quinta-feira, 21 de outubro de 2010

1992

Entre a felicidade química e a dor prefiro a dor.


























Paris, 3 de Janeiro


Continuo a tomar anti-depressivos. A actividade criativa desaparecerá? No entanto subjaz a vontade de fazer coisas, de me dar ao mundo mais inteiramente, de uma forma, se possível dizê-lo, menos cheia de mim. Não me trazer às costas sempre.


Talvez os comprimidos me ponham indiferente. Talvez. Se assim for, tomá-los-ei até estar certo de que já não penso obsessivamente em Júlia.


Esta noite sonhei com algo que se chamava "O Processo dos Pássaros"






Sem dia marcado, em Janeiro


Provavelmente nunca chegarei aos escaparates das livrarias, nunca alcançarei lugares proeminentes nos "shows" e se, lá atrás, me pareceu que falhava, hoje sinto que, pelo menos, há-me uma hipótese de salvação. (Será a do calmante?) De qualquer forma, o resto não me diz e sou-lhe alheio. Gosto das pessoas, sinto uma comovida ternura pelos outros mas, por favor, deixem que seja quem me é. O contrário só causa desgosto e perca.


Sim, na solidão mais vazia reconheço-me e sou. Por isso Paris, ou outra cidade ainda mais estranha, permite-me a escrita despegada e crua, em acordo com o gelo que me solidifica.


Não me interessam os encontros, não me vejo em falas nem em "cocktails". No entanto sinto-me à vontade nisso tudo, como se não fosse feito doutra coisa. Mas a ruptura sempre irrompe e, entre mim e o resto, sustém-se a ponte que leva a ninguém.






Quase me destruía: o individuo disponível a tudo, afinal prisioneiro de rotinas e sabujeiras...






Impressões da visita à exposição Picasso: possesso do destino, da sua força. A agressividade, a desconstrução da visão oficial, o subjectivismo desaguando naturalmente no mito, através dos mais variados formalismos. Impossível ultrapassar a canga.


O instinto, o trágico, o carisma.






Auto-retrato de Alberto Giacometti: uma face enrubescendo. O delírio prestes a explodir em serenidade. Ou a serenidade a conter o maior delírio, o sonho - e tão grande - que mal sustém o suporte, o perturba, liquefaz e, de novo, conglomera, um remoinho veloz e incessante, caótico, transformando-se, no limite, em forma. Até quando?






Lisboa, 28 de Fevereiro


Outrora sentia-me vazio. Agora nem isso: sou o nada. Esgotei-me, fiquei no caminho e resta saber que se é. Que fazer? Olha-se. Nem alegre, nem triste, apenas consciência.


Asséptica.


Vontade de método, limpeza ou purificação. Nem mesmo compreendo o que sinto, talvez um desejo muito grande de interioridade, de unidade. De qualquer coisa que resista ao caos em que, de vez em quando, caio, ou me toma. De algo que permaneça. E procuro um horário, a regra, um fazer assim e assado. Não estar sujeito à intempérie das paixões, à devastação dos sentimentos. Ser alheio, imune, além de. Fazer exactamente o que quero, na exacta medida da necessidade, nem mais, nem menos.


Recolher.


Esconder-me na luz clara que me brota de dentro. Como se só agora o que sou se manifestasse e, então, o desejo de que suceda, surja e seja. Não mais tempo para outra coisa, para o des-ser. E a percepção de uma grande fragilidade, que o vento mais forte logo derruba tudo, e estraga, que devo proteger-me (mas como?) para que subsista, resista, e o meu ser alcance um pouco mais de tempo. Porque o dia de hoje foi, por exemplo, todo do outro lado, todo fora de mim, a mente acossada e acossando: desagradável, em suma. Não mais isto - digo-me no máximo de verdade - e, todavia, ignoro que mecanismos mova para que não ressuceda. Pressentimento do deus e, no entanto ser tão confrangedoramente humano.






Solidão é uma excitação que não encontra dono, um querer sem saber a quem, um estar que se conjuga sempre no singular.






Tento esfriar a cabeça, ver que sou eu quem anda atrás de Júlia, mendigando-lhe a companhia enquanto ela se alheia e, se me aparece, nem é por mim mas pelo que possa haver de material porque, na verdade, quem actualmente a paga fá-la rica mas não feliz. E ando nisto há seis meses, sem me curar porque assim não passa e continuo infeliz. Cego como se não houvesse outra coisa no mundo! E a obsessão a impedir-me de encontrá-la!






13 de Março


Tudo derrui. Só escrevendo me aguento.


Ontem acabei "O Príncipe Celso" e tenho urgentemente que começar outra coisa. O dia d' hoje já foi estranho e a noite só piorou.






Domingo, 14 de Março


Tarde de Sol. Como de costume os pequeno-burgueses descem à baixa a ver as montras e os pedintes a pedir. Sem grandeza. Leio Eurípedes. Esqueço finalmente Júlia. Enfim, toma-se a caneta, passa-se o tempo... Como se fosse um drama e afinal é a vida.






16 de Março


O mundo, tal qual é e não como queríamos, projecta-se em volta, do mesmo modo que nos reconhecemos uns e não quem quiséramos. Vão-se as ilusões, nascem as dores mais o sorriso irónico nos cantos da boca. A morte, neste contexto, torna-se apaziguadora, já nem longínqua ou apenas dos outros, mas natural e salvadora.






Dias em que as coisas não avançam, os amores não sorriem, o comboio empena. Dias em que a vida é chumbo e pedra, em que dormir seria um bálsamo se o próprio sono não descaminhasse no pesadelo. Dias em que a vida pesa, dói, arranha e qualquer movimento é sal em ferida aberta.






21 de Março


Escrever, escrever apenas. Ser eu próprio a literatura, a sua ideia, e vir cá fora viver o indispensável para melhor viver nela.






28 de Março


Andar longe e escondido, fora do olhar de todos. Não aparecer, ser visto ou fazer parte de qualquer lista, por mais inócua e benigna. Ignorarem mesmo que existi, que houve alguma coisa que deu pelo meu nome. Nada, nem memória ou rasto.






