada o trabalho no teatro e, se não me comprometera, já o teria largado. Mas é verdade que o aceitei para ocupar o tempo, largar o chuto e... tem resultado. (Até quando?)
A minha geração não se atira de uma ponte. Morre devagar, depois de derruir os mitos, avessa à vida política e erigindo-se em Estado de si própria. A alternativa existe? Cada qual a sua.
Mais os novos direitos da vida.



O crescimento aumenta a solidão.


A escrita faz-se na transgressão.


Da droga viste-te livre, agora d' Isto...












































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