sexta-feira, 5 de novembro de 2010

1984



És do Partido?







Sem dia marcado em Janeiro
Secura, desinteresse... anestesia. Ao grande frenesim sucede a apatia.

Satisfação, já não química como a que usufruí entre 75/79 - a qual não originou um só gesto, uma só folha, nenhum lamento, a comprovar que a felicidade não deixa rasto - mas um contentamento todo feito de apatia. 
Lá atrás, vinte e quatro horas por minha conta mas a droga, tornando-me feliz, não dava azo a que escrevesse. Depois, o curso de actor para ocupar o tempo, deixar o chuto... E agora, ainda escreverei?

No teatro aceitam mal que me separe, agindo como um velho partido perante a fuga de um dos seus membros. E eu, que sem espírito de seita, sempre gostei de misturar ambiente, vivências, conhecimentos...
Frequentemente ajo levado por uma força tal que não me deixa fazer doutro modo. Só mais tarde, por vezes muito depois, percebo o que fiz, verificando que estava certo, não talvez com os outros mas comigo mesmo.
Encontro com o conhecido encenador X, interessado na leitura das minhas obras. Tal colegial, corri a deixar-lhe alguns textos no seu teatro.
Porque a palavra "obra" me veste como um casaco largo, prefiro chamar ao produto das minhas necessidades, jogos.
Jogos que faço comigo no desafio de saber se realizarão fora de mim o que, dentro, é "tensão".



Vinte de Fevereiro
Lídia,
De novo escriba, trabalhando em projectos que o Teatro me fizera abandonar.
A disposição tende para o mau mas a liberdade é um exercício constante e não tenho vontade de me prender como fiz nestes anos de grupo teatral.
Ontem fui a um bar sem ser para actuar. Há muito não sucedia!
Amanhã volto a vender os meus cadernos na estação, não dá muito dinheiro mas...



22 de Fevereiro
Sejamos teimosos como os burros. 
Vontade de sossego.
Existirá?



Sem dia marcado, em Fevereiro
Tristeza de cavalo fogoso que percebe, a meia corrida, que corre no campo errado.
 E todavia...


Dias em que a pele do rosto se engelhou, dias em que a ignorância e pequenez – culposa, ou não, que importa? - dos meus conterrâneos mais sufocou. Cruzando a Mouraria vi a miséria, mas uma miséria diferente da do passado recente, a miséria democrático-burguesa: casebres mal talhados de par com salões fosforescentes de jogos americanos, quinquilharias inúteis, velhos com as caras em cima de jornais lendo notícias mentirosas, uma tabacaria cheia de revistas e livros sem qualidade.
Dias em que persistir neste país é odioso, inglório e triste.



Vinte e seis de Março
Chegar a uma cidade que não se conhece de um país ignorado. Não conhecer ninguém nem saber direcções. Apenas a consciência de duas coisas: somos capazes de nos matar porque a liberdade a todo o custo não compensa e cremos, porque não sabemos onde, que guardamos algures uns cartuchos por atirar: a vontade de viver.
Eis como me sinto agora que deixei o teatro, o círculo de amigos, o quarto alugado (acaba próximo dia oito) e nada me liga a Lisboa, salvo a teimosia. Para quê ou porquê nem sei.
Existo.
Fazer uma viagem, especializar-me em Paris no que um dia lá deixei para aqui regressar, podendo então ganhar dinheiro noutra coisa que não o Teatro (onde quase nenhum auferi mas não foi esse o problema) e voltar ao que fazia...
Viver não obriga a diploma.
Isto ainda não engana.


Irene,
Ainda não fui para Paris e espero, como qualquer bagagem, que me expediem para onde, enfim, o descanso seja e as vozes não soem.
Pressa de coisa alguma.
Os projectos na mala sem destinatário e donde desbota cada dia mais o remetente.
Nisto o que passa é o que nos fica. A vida que é senão uma duração com sonhos, quimeras e andaluzias? Dói estar, e dói também saber que se não vai. E neste balanço rodamos, um pé aqui, outro além.
Só, no cais que não se distancia, são meus os beijos dos amantes que se alongam. Mas a chuva cai e amo-te como o cão ao seu amigo, feliz por pertencer a alguém.
Oh, chicoteia-me para que sinta que ainda sobrevivo!
Beijo.