29 de Março


Preciso de acabar a minha obra e depois, provavelmente, o suicídio.


Vivo a vida como um jogo, não consigo levá-la muito a sério e nem sei se sou artista. Talvez não seja coisa alguma e vejo-me a escrever isto enquanto me pergunto se o que penso é correcto e sintoniza com a realidade. Sei lá!


Aguardo Júlia para mais uma infindável conversa de café, quando simplesmente ela não me quer porque não lhe dou garantias materiais. Oh, morrer sem que ninguém desse por coisa alguma e nem sequer a minha própria pessoa. Morrer é o que mais tem apetecido. Uma morte doce e discreta. Supondo que não tivesse conhecido Júlia: estava em férias, nadava, andava por ai e possivelmente viajava. Então... é isso que temos a fazer! Tudo começou lá atrás quando resolvi espreitar o mundo. Olha, regressa ao casulo!






31 de Março


A realidade serve-me de trampolim e frequento-a o menos possível. Assumo-me trânsfuga, os meus semelhantes deprimem-me, não sou de companhia. Esta des-soa-me, tal a minha ânsia de unidade, pois na tentativa de me diluir no Outro, ele toma-me e oprime-me. Nunca resolvi isto e ignoro como se faz.


Neste quarto abandonado por quem foi embora, ouço os meus gemidos de preterido e, no entanto, a alegria é imensa: o espaço devolve-me finalmente a presença.






Sem dia marcado, em Março


Neste último tempo em que te relacionaste com Júlia a tua literatura conheceu outros problemas. Entendida assim J. foi útil. Mas mais do mesmo pode tornar-se doentio e mesmo canceroso. Logo, muda! Deixa de lhe telefonar! Vive outras coisas! Chega de paranóia!






2 de Abril


Vivemos tão apressados que nem damos pelo que vivemos. A pressão do passado e a premência do futuro apertam-nos de tal modo que não permitem a tranquilidade para, no preciso momento em que vivemos, darmos pelo que fazemos ou de que somos objectos.






3 de Abril


Reler as cartas de V. Gogh dá-me algum alívio: na sua vivência com a prostituta reencontro alguns dos problemas que passei com Júlia. E acho que ambos, Gogh e eu, agimos da única maneira possível. Mas por vezes é doloroso manter a chama. Em vez de nos alumiar torna-se uma venda. A arte sorve a vida.


Através de V. Gogh conheci também a frase de Delacroix: “achei a pintura quando já não tinha fôlego nem dentes”. O mesmo se passa comigo? Acho finalmente a literatura?


Escreve-se porque nos sentimos em falta.






10 de Abril


Frágil e perdido.


Um dia destes dias percebi o que será ter um livro editado: toda a gente que o leu a olhar-nos em acordo com o que escrevemos. Qual o interesse? O anonimato é bem melhor. O meu problema é que se não edito, sujeito-me a ser professor o resto da vida. Mas o que gostava era de não existir. Por vezes, lá atrás, as coisas foram tão intensas e paradoxalmente difusas que me parecia dissipar. Um enorme sentimento de fusão com tudo: será isto o amor místico?






19 de Abril


Ocupação dos dias: fazer isto, aquilo, etc. A impressão de que este diário já foi escrito n vezes por n pessoas.


No cinema, o fulano a meu lado, estirava-se como se no sofá. A mulher que o acompanhava, toda crispada, atirava-se sobre o ecrã. O filme, esse, corria.


Passa-se por uma fase de "sem ninguém". Lê-se Kant, escreve-se, o tempo vai. Talvez não se pense demasiado nisso. Nem em nada.


A ideia de que nos últimos tempos me vesti de uma gravidade que não me serve e mesmo impede. Que tenho a ver com a função de professor? Não ser nada do que de nós esperam, defraudar todas as expectativas, ser sempre outro, o Outro. A prisão começa com a classificação.


Por vezes estoira-se de solidão mas que fazer se é assim mesmo?


Perdi a distância. O jogo. A brincadeira. Como se as coisas passassem a ser o que parecem. Tornei-me professor, isto, aquilo e tudo se me colou. Morte.






Lousã, Vale Sancho, 22 de Abril


Vejo a minha vida, o seu fazer, como uma condenação e, neste sentido, uma tragédia.


Se pudesse entregar-me-ia apenas à comida, ao sono e ao gozo mais instintivo…






26 de Abril


A revolta sem causa, a revolta em si mesma, pura, límpida, contra tudo e até contra si mesma. Onde o suicídio sequer adianta porque é ainda qualquer coisa e o que se deseja é o absoluto e, logo, coisa alguma. O esquecimento, em suma. Sem sujeito nem de quê.


Por fim, literatura.


Vazio pleno.


A minha vida é um caos que não governo e me desgoverna, um moinho de vento que contra si se rasga, um movimento que não leva a parte alguma, cheio de ruído e espuma.


A minha vida não se anuncia nem exemplifica, é tão vazia como o nada depois de deitado fora, tão sem sentido que nem o cérebro o imagina.


A minha vida é uma luta inglória e perdida, um esbracejar de afogado que irremediavelmente se liquida.


Hoje dói mais a dor por quem que não me amou o suficiente para esquecer o preço que não paguei.


Hoje dói mais a saudade do impossível, o preço que as coisas têm e as próprias pessoas se afixam, na falta de serem deuses, oferenda, arte e absoluto.


Hoje preferia não existir a lembrar o mundo mais aos que o fazem e sujam.


Hoje...






Sem dia marcado em Abril


Deixei definitivamente os calmantes.


Entre a felicidade química e a dor prefiro a dor.






1 de Maio


A acção deprime-me?


Talvez seja doutro lado, de nenhum, ou apenas um fantasma. A tristeza que por vezes sinto diz-me, no entanto, que não. E pelo caminho, preencho papéis, sujando tudo de tinta: "la solitude oblige"...






As pessoas música. Não vivem sem música. A de fora. Porque não a possuem dentro.






As palavras que não dizem. As piadas. O falar por falar. Depois, quer-se falar e não se sabe: gastaram-se mal os vocábulos, perdeu-se-lhes o valor.


O mundo aburguesou-se. O aborrecido é que se aburguesou pela medida ínfima: o pequeno-burguês. Que tem medo de não parecer bem e vive à mercê da Tv. Resta aguardar que cresça! Até que caia também.






Deitem-me fora!


Enjoe-me o mundo e sacuda-me como a uma catedral que não aguenta o próprio sino, acordando os mortos no seu túmulo. Venham a fome, a sede e o desespero. Não me aturo, suportar-me é um trabalho que não me sacia e esgota.


Esvaio-me sem que me saia. Sou-me e morro por falta de mim mesmo: nunca me fui nem encontrei.






4 de Maio


Sinto-me idiota e cretino. E sei, por experiência, que quando assim é, só expresso o que à minha volta se passa. Logo, a cretinice anda à solta.


Esforço-me por não murchar com tanto esterco em volta. A Valsa expressa o peso que neste momento sinto.






Tempo de merda, de consumo de imagem e auto-promoção, de fingir que não se sabe onde está o mal nem o bem mas ir à polícia depois da casa roubada.


Nojo, eis o que sinto e desprezo também. E é este último que me seca a pena como se o que vejo nem merecesse atenção. Mas a todo o momento há crianças que nascem, adolescentes - cada vez mais raros? - que, conscientes, se revoltam e velhos que resistem.


Enfim, lá vamos.






24 de Maio


Cansaço agradável de semana preenchida pelas coisas que se pretendem e coincidem com o que desejávamos. A vida por que se lutou. O sabor de morrer nela.






25 de Maio


Súbito, por um mero acaso, fiz um "casting" para uma série televisiva. Súbito, sem o aguardar, convidam-me para protagonista a ganhar um balúrdio. Súbito, estou comprometido com uma substituição numa peça e não posso aceitar. Que significa?


Poderia ter ficado famoso, visto que a TV populariza. Mas é isso que quero? Como se reflectiria a popularidade na escrita?


Não sei que pense, tento tranquilizar-me e ontem recomecei a escrever. Agrada-me o que faço e há vontade de voltar às aulas e a mais nada. O sucesso é indispensável para se ser bom?






29 de Maio


Período instável.


Ser actor é perder-se noutro e, pelo aplauso que nos dão, sentirmo-nos nós próprios. Ser escritor é recolher-se na companhia de uma quantidade de gente imaginária.


Todos os problemas objectivados, tudo assumido, para que a vida não se suje e a transparência de si para si continue: isto talvez o mais difícil.






27 de Maio


José,


Nascido no seio de um poder forte, cedo o percebi. Faltava, isso sim, a experiência, a vida, e um pergaminho familiar dificilmente a substituíria. Entreguei-me, pois, a viver, depois de, pelos onze anos, optar pela escrita.


Para ter sucesso é preciso relacionar-se. Não o faço e nada me levará a fazê-lo. Mesmo a hipótese do protagonista para a telenovela surgiu na sequência de um equívoco, pois nem era eu mas um colega que ia fazer o casting. E por chalaça, para acompanhá-lo, fiz também a prova!


Mais do que um sucesso efémero desejo o que possa existir, ainda que comigo não presente para o incentivar. Não é modéstia ou apagamento mas nada me convence que a celebridade seja cómoda. Depois de morto que importa? E, ainda que ela não aconteça, terei vivido como me terá apetecido. Como senhor. (Também é verdade que é miserável e frustre quanto faço.)


Sem saída.


Beijo.






José,


“Um pouco de sucesso não faz mal” - Dizias ao almoço. Mas se, desde o início, me foi claro que a minha obra seria sobretudo a minha vida, o que lhe conseguiria fazer... Fora isto o desejo de sucesso não me existe e sou mesmo alheio à sua necessidade (Oh sim, nos piores momentos quando nada sinto - e coincidem com aqueles em que, de tão vazio, sou tudo - há desejos de reconhecimento, pois então nem sei se existo, se não passo também de ficção)


O sucesso numa sociedade de moscas, pode bem ser o reconhecimento da mosca em nós. Não o procuro, quase diria não o quero.


Deixem-me comigo. O que depois acontecerá, é lá com isso.


Beijo






1 de Junho


O renascimento depois da perda.






4 de Junho


A correspondência entre o inconsciente e os meus actos é por vezes surpreendente. Comissariei uma exposição de pintura e deviam pagar-me o serviço. Acontece que a instituição promotora, de cariz benevolente, não usufruiu dos subsídios prometidos e, em consequência, fiquei sem vontade de receber qualquer pagamento. Enfim, a custo - porque também ando com pouco dinheiro - lá aceitei vinte mil escudos.


Mal os recebi logo os perco!






Nesta altura sinto mais difícil a "salvação da alma", falando em termos cristãos. É a pressão dos que conheço para que me "normalize" e também o cansaço.


Apetece-me tornar vagabundo.


Isto é assim: nós construímos um Eu, uma forma de estar bem. Quando tal sucede, dizemos que estamos "com Deus". Mas se o assassínio fizer parte do nosso bem-estar, rodeados das nossas vítimas, estaremos ainda "com Deus"...






6 de Junho


Que razão encontrar para sair da cama? Quebrou-se qualquer coisa com a racionalização posta em prática para me separar de Júlia. Como se a vida não aguentasse mais razões e a gota transbordasse o copo. E agora? Também é verdade que quando já tudo parecia passado a hipótese de reconciliação acendeu de novo o lume...


O amor pode ser perigoso para quem ama, auto-destrutivo mesmo. Os que amam andarão um dia de letreiro ao peito "Cuidado! Fora de mim!"?






As constituições deverão abordar os direitos da terra, a relação do humano com os restantes seres vivos e o Cosmos. Esta a tarefa d' agora.