P.Scriptum
Outro bagaço.
Na vida o que passa lá vai, e o que vai no tempo se perde.
Andamos no caos enquanto não descobrimos quem somos.


Lisboa, 7 de Abril
Para a memória tudo é contínuo e o amanhã - depois deste interregno português de 10 anos - será uno com o antes.

Bordéus, dez de Abril,
Uma enfermidade viva: sem ecos nem estímulos aguento pesadamente esta chatice.
Merda!
Porque não me suicido? Para ver isto? Triste espectáculo!



Onze de Abril, a caminho de Paris
Náusea por este conforto em série, esta chatice instituída, este bem-estar estereotipado, esta felicidade de todos-os-dias, este sorrir pré-comprado.
Em Portugal sufoco pela mentalidade pseudo-cristã, aqui seco na árida monotonia da abundância.
Notória a minha desadaptação. Sei como comportar-me mas não quero integrar-me, embora não queira contundir.
Isolar-me.
Não sei - ou sei - o que os outros fazem de si, mas recuso-me a esse tratamento.
Nasci para me expandir e estranho a expansão a que me obrigam.


Paris, 18 de Abril
De novo exilado…
Um padre olhava, atónito e pesaroso, o enorme A de anarquismo grafado na parede do seu templo...


Na ausência vazia das vossas palavras cheias, na ausência cheia das vossas palavras vazias.



22 de Abril
O excesso de acontecimentos impede um diário doce ou de calmo quotidiano. Quase deixei este desde que abandonei o teatro. A inutilidade da minha vida causa vertigem.
Sem verve para ganhar dinheiro, ou o que seja, preciso de não me abandonar e fazer qualquer coisa.
Condenados, é tudo uma questão de tempo ou do como passá-lo.
Que importa se nada fica?
Fogo fátuo.
Não sinto.
Ou sinto: as máquinas param e o vapor deriva.
Para onde o vento? E se não o há? A vida na paragem zero... - qual  a palavra nesta náusea de se saber escrever? - e todavia...
Recuso a literatura, quero-me apenas sustento deste des-sono que me acorda e berra e furibunda.
Vai!
Vai de encontro ás paredes e resvala, larga o fôlego, respira-o e morre pacífico de seguida.
Enquanto tiveres energia, anda!



Paris, 24 de Abril
Esta cidade, este ritmo, este cirandar mais a nova dança na tv que um prof ensina metodicamente (um prof de dança!) é-me tão odioso (ou indiferente) como o tédio medíocre e beato do país onde nasci.
Ou uma cama para deitar e um letreiro na porta "Inexistente contínuo".
Quero o sossego, uma mesa de trabalho, muito papel e dinheiro para livros. Será isto? Sequer o sei! Os outros... Os outros, o quê? Sim, os outros existem e têm um modo de vida. O deles. Não quero viver em conjunto. A passagem pelo teatro cansou-me de gente. Foi isso? Ou outra coisa ainda?
Feita a reinscrição em Paris VII, mas só em latim, com regresso aqui em Junho para exame. As restantes disciplinas onde me poderia inscrever achei-as, ou ridículas, ou meros pretextos para um ordenado universitário. O que este sistema tem de perverso é o seu convencimento de que só se "é" de certa maneira. E eu, eu sou uma certeza diluída.
Há dez anos estava nesta cidade quando soube do 25 de Abril. E hoje? Que faço? Duro, ocupo tempo. Nada interessa. Imito os outros no acto de viverem e procuro não dar nas vistas. De vez em quando entrego uma folha a ler como quem diz "veja, faço isto!". Uma espécie de justificação da existência quando ela se justifica em si mesma.
Todos deveriam parar de vez em quando. Haveria mais movimento. As férias pressupõem o recomeço e não são uma paragem. 
Paragem, no sentido em que o proponho, será "desenfiar-se", deixar de correr n' Isto.