A normalização é contagiosa porque um "normal" só sobrevive e se reproduz junto doutro normalizado. Ora ultimamente só me tenho dado com "normais" e comportar-se "normalmente" é o caminho certo para a "normalização". Como regra salutar, para caso de sufoco ou asfixia - morte a que são submetidos os diferenciados se apanhados sozinhos - convém diariamente, e com rigor idêntico ao usado pelo "normal" nos seus actos, praticar uma acção, por ínfima que seja, inusitada.


Já surpreendeu hoje?






11 de Junho


O sentido. Dar um sentido. Deixar tudo para me entregar exclusivamente à minha construção. Morrer de mim.


Não desejar. Ser como uma pedra. Uma pedra que, no entanto, observa e anota.


Despojo.


Porque o que cansa são os movimentos contraditórios, o ir para depois voltar sobre os mesmos passos, a perca. Os outros. Que querem saber, intrometer-se, dar opinião e nos desejam idênticos clientes de automóveis e televisões. E ainda o amor do próprio, a pena de se fazer assim, do "dar cabo da vidinha", não usufruindo dos bens que “ela” proporciona... Tanto o mercado influencia que só ele parece dar sentido à vida.


Não quero compreender tudo, sob pena de perder a hipótese do castigo, de me tornar injustamente tolerante, à semelhança de um deus que ao mais compreende.






21 de Junho


Hoje estou frágil, fácil, e tenho pena dos fracos ou quase mesmo de todos, nem sequer atirando garrafas de mau cheiro e ovos crus aos pedintes que me vêm fazer barulho inútil para debaixo da porta.


Hoje a pena infiltra-se-me e faz-me ceder, sentindo quase vontade de abrir a televisão e ver a telenovela, chorar de dó e piedade por uma qualquer miséria alheia.


Hoje não sou e, em mim, instalou-se alguém que me enerva e enfraquece, usa sentimentos de toda a gente, um senhor número tantos, com carta de condução e sorriso nas agências de emprego, procurando quem lhe ocupe a vida por medo de ser, de não assumir que vai morrer.






23 de Junho


Sou totalmente conduzido. As minhas decisões impõem-se-me.


Trágico.






27 de Junho


Dias em que se não é ninguém, nem mesmo o corpo que se transporta e ele olha-nos no espelho, estranho e sereno, acusando-nos do crime que, só por existir, fazemos. Não somos ninguém, não temos desculpa, não sabemos porquê nem mesmo há a pergunta; é o irremediável, o não poder ser doutro modo e tal fatalidade, só por si, mata-nos.






2 de Julho


Tão devastadora a vida, tanto destruir para igual erguer. E nós, a braços com ela. E esta vontade de revolução, de retirar à morte a sua perca. Haverá outro mundo? Seremos nele conscientes? A razão a dizer-nos que não... que não... e nós a não querer acreditar que as coisas sejam mesmo razoáveis.


Ah, dormir, dormir...






Porto, 10 de Julho


Convidado para actuar num episódio na série onde não pude aceitar o protagonista vim à Tv do Porto gravar um tal “Sr. Galhardo”. Enfim, há personagens que engrandecem um actor e outras... A avaliar pela amostra, ainda bem que não pude aceitar o papel principal.






12 de Julho


As conversas, as coisas, os ditos: tudo ao lado, sem acertar no alvo. Como um nevoeiro. Falta a entrega a algo que me ultrapasse. O quotidiano é insuportável e resvala para o Nada. No entretanto ganha-se dinheiro. Apenas. Não sei ser feliz nem o que isso seja. Se calhar nem interessa.






Lisboa, 16 de Julho


Sensação de debilidade mental, da idiotice. Talvez porque nada se queira dizer e, no entanto, a escrita suceda. Neste metro, por exemplo, onde ora viajo, encolhido e protegido da agressividade alheia, sujeito e objecto apenas desta pena.






16 de Julho


Falta a paciência. E no entanto está-se vivo, é-se privilegiado (pelo menos nasceu-se na Europa) e não se pode dizer que haja razão de queixa. Ou seja: é a vida. E a vida consiste neste contínuo dia a dia, a maior parte das vezes sem saber porquê, embora se suspeite, ou quase acredite, que nada é por acaso e que a razão preside. "Balbúrdia! - eis como me apetece chamar ao meu trabalho sobre o século XIX - que continua, diria por obra do “deus”, pois nem sei como aquilo tem crescido com tanta incerteza e desconhecimento. Como se as personagens surgissem da bruma e lentamente tomassem forma, alheias a mim, a este querer que me faz. Sou uma vontade - desejo de ir mais além - mas os obstáculos parecem cada vez mais difíceis.


Soçobrarei?


Grato ao mundo pela experiência com Júlia, pois graças a ela conheci um pouco mais da vida. Mas que dor!






17 de Julho


O actor tem de descobrir o ponto onde apoia o personagem para engrandecer as suas banalidades, fazê-las “questão de vida ou de morte”. O ser humano, ainda que o mais superficial, isto é, afastado da verdade, morre mesmo e o que diga é inerente a essa tendência, à sua definitiva sucção pelo Mistério.






22 de Julho


Sem paciência para os adiamentos resolutivos, as conversas que não vão, as pessoas em decrescimento, os adultos que, por defeito, continuam crianças.


Sem paciência para saber o que funciona ou não, para as frases que se têm de dizer, o não ser que se perpetua.


Sem paciência para ver televisão e ouvir rádio, políticas e boas morais.


Sem paciência para que o que em mim existe de todos, as lamúrias pelo que não foi e podia ter sido.


Sem paciência para a falta de paciência e, sobretudo, para a compreensão disto, para a grande tolerância do enorme deus a quem nada importa porque “tanto faz” e sabe tudo.


Não sei e tenho de me haver com a ignorância, decidir entre o bem e o mal, entre frente e trás, sob pena de ficar pelo caminho, e tudo a meu cargo, mais a descoberta de qual aquele seja. Vou, e faço, carregando problemas de consciência, sentimentos amargos e difusos, condenações, pecados, puxado por uma força cega que exige movimento e revolta, cujo nome desconheço, cujo destino não sei, mas tantas vezes oprime e desgasta, sendo já a morte a consolação, a pousada e o descanso final. Assim, ínfimo e medíocre para tanta responsabilidade, só e desamparado, no meio doutros iguais a mim.