Bordéus, Paris ou... (palavra irreconhecível)
Entrevista marcada para uma rádio portuguesa. Eu, que decidi não dar entrevista alguma a partir de uma primeira em que vi sair apenas metade do que dizia, acedo a outra! Bem sei - digo-o frequentemente - que nesta sociedade mal de quem não se publicite mas o meu pudor em dar nas vistas não diminui por isso.  Então a locutora - simpática e pretendendo ajudar - diz-me que a entrevista foi adiada, Sabe, há X, há Y, há Z (alguns em tempos visita de minha casa em Lisboa) os quais saem para o ar hoje, e pede desculpa, etc. Respondo “não tem importância” e também etcs. E se lhe dissesse terminantemente "sabe, tornei-me mudo?”

Bordéus, dois de Maio
As coisas mexem e como o movimento é o essencial...

Bordéus, quatro de Maio
Disposição péssima. Nem dá para escrever nisto. Bolas! Gostaria de me embebedar mas não há meio de esquecer uma certa dor no flanco esquerdo a qual, em mudando a temperatura, me visita absolutamente. Façamos, pois, da dor alegria, tenhamos gozo na dificuldade, no ficar debaixo de um tanque esmagado, suando-nos em prazer mortífero, paradisíaco, como um chuto na única veia ainda disponível do nosso ser rosa, azul, de todas as cores, a roda-vida a toda a velocidade. Pára!
P.Scriptum
Raiva por estar tão vivo e isto só exaltar o morto, o embalado, o murcho.
Quem sejas, amo-te!



Bordéus, seis de Maio
Vou a Lisboa tomado de vontade de ir a outro lado e a sensação de me dirigir a um lugar sentindo que quero ir a outro, é-me tão familiar que concluo não haver onde, senão em mim. O fora dá vontade de vomitar e sucedeu um destes dias quando A. me levou a um hipermercado.
Não me entrego e sou movimento para.



Bordéus, Seis de Maio
Quanto mais envelheço menos percebo para além daquilo que um imbecil atinge. Penso no entanto que o problema reside nas perguntas cretinas que me fazem.
Não me interessa ir a parte alguma mas parto para Lisboa segunda-feira. (Afirmei-o aos meus anfitriões em tom decidido mas, na verdade, na mesma determinação com que outrora pedia boleia na estrada, ora num sentido, ora noutro…)
Anima-me não saber para onde ou o quê.



Lisboa, onze de Maio
Tentação do poder político ao dar-me conta do tempo gasto em ninharias devido à burrice dos que  governam. Este um dos aborrecimentos do escriba em Portugal: ou se sente insultado porque obedece à mediocridade ou gasta uma parte do tempo com escritos panfletários e carreira política!



Sem dia marcado, em Maio
Incapaz de escrever diário. E faço-o na sensação de que não o deveria fazer. Chegou ao fim? No entanto é já obra minha, algo que se avoluma, mesmo uma companhia.
Possuo as condições para não fazer tudo, dado que sei jejuar e sou desprovido de febre de consumo.
Definitiva a decisão de não voltar ao Teatro. E naturalmente (?) coloca-se-me a questão  de saber como vou ganhar dinheiro. Não sei. Mas viver a todo o custo não vale a pena. Prefiro... Não, não sou escritor por preferência. E nem mesmo gosto de me chamar escritor. No fundo sou nada. Vivo. Isto é: vou vivendo.
O resto é os nomes das coisas.

A ciência não aceita atitudes não categorizáveis. Estas provocam o social, ofendem-no na sua dignidade de todo coerentemente justificado, corroborador da sua própria lógica.  Telefonar para o emprego a dizer "hoje não sei porque não vou" colide com a arrumação racional que o sistema exige em nome da sua validade, a qual se quer extensiva a todos os níveis.
Aceita-se a oposição na justa medida em que cumpra a regra.


A situação é esta: se fizer Teatro posso ter algum dinheiro mas não faço o que gosto (estar num canto escrevendo) e, para fazer o que gosto, devo estudar umas tantas matérias que me darão acesso a um escuro lugar de funcionário público. Ou seja: ganhar na "cidade luz" o direito a uma vida obscura. Ou como ir de Lisboa a "Cruzes de Baixo" passando por Paris...




Cinco de Junho
Opressão portuguesa.
Na rua os polícias continuam a olhar as horas a que passo, o telefone faz ruídos que só lembro das escutas do tempo da Pide e o encenador a quem emprestei textos para leitura, encontra-se finalmente comigo e diz: "Li os teus textos. Dominas perfeitamente a linguagem teatral. És do partido?" Quando ele ainda referiu a estranheza dos nomes estrangeiros de algumas das minhas personagens, já não o ouvi. A Arte não passava por ali, só o funcionalismo artístico.
Não me quebrarão.


A mediocridade no poder confrange e ainda por cima sai cara. Mas compreendo a táctica dos novos senhores: estrangulam economicamente a população fazendo-a aceitar já só o circo em vez de também o pão.



Lisboa, sete de Agosto
Escrever torna-se-me exterior e vejo-me a fazê-lo. E perco-me em frases feitas. Uma espécie de publicidade ou clichés. Luto por pensar mas elas, as frases, intrometem-se. Não escrevia neste diário há algum tempo. Tornado exterior, deixei de senti-lo. Porém, mercê desta música, do teatro onde estou - a peça ainda não começou - ou por ter assumido que... ou ainda pelo livro que li...
Como se esquecesse - levaram-me a esquecer? - que isto é canibalizador, que me rodeiam seres mutilados, frustrados e violentos. Desejo o berro, abrir os braços, poder fazê-lo - e tal é normal. Mas quase me fizeram crer que "normal" é o que os outros ostentam. Enfim, um diário serve para memória.
Urgente uma viagem para fora disto


Sem dia marcado, em Agosto
Se leio um livro diluo-me nele, se olho algo ou ouço música deixo de estar onde estou e quando olho de novo em volta parece que vim de longe.


Quero viver tão só pelo desejo de saber o que penso. Senão, não terei sabido perante mim mesmo porque existo.



Entre Bifurcação de Lares e Coimbra
Esta terra parece tão sedenta de seiva como eu de saber.



Dezanove de Setembro
Bloqueado e eu mesmo me bloqueei. Um monte de papelada em que não apetece pegar.
Uma indecisão de todo o tamanho porque há qualquer coisa que falta. O quê?
Ir para França? Ficar? Difícil não ter pai, partido ou Deus.



De São Martinho a Lisboa, em Setembro
Acordo de manhã cedo, levado pelo instinto que me faz avaliar as horas sem recorrer ao relógio, e chego à estação a tempo de tomar o comboio cheio de magalas adormecidos. Olho-os e não me apetece estar-lhes na pele. Mas dá prazer o nascer do Sol visto em andamento.
Nas Caldas da Rainha, sigo um grupo de recrutas, convencido de que me conduzirão à estrada. Sempre sob o signo da tropa e ao meu pedido de boleia, pára um carro conduzido ainda por um militar. Ditas as palavras indispensáveis, não mais falamos. Na rádio um padre reconcilia os crentes. Sinto desejo de prazer físico.
- Vou na direcção do Carregado - Diz o condutor.
Desço na bifurcação para a Ota.
Nova boleia em que também não há fala. Mas desta feita apetece ouvir música que condiga com as árvores esguias e altas que ladeiam a estrada, desabrochando em verde lá no alto. Porém a realidade da nova viatura é a telefonia aberta independentemente do que berra, a corroborar que raros utilizam as coisas mas que são elas que os manipulam. E um ex-governante fala já de um congresso que reunirá outros ex-governantes ou - como diz - "os nossos melhores cérebros". Pelo que se tem visto…


Paris, vinte e nove de Setembro
Toda a gente sabe o que faz e eu a reboque de mim mesmo, perdido em respostas inúteis quando me perguntam: "Porquê?"
- Porquê? - Respondo por fim com insolência - porque apetece!
É a resposta certa.



Lisboa, vinte e nove de Setembro
Desbloqueado depois deste passeio.