Cegos e surdos num mundo que a todo o momento muda de lugar.






24 de Julho


Dia sem graça nem beleza. Onde a preocupação pelo dinheiro me ocupou mais do que devia, a incerteza quanto a um medíocre amanhã foi intensa e idiota, em que a lembrança do feito me atormentou com a sua dúvida. Dia em que não escrevi e me dirigi à polícia, depois de ter avisado um fulano que não me chateie com a sua estrídula flauta, depois das dez da noite debaixo da minha janela. Dia mesquinho, negro, pavorento, passado em filas de espera a resolver burocracias, acotovelando gente com olhos que não vêem. Em que andei longe de mim, esquecido lá onde não sou, fora do deus. O "meu" gato, alheio a tudo isto, lava-se feliz.






Talvez cansaço, talvez enjoo, talvez sensação de, afinal, não ter feito coisa alguma e ser apenas projecto. Então surge um desinteresse todo fadiga e eis-me derrotado, vontade de não-vida, arrependido já do que foi bem feito mas cuja lembrança rumina, tentando encontrar-me castigo. Impossível estar comigo, insuporto-me e não há palavra que me diga nem sorriso que me acalente.


Desvario.


Outrora mil desejos de escrita, biliões de histórias, factos, acontecimentos que minha pena digeriria... Agora, o nada, o não saber que fazer comigo, o deitar-me fora e o carro do lixo que já foi embora!


Resto-me além do que seria necessário e sobro como folha de papel pardo que não encontrou utilidade. Quem sou? Que fui? Que ainda farei?


Resíduo tóxico.






Porque não me passa este último caso amoroso o qual, inclusive fui eu que acabei de tanto me sentir mal? Porque teimo em manter a memória de quem, afinal, já foi?


E sinto já atracção por Júlio, por se assemelhar a Júlia...






Dias de rugas, dias nodosos onde o ser embate e se prende nas suas armadilhas, se rasga e viola, sangrando ainda mal raiou a aurora.


Dias tenebrosos, de maldições e blasfémias, onde os nãos se amontoam em estátuas à Recusa. Nada é límpido e tudo desfunciona num barulhar desregulador e cacofónico.






25 de Julho


Alturas, dias, semanas, em que tudo se dilui, o universo se liquefaz e o que era coeso e com futuro se torna nebuloso e, inclusive, desaparece.


Arrasto-me.






28 de Julho


Comprazer-se. Olhar-se nos seus sentimentos e gostar deles, ou nem isso, mas ver-se na sua companhia, como se rodeado por uma corte que nos tem em boa conta, se regozija com a sua própria existência e diz: olha como eu sou, olhem para mim! O idiotismo elevado à categoria máxima, reconhecendo-se como exemplo a seguir. Por vezes tudo isto - por distracção, contágio, falta de sábia vigilância, em suma –acontece-me, e a criatividade pára e embota, atolada na complacência. O rigor, a crueldade - utilizando a palavra Artaudiana - só ela nos conduz à fonte energética. De vez em quando - o tipo de vida que se leva, as coisas feitas para ganhar dinheiro, a Arte tantas vezes vendida a metro - tudo isso nos afasta.


Vivo ainda?


Imensa vontade de bater a porta.






30 de Julho


Dias em que a falsidade se insinua e o que dizemos, a nós e aos outros, não é, não corresponde, e finalmente, não diz.


Como isto acontece ou como se lá chega não sei mas posso imaginar: pouco a pouco o divórcio dentro de nós instala-se e tornamo-nos estranhos, hostis mesmo. Depois, devido à sensação de que a mentira é o que mais se nos nota - de tanto querer a verdade ninguém melhor que nós a percebe - olhamos já os outros comprometidamente, como culpados ou dignos de desprezo. E não conseguimos estar à vontade, um qualquer eu espia-nos os movimentos, os impulsos.


Por fim, nada é espontâneo.






Sem dia marcado em Julho


Sem paciência para fazer parte de um público, de um casal, de uma turma, de uma sociedade. Não mais ser apresentável e consumível. Não mais. Fim aos cumprimentos e a todo a panóplia social. Fim. Enjoo (ou enfado?) de possuir um mesmo código, saber as mesmas maneiras, viver de modo semelhante, respirar a mesma terra.


Escrevo? Enceno? Organizo? Sei lá! Se calhar até faço tudo isso mas a indiferença é cada vez maior, e aumenta, e cresce, e engorda. Estiola?


Quanto mais me individualizo mais vazio sou, maior a solidão.


Entre mim e o Resto estabeleceu-se a ruptura, o mal entendido e fico "à nora".


Só uma coisa me interessa: a salvação. Isto é: morrer na consciência de que a minha vida não foi em vão, que a levei pelos caminhos que devia, que nela o espírito teve prevalência. Porque o difícil, com o avançar da idade, é manter a autenticidade da voz, não abafá-la sob as vestes, o ouro, os enfeites.






6 de Agosto


Chegado aqui procuro resistir, não permitir que as simpatias e complacências me amoleçam. A ferocidade é um exercício quotidiano porque este mundo, aparentemente liberal e permissivo, devora-nos à menor distracção.






8 de Agosto


Normal.


Normal para mim significa á beira do colapso, percebê-lo, saber-lhe a existência e todavia não me alarmar. À superfície a calma e a paz. Por baixo, nem sequer o vulcão mas já o magma.


As palavras - ou os gestos - têm tendência para tomar conta de sentimentos e atitudes que não lhes pertencem. Assim, traduzimos mal a nossa própria realidade e vamo-nos parecendo aos demais. Então um dia procuramo-nos e já não somos: tornámo-nos uma forma.


A minha luta neste momento é contra a insensibilidade, a habituação às coisas, o conformismo em relação a mim próprio, a minha aceitação como um dado. Evitar o que não diz, a frase feita, a facilidade idiomática. E é na relação com o Outro que este combate se faz, na tentativa de não me deixar envolver, diria embrulhar, nos solofanes alheios, nos hábitos da realidade ou nos que a vestem. Porque o mal, tal a peste, não contente de tomar um, logo quer mais.


Temos que não trair o espírito para alcançar a realização. Não sei se é esta a tarefa de cada qual mas sem ela o resto não interessa. Talvez porque o que caracteriza o humano seja a percepção que ele tem de si. Perdida essa consciência, o mais que importa?






Paris, 11 de Agosto


O rigor.


Mais do que porventura antes, agora que o desgaste e o gesto fazem sentir que se está a meio caminho, de novo o rigor se impõe, ou lembra.


Rigor nos actos e nas palavras, recusa de se deixar embriagar pela sedução do fácil, do que não tem valor ou é simples formalidade.


As concessões, os contratos, os compromissos, pouco a pouco destroem-nos o desejo. E o momento vem em que já não sabemos o que pretendemos e logo se insinuam valores gerais como prestígio, dinheiro, etc. Porque saber o que quer, ter bem presente o que não interessa é parte básica da salvação.






Abúlico. Sem caminho nem luz. Afinal sou igual aos outros?


Perco-me na massa.






A partir de certa altura a sociedade corrói-nos. Os clichés, as frases feitas, os sentimentos enlatados invadem-nos. Ou porque nos cansámos, ou porque nós mesmo precisamos de tréguas ou, ainda, porque os desgostos nos abalam, para já não falar da publicidade que se nos infiltra. Pela minha parte sucede proferir coisas que no fundo não penso, que me saem assim, no derrapar da conversa, e ouço-me incrédulo: quem diz isto? Eu?


Um dia faltarei a todos os lados, não chegarei a nenhum encontro.


E estarei vivo e de saúde para ver o efeito.






Paris, 20 de Agosto


Estadia cansativa. O meu hospedeiro não tem qualquer noção do que seja a poesia e a sua preocupação é a limpeza da casa. E arroga-se o direito de me censurar por eu ainda não ser milionário!


Idiota!






22 de Agosto


Só. Duas letras. Uma palavra. O mundo. Melhor dizendo: o cosmos. O não saber onde, nem como ou porquê. E viver. E sentir uma vontade poderosa de actividade, de originar mudança, de deixar marcas. Problema da morte. Querer, portanto, ultrapassá-la. E não saber como. Nem ver os meios. Perceber que a imortalidade reside na memória dos homens. E não desejar ser apenas “mais um” nos compêndios mas pertencer ao lote dos maiores, ao escol. Mas como? E haver por falhanço não alcançá-lo. Loucura? Megalomania? Medo do esquecimento. Desejo de saber. Tudo. Mais a impossibilidade.






Sem dia marcado, em Agosto


Extremamente derrotado por não ter contribuído em nada, nenhum pensamento, nenhuma descoberta para a melhoria da vida.






O estado actual das coisas expressa-se por uma aparente regressão: a humanidade - ou a sua parte mais técnica - restitui o poder aos deuses e acentua, não os valores da solidariedade, mas os do egoísmo. Houve, pois, a fase do Outro (crenças soviéticas) e regressamos ao individualismo. Deixemo-la contagiar-se do colectivismo, pois "in medio virtutes est".






Como cuidar da humanidade?






Tenho rasgado parte deste diário para não deixar passar o menor des-rigor, o mais pequeno desvio. Porque, muitas vezes, as palavras exigem outras ao seu lado, alheias a que a sua presença traduza melhor os factos. Talvez me desligue da literatura, cansado dela ou tendo-a esgotado, virando-me unicamente para a verdade, isto é, para a expressão precisa dos meus estados.


Na verdade não tenho mão nas palavras e a todo o momento me despisto, saio delas, levando-as á perversidade.






Assustado com o que fez ao seu semelhante e, também, ao ambiente, o humano procura uma identificação com os processos cósmicos, uma "sua" natureza. Mas os dinossauros desapareceram e as coisas continuaram. Que resta? Laicizar a vida humana, tornar cada qual obreiro de uma sociedade mais justa e fraterna. Infelizmente, vejo no horizonte elevarem-se de novo os deuses. Uma parte da humanidade pensa, a outra tem fome.


Unir ambas.






Habituo-me à solidão das estrelas, ao nenhures da atmosfera, ao vazio sempre por encher da existência. Apetece partir, andar por aí, fugir de lá indo para além e regressar ao mesmo: esvair-me em movimento. Des-ser. E não deixar rasto algum, nisto abominando asteróides e outros corpos celestes.






Uivo.










Hélia,


Dias - ou são mais as noites? - em que o feito, as vitórias que cantámos, tudo nos bate na cara e mostra o que realmente somos: marcas desfiguradas pela violência das batalhas, sobejos, para não dizer destroços. E que fazemos? Guardamos o espelho ou furamos os olhos?


Lembrança de ti, dos teus risos doces. Desde que te deixei ainda não ri, a realidade fechou-se-me em volta como cortina de bronze: onde estás? Tanto desencontro, tanta atitude mal tomada, caminho deitado fora, vaidades vãs. Afinal a vida podia ser tão simples como a travessia de uma piscina... não fora a borrasca, os adamastores, o outro lado, afinal, ser tão fora. A morte, no meio disto, é já uma menina simpática. Será ela a bóia?


Beijo.






2 de Setembro, sentado n' A Brasileira do Chiado


Em adolescente vinha aqui entreter as noites, a minha já grande solidão. Hoje faço-o muito raramente. Porquê? Que me entretém hoje? Nada de especial. Aliás, tenho passado a vida a fazer "nada de especial".


Desejos de abandonar tudo, nenhuma vontade de me impor, de dizer aos demais "existo". Influenciá-los? Para quê?


A minha vida não se percebe mas… que vida é perceptível?