Dois de Outubro
Comprei nova tenda e voltei a instalar-me no parque de campismo de Monsanto: a ida a Paris foi benéfica, pois decidiu-me a radicar em Portugal.
Quando vendia no Boulevard St. Michel uma das minhas brochuras alguém perguntou: "Mas pensa ser como o Malraux?" Que senti? A Condição Humana é tão bem narrado, sóbrio e bom, que me inquieta a possibilidade de não estar á sua altura, de não ser capaz de oferecer à literatura obra de idêntico valor. Mas escreverei. Isto é: aprendo a fazê-lo. Porém a aprendizagem é eterna e o humano... "Oui" - Respondi..." Ah, Malraux! Algo me diz que é possível, que... Mas sou tão novato, tão principiante, tão caloiro. Tirarei alguma vez o canudo?



Parque de Campismo, sete de Outubro
Quero partir pelo país vendendo os meus cadernos e ver o que acontece. Enfim, trata-se de preencher o tempo. Indiferente em relação aos meus escritos. Mas como sou incapaz de não produzi-los, sempre se amontoarão...
No parque a mesma pelintrice que noutros sítios, as mesmas rádios portáteis captando o futebol, o mesmo grupo de adolescentes jogando o “King”. Como a adolescência é estúpida e inútil! Por vezes vejo-me comentado nas escolas. Ou por megalomania ou por consciência deste escrever contínuo. Sim, porque há que aproveitar o que se escreveu e, pois que escrito, dê-se-lhe um fim útil, nas aulas de linguística ou coisa assim. Mas aproveitar-me-ão, está visto, a mim tão diferente, tão igual, tão civilizado, tão de sapatos engraxados metido numa tenda de campismo neste parque esgotado por televisões e luzes fosforescentes.



Dez de Outubro
A ruptura. Certos homens que se servem da política falam na ruptura do sistema. A nível dos serviços colectivos apenas assisti a uma melhoria: uma composição de metro que proporciona mais conforto. No resto do país desconheço. Tomar uma bebida num local onde nos atendam com educação não é possível, a não ser que se pague três ou quatro vezes mais. Os sítios deterioram-se, quer pela frequência de uma clientela cada vez mais empobrecida, a qual entretanto não foi educada e perdeu mesmo raízes, quer por remodelações que os transformam em lugares incaracterísticos.
Nas parangonas os jornais anunciam os milhares de contos atribuídos ao futebol.
O governo, em vez de se definir como conjunto de homens interessados em proporcionar instrução e um projecto nacional, trabalha contra si próprio, satisfazendo as necessidades do circo. É difícil manter a situação de observador a tal ponto são flagrantes a má governação e a falta de clarividência. Suportei cinco horas de espera numa fila para comprar impressos numa repartição e muitas pessoas terão entretanto faltado ao emprego.


Doze de Outubro
A degradação invade tudo e refugio-me, eu que sempre recusei tais sítios, nas espeluncas de luxo ou, pelo menos, nas de primeira.
As restantes tornaram-se esteticamente dolorosas.


Dezassete de Outubro
O poder de compra decresce e, nas ruas, surgem formas inhabituais de ganhar a vida mais a prostituição a ganhar novas zonas. No metro as pessoas levam os olhos no chão e ao menor motivo  disputam-se. A tensão é grande e o transporte colectivo penoso, devido ao ambiente de desânimo e frustração. Incidentes sem importância degeneram em algazarra. A quantidade de pessoas mortas pela polícia já não é pequena, graças ao hábito de atirar  ao corpo, quando uma salva para o ar bastaria. Não sei se é possível nova revolta para breve. As pessoas andam derrubadas e as manifes, que exibem bandeiras negras a simbolizarem a fome, tornaram-se quotidianas. Onde chegará o mal-estar?
Na compra de um simples selo o funcionário nunca tem moedas para o troco e os preços sobem a tal  velocidade que raro é o bilhete de transporte, cinema ou mera entrada para uma piscina que não apresente o antigo preço riscado e o carimbo do novo ao lado. Ninguém acredita que no governo a eficácia presida a atribuição de cargos e a descrença no Estado é generalizada.
Político tornou-se sinónimo de trapaceiro, senão mesmo de ladrão.
A desconfiança e a falta de perspectiva alastram.

Vinte quatro de Outubro
Pego no jornal e um título evidencia-se: "Veneno ao jantar mata casal e dois filhos": outro suicídio colectivo, no caso perpetrado pela mãe que preparou uma refeição de insecticida para a família, a acrescentar ao pai que matou a mulher e o filho, etc. etc. Por entre as constantes passeatas e banquetes dos políticos o povo pobre desespera e mata-se.
Não lembra ao diabo que a esperança de Abril tenha frutificado neste país, nem tão pouco que esta gente, de semblante agora pesado e triste, desse outrora vivas a uma nova vida, discutindo na rua a polis e dançando de contente.





Sem dia marcado em Outubro
Não sei onde as coisas vão parar. Isto é, o caminho que tomarão até que a morte tome o seu lugar. Mas quero produzir o meu próprio percurso e o resto são histórias. Não me posso, pois, dispensar para uma repartição pública ou actor de tv. Mesmo quando o tempo sufoca de tédio, vazio, ou absurdo, não quero transformá-lo em dinheiro. (Como poderia saber esta sensação de tempo em demasia se a não vivera?)
Voltei a entregar um manuscrito para apreciação numa editora.



O quotidiano instala-se com a sua capacidade de criar raízes e hábitos. Só a existência fora-da-lei contém em si grandeza, risco, jogo, em suma. O resto são banalidades e bom senso. Morte. “Deus” é grande porque contém o Bem e o Mal, o Belo e o Monstruoso. O homem civilizado herda do deus o cumprimento da lei e daí o suicídio lento da espécie. Nesta ordem de ideias a deflagração nuclear é a festa há muito esperada, o domingo finalmente diferente iniciando outra era. Tudo em causa e a criança não mais irá à escola manejar computadores. O fim do sabido e projectado, o início da grande aventura humana, a única digna desse nome, face á pequenez em que a humanidade dia a dia mergulha e se habitua.



No eléctrico, uma criança:
- Mãe, eu não sabia que isto era assim. E tu?



Na rua - na rua é onde tenho andado este último período, incapaz de concentração, fora de mim, entregue a outro que sequer me olha mas despreza, tornando-me afirmação apenas pela sua carência, pela permanente ausência - mas na rua, dizia, apercebi-me das minhas quatro personalidades: o escritor, o actor, o estudante e o herdeiro.
O primeiro ocupa-se de livros, é pobre e missionário no modo de encarar a sua profissão; o actor é superficial, sem princípios mas bom profissional; o estudante mostra-se aplicado, subserviente ao estudo, e o herdeiro, esse, resolverá um dia tudo na herança por chegar... Descobertas estas quatro personagens, pus-me a pensar e não encontrei lugar para mim. Serei este diário?



As decorações transformam-se em novas-ricas e agressivas. A pequena-burguesia, até há pouco contida no proletariado, dá de braços com a televisão colorida e, não havendo a preocupação de educá-la, a tudo emporcalha. Há uma nova classe poderosa: a dos políticos. Mas na assembleia nacional falta com frequência o quorum. Uma sociedade em decadência porque nada a une e o ponto comum é a insatisfação que todos sentem. Isto é, exceptuando os que governam.




Perto do fim.
A escrita arrasta-se pelas páginas como eu pelo mundo: mal.
O desinteresse acentua-se e, ao olhar em volta, tenho um desejo nuclear de derrubar tudo, pois acho a violência social inaceitavel mas lógica. Não há alternativa. O homem é um bicho condenado que, de vez em quando, lobriga a luz. Calha-me viver uma época onde ela nem aparece, restando o trivial, o quotidiano, a vida, a troca indiferente do "como está? Bem, obrigado"
Aqui e agora os loucos ganham face à irracionalidade englobante.
Imitando Herculano também digo "Dá vontade de morrer".



Dezasseis de Novembro
Dificuldade em ater-me ao real. (Ou que nem saiba o que é o real). A mãe insiste em super proteger-me e as minhas tentativas de libertação soam falsas, como se o esforço por lhe escapar, fosse de antemão condenado ao fracasso. A sensação de impotência é grande. Meu pai fez-me imensa falta, sinto a necessidade de um modelo ou padrão e, na sua ausência, restaram os ideais de classe que porém...  Assim, movo-me no vazio e desconheço o que me é comum e singular. Não possuo maturidade. Estou sempre a inovar, a inventar ou recriar, numa constante luta pelo rompimento ou ruptura. A personalidade possessiva da mãe não ajuda e desejo o suicídio ao pensá-la. Todavia, lúcido, não me mato e a vida torna-se um acto anti-natural. Um esforço. Acto de cultura, pois tenho que ser meu pai. Neste sentido dirijo a minha vida "exteriormente". Fazer isto, aquilo e aqueloutro mas... não sinto. Salvo quando escrevo. E com pudor confesso isto de que, porém, não sinto culpa. A minha existência prova que se não deve dar à luz sem primeiro pensar no assunto, pois atormenta-me um defeito de criação.



A realidade dói e fujo-lhe. De resto, visito-a quando o sonho aborrece. E na urgência da fuga a Arte.


Dezassete de Novembro
Calha a ver de novo.
Atravessei uma crise de alheamento que me levou, inclusive, a esquecer que escrevia, que havia essa saída. Embriaguei-me de cultura como outros de vinho ou morfina, num atordoamento contínuo, sem querer olhar fora dos livros, borboleta colada à luz que a encandeia.



O meu natural é a inconstância, a curiosidade por uma coisa e outra, o não aprofundar nenhuma, apenas o tomar de notas para, um dia, já com vagar, relê-las, percebendo então o que senti. 



Vinte e três de Novembro
A vida continua por entre dúvidas, fracassos e coisas agradáveis.
Miguel Torga afirma que num diário o escritor não deve transmitir os seus problemas pessoais. A questão está em saber ver no particular o geral, no fait-divers o mito.
A certa altura deixei de sentir que escrevia um diário: a intenção profanara-se e já fazia literatura. Sensação coincidente com a de que os meus escritos me ultrapassavam e poderiam interessar a outrém. E agora, Leitor, pois que me abri a Ti, prepara-te para vomitares com a minha vida.
Um destes dias fiz trinta e quatro anos e alguém disse que a minha vida correspondia ao herói que idealizara. Sem filhos, mulher, andando pelo mundo com uma tenda às costas, escrevendo e vivendo do que vai escrevendo. (Desde 79 que vendo amiúde os meus cadernos na rua) Mas é tão vazio o que sinto, tão submerso e solitário o percurso, que antevejo perfeitamente o dia em que ponha termo á vida. Que a ninguém atraia a diferença, pois nela a solidão é física e magoa.



E agora?
Vês, Leitor, mostro-te o diário e já hesito no que escreva. Mas chegarás ao nojo de mim, se já não o sentires por ti. Então talvez compreendas e perdoes.



Entre a frustração que as relações pressupõem e o vazio da sua ausência, prefiro a primeira. A capacidade de continuar vivo depende, assim, da coragem para enfrentar o sofrimento, a decepção, os outros.
Eu, o solitário...



Vinte e sete de Novembro
Quanto mais "escritor" me chamam mais idiota me sinto.



Vinte e oito de Novembro
Outra vez um tempo morto. Durante três dias (que pareceram quinze) não fui capaz de enfrentar os papéis e descri. O indivíduo sem crença apenas sobrevive e atormenta-se.



Vinte e nove de Novembro
Mais duzentos e cinquenta "Canares" vendidos em duas semanas. Mas tudo se vende desde que o vendedor tenha alguma competência. Desgosta-me o negócio em que isto se torna, pois cá em casa vive-se também um pouco do resultado das vendas e começo a sentir-me obrigado a escrever para viver. Mas devo ultrapassar este sentimento e mesmo fazer dele o trunfo que me há-de sentar à mesa ainda que não o deseje. 
Ultimamente penso numa mulher para companhia.



Porque me dei a conhecer? O importante não é conhecer-se?



Sem dia marcado em Novembro
Na escrita sou frenesim. Fora dela balão ao vento voando ao menor sopro.



Entre mim e a literatura gerou-se o espanto e a incredulidade: ela por me ter a mim, eu por não saber quem lhe sou.



Vinte e dois de Dezembro
Pensava que para ser escritor bastaria escrever bem. Mas há uma consistência - ou densidade - que a escrita correcta não confere e que, por vezes, uma vida inteira não chega para alcançar. Ou a necessidade de nos entregarmos à verdade para, refletindo-a, o Leitor se ver ao espelho.
Não se brinca ao "artista".




No mar alto com as velas rasgadas: a energia existe mas o barco deriva. Oxalá a literatura passe pelo caminho. Porque perdi as certezas e apenas sobrenadam vagas intuições, pressentimentos, rumores.



Vinte e sete de Dezembro
Sobrevive-se.



Sem dia marcado
Saboreia-se o momento da escrita prestes a nascer, a anunciação do Instante, o Sol libertando-se do mar e a charrua a semeá-lo. No cais, os olhos mergulham na ilha que emerge e lêem as pegadas do primeiro pesquisador.
Entre mim e o nada apenas hoje.



Indiferente à sobrevivência da raça humana.



O pesado e maciço silêncio irrompeu no corpo outrora gaiato e barulhento, o divertimento perdeu-se, o amor foi-se, ficou o azedume. No meio disto a incapacidade de passar sem a escrita a qual embrulha de folhas os dias. Mas o riso dá-se e, relâmpago na sombra baça deste contínuo morno e chocho, o céu rasga-se, volteia, grita, explode, e comigo a tudo devassa. Eis o canto que de novo ecoa.



No intestino da crise redescubro a luz.


O espaço estreita-se e a névoa cai no como e no porque, dissipando a tudo em vapores sem resposta. Aqui? Para quê? Nem mesmo o absurdo se vislumbra! Vazio. Mal de ser.



Não há certezas mas as coisas funcionam.




Ontem. Esta palavra ocorre sempre quando não ocorre mais nada. Este também raramente falta.




Entre duas sessões de cinema não há felizmente tempo para a saudade ou náusea.
Filme perfeito.



Tomar o café no prazer sensual do vapor que sai da chávena e nos mostra, como no espelho de um lago, que dormir é pura perda de tempo.





O dia não passa. Há um ror de horas que são as duas da tarde e esta, em consequência, não amadurece.



- Está? Está?
Quanto tempo se pode - ou deve - esperar? Uma vida? Mas uma vida de espera, vive?
 O silêncio, o buraco no ruído, e eu... Socorro! Bolas! Quem grita? Não ver. Não falar. Não dizer. Sim, o ser. O atroz ser. Ah, o repouso! Ou alienação?
- Está? Está?
- A "Cebola" morreu.
A notícia não espantou.
- Nunca imaginei chegar aos vinte e sete! - Dizia  ela, expulsa da Itália depois de tê-lo sido de França, em Maio de 68.  Na altura a "Cebola", se não me encontrava, deixava à porta do quarto chocolates e uma mensagem: "Para o príncipe".
- Foi cremada nas margens do Ganges. Tinham-lhe recusado o repatriamento.
Não me admirou. Ela e o Estado - qualquer estado - eram inimigos.
- Dedicar-te-ei Christinnia - Prometi-lhe.
- Oh! - Sorriu encantada, um sorriso de menina contente por boneca que lhe ofereciam.
Nunca leu nada meu, viajava num sucessivo ir e vir entre a India e Portugal e os nossos encontros - como da vez em que fomos a Sintra - duravam dias, começando e acabando sempre no mesmo sítio: a harmonia do círculo no caos da vida.
Sensação de não ver mais uma pessoa... - A morte é isso?
- Morri? - Perguntei de uma vez a Rubin, com quem fumava um cachimbo de haxe, pois o mundo distanciara-se e, fora já de mim, pairava sobre o meu próprio corpo. A saudade daqueles com quem o contacto se tornara impossível entristecia-me mas, ao mesmo tempo, que paz, desprendimento, libertação...
 - Morri? - Perguntei confuso.
- A "Cebola" foi de over-dose. 
Chamava-se Nídia Danton e como, entretanto, em antropofágicas revisões, destruí Cristiannia - a obra de arte ideal não é a vida? - aqui lhe escrevo o  verdadeiro nome.
"Cebola"...
Dedico-lhe este diário.





Na tenda de parque de campismo, à luz da vela, sem saber o como ou o porque, e cada vez mais estrangeiro, sou, enquanto não me pulverizo, um desejo feroz de vida que seca no deserto que eu próprio segrego. 






















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