7 de Setembro


Cansaço. Pouco dinheiro. Sem companhia. Que mais? A vida tira as vestes de gala e mostra-se nua e purulenta. É um andar aqui, um ir acolá e, no entretanto, morre-se. Olho o meu rosto no espelho e vejo a morte. A minha estrada parece submersa por um mar tempestuoso. A própria escrita naufraga? Não sei. Ensurdeço os ouvidos, fecho os olhos e pretendo continuar o caminho. Mas a custo o sinto, a voz que me leva, cansada de batalhas por coisa alguma, mal murmura. Mesquinharias. Os deuses já não escutam ou já não estou onde falam? Como se percorresse um túnel em que fosse possível; e todavia o medo é nenhum, pois nada me amedronta. Vai-se. A luta por um espaço próprio é tremenda, a vaga que a todos arrasta exige-me também: pertences-me, já te agarrei - diz ela, e quase não resisto, e a resignação é o que mais dói. Afinal... Lembro outros diários, outras anotações de derrotas. Repete-se a história? A que me serve a vida? A humanidade, verifica-se, jogou mal no meu caso: saí branco. E a vergonha, o meu prémio de consolação. Onde estou? Tudo soa falso, e esta própria escrita é doutrem. Eu? Um monte de nada, um esterco que diariamente se alimenta e acumula. O barco perdeu o norte, ficou à deriva. Dentro, no entanto, vozes que foram mas deixaram de saber o que dizem, expressam coisas, ruídos, lembranças de portos algures: restos, pedaços de náufragos, desejos de terra ainda, acenos sem dedos. Haverá outra vida? O que fiz, para ser não sei quem (um herói de banda desenhada?) matou-me: suicidei-me em plena construção. Agora, observo os andaimes, os suportes e, lá por dentro, é tudo vazio. Ar, apenas. Quanto tempo ainda? Quanto tempo mais?






29 de Setembro


Acumulam-se os dias. Por vezes a quebra, a maré baixa deixa vir ao de cima as feridas, os sulcos da margem. Os amores não correspondidos, as pessoas que mais nos fizeram mal, as perdas, tudo o que não foi luz: as trevas. Nestas alturas o mundo, o andar nele, é tarefa árdua senão inútil. Todos transportamos um amor-cadáver. Em mim, onde a opção artística foi a regra, a solidão veste-se de Arte e floresce quando uma obra finda. Então, por um lado, há a sensação da batalha ganha e, por outro, o vazio que degrada. No resto do tempo não dou por nada. Alegre inconsciência. Ou existir sem dar por isso.






Sem dia marcado, em Setembro


Morrer. Cada dia um pouco mais. Mais perto do fim. As obras aguentar-se-ão? E depois?






Jorge,


Disseste que a alma te doía. Difícil que isso não aconteça quando cá se anda. Resta que a dor seja das que valem a pena. Chorar por coisas pequenas é choro que dói tão só pela sua existência. A morte de um dos nossos marinheiros, levado pelas ondas a caminho da India, é mil vezes mais proveitosa do que a do homem apanhado por um triciclo na estrada nacional nº. 5. O que não impede que ambos tenham deixado a vida e as respectivas famílias. Numa época de não valores bato-me contra ela e apregoo-os. Existe o bem, o mal e, para que saibamos o que são, chega que nos tracemos uma direcção. Não perfilho, todavia, que os fins justifiquem os meios. O objectivo pode ser contaminado por um má via. Logo, nem todos os caminhos levam a Roma, embora nela desemboquem. Chegar em condições é requisito. E acima dos fins particulares, existem os que respeitam à sobrevivência de todas as espécies. Quem ponha uma acima das demais não merece a consideração de nenhuma.


Além dos nossos pequenos desgostos está o bem que possamos realizar no mundo. Ao cabo da vida só ele nos servirá de conforto. A boa memória dos outros sobre nós, ajudará ao calmo abandono disto.


O trabalho que se gosta - a luta por obtê-lo merece a melhor honra - faz-nos esquecer a desgraça, ao mesmo tempo que nos aprofunda. Tira-nos da dor pois, em geral, no nosso mais fundo, raia o mar calmo e sereno. Como alguém já disse, um eu que não vê além de si próprio nada pode esperar dos outros.


Matisse disse: "Só me interesso por mim". Mas a frase num artista significa o mundo através de si.


Beijo






Sem dia marcado, em Outubro


Dificuldade - maior à medida que se envelhece? - em carregar as consequências das decisões. Não voltar atrás, como amedrontado que só já lembra o sítio donde saíu. Em todo o percurso há clareiras e, de qualquer modo, a natureza prodigaliza-nos a morte... ou a loucura.


Difícil não é viver mas manter a coragem face ao exemplo da manada que nos subtrai a força. A partir de certo momento há que tapar os olhos, fechar os ouvidos e destruir as recordações. Como Ulisses amarrando-se para não ouvir as sereias.


O trauma é a lembrança que nos afoga no seu remoínho.






O que vejo, molda-me.






Hino à Alegria


Dias em que a morte é mais próxima e o céu mais cinzento, dias em que a memória recorda os amores que nos deixaram e a vista nos projecta a felicidade que lhes imaginamos agora.


Dias em que tudo se desmorona e os castelos ruem em pedaços, deixando-nos soterrados sem paz nem alma, ou coisa que sobreviva. Somos, por inércia e arrastamento de uma ideia antiga, ou porque o suicídio repugna. Não vemos, não ouvimos, e o que há em volta fere como lâmina fina que nos corta o fôlego e a língua. E mesmo a bela mulher por quem nos apaixonámos mas que, à nossa pessoa preferiu o mealheiro, essa mesmo, apesar da consciência nos dizer que é má e não presta, mesmo ela nos atiça a tristeza e faz menos que nada, coisa apenas, embrulho que mal se segura de gente, restos que a chuva indiferente arrasta.


Dias em que os deuses, se nos olhassem, divididos em horas, dias, instantes, pressas disto e daquilo, veriam em tudo a dor omnipresente, sem dó nem misericórdia. Somos um saco de gritos, um caos de lamentações, um espelho partido e maligno que recusa a luz e a oferece ao universo: desperdício do que tanto necessitamos. Mas não. Tudo se estraga e azeda, as nossas mãos tornam-se frias, e gelam. Por fim, nem já escrever ou dizer do desprazer se consegue, e murmuramos coisas ininteligíveis, cuja obscuridade mais nos afunda. Lá debaixo, caídos no abismo, vemos então as estrelas: a sua incandescência parece um brinquedo dos deuses que, sibilinamente, nos cicia: olha como os outros são felizes, vê a alegria alheia!


Dias em que nem escrever ajuda.


Sós, no universo, tudo nos é alheio e nenhum apelo encontra eco. Ou que o ouvimos noutros tão destroçados quanto nós, os quais no entanto recusamos ver: são espelho que magoa. A dor, sim, é a grande dama da festa. Depois, resignados, fazemo-nos então a ela e quem nos oiça, dirá: vejam como ele canta e dança, vejam como a vida pode ser alegre!






11 de Novembro


Quando digo aos outros que me sinto medíocre, eles olham-me incrédulos. Devem sentir-se excepcionais.






Últimos dias perfeitamente cretinos. A correr de um lado para o outro, para encenar aqui, encenar além. Cortar com isto. A última coisa que desejo é tornar a minha arte um obrigação ou motivo de stress. Antes nunca mostrar nada a ninguém.






Telefonema para Paris, para S., a quem anuncio a minha intenção de lá ir:


- Por quanto tempo?


- Uma semana, talvez duas.


- Vem com tempo para tirares o máximo de rendimento


A quantidade de gente que quer que eu renda!






Lisboa, noite de 25 para 26 de Novembro


Ana,


Continuo a fazer as coisas com a irresponsabilidade de uma criança mas, ao mesmo tempo, torno-me “alguém” (os meus ex-alunos do instituto de Teatro que se tornam “vedetas” e reflectem esse status no professor?) algo me tira de mim, do meu sossego, da minha "anoninez", do meu não desejar ser outra coisa que um bom nadador. Até quando me manterei longe de tudo, do espectáculo cultural? Não há brincadeira que sempre dure? Querem-me sério e responsável.


Beijo






Sem dia marcado, em Novembro


Secura.


É o nosso desencontro com o Universo que nos debilita e envelhece.






Não te quero e faço por não te querer, pois nem de mal nem de mesquinho me alimento, e é Sol a minha natureza.


Não te quero nem invejo, e lamento o meu cego enamoramento que me fez ver em ti relâmpagos de luz, quando só eras noite e trevas.


Agora, só e desejando-te - por hábito animal, apenas - passeio no deserto a minha ilusão já fria, meus despojos de cinza. Quanto tempo levará a minha cura, até que te não sinta e o oásis reapareça?


O amor engana, faz parecer o que não é, o seu domínio enobrece, torna ouro o calhau...


Tomado de paixão, vi-te quem não eras e sofro, não pelo amor passado, mas por cair em mim. A falsidade dança ao som dos seus instrumentos de lata e o vazio, de braço dado com o nada, ri-me no rosto.






Meu amor, meu amor, meu amor, o que faria por ti e o que fizeste de mim!






Numa tarde de Verão onde o Sol abrasa e os corpos derretem, numa tarde inexistente mas onde te imagino e logo a memória esfria, pois não te associo a grandeza e astros, cometas ou vulcões em incandescência. Como me enganei tanto? Como foi possível andar tão longe da verdade, tão fora de mim? Amei-te, ou apenas desejei em ti alguém igual para melhor me entender e, múltiplo e uno, ir mais além? Não fui, não fomos. E tu não vens, o saldo bancário é pequenino… Minha tristeza é mar que inunda tudo, e na nova arca, odeio-te e choro a tua ausência.






Imagem de mim: aguardando passagem numa passadeira para peões encostei um papel ao poste do semáforo e pus-me a escrever. E este quadro sobrepõe-se a outro, na praia de Vila Nova de Mil Fontes: dezassete anos, sentado a uma cadeira e mesa encontradas ao acaso, a máquina de escrever aberta e o mar nos pés.






A minha escrita resulta de um percurso durante o qual fui guardando apenas o essencial. No fim serei só literatura.






Alcancei alguns patamares independentemente de ficarem abaixo ou acima: a solidão agrada-me mais que a companhia, antes a masturbação que uma presença meramente física.






Era fim de tarde e o nada surgiu. Bem fiz por falar-lhe das imensas coisas que começara, das que tinha pensado fazer, dos justos entretenimentos da vida. Nada a demoveu. Era o nada e não havia mais a acrescentar. E assim ficámos, eu e ela, e tudo se diluiu. A vida sem razão nem sentido.










Os meus melhores bocados tenho-os passado na piscina, na água. Emerjo apenas o indispensável.






Que não haja pena nem desgosto. A fuga da teia nunca poderá ser um acontecimento triste, ainda que a saudade da seda doa. Mas se não te libertas ficarás prisioneiro da deusa Prostituta: eis o perigo. Ora assume o erro, ó pobre criatura, e talvez tudo, o mar e o seu horizonte, sejam de novo possíveis. Tão pouco desejes a riqueza para... Não vês o que há no teu pensamento? Comprá-la... Comprá-la...Comprá-la... Não desceste já o suficiente para quereres mais descida? A saia do ser tem em si tantas pregas de devastação, para que as queres abrir uma a uma, em vez de apenas intuí-las? Onde vais? Há coisas que não se experimentam… Pela divina Puta os teus olhos viram falso, aceitaste o que não era: a paixão colore o quadro de tons inexistentes mas a moldura continua vazia. Queres mais engano? Porque pensas em chamá-la? Isto é... Pagá-la? Quem és? Um decadente? Alguém a quem a cegueira dá cabo da luz doutrora? Um que, num minuto, perde os mil anos longe do mundo? E a escrita? Que farás dela? A verdade - ó mísera verdade - é que a arte se alimenta de tudo, como altiva soberana que não pergunta quem lhe deu a corôa. No papo e é tudo. Os meus personagens, serão - à minha semelhança? - traidores, trânsfugas, gente que teve a luz mas não a coragem?


Ainda me há qualquer coisa cá no fundo, ainda não compro pessoas! Mas fui ferido, isso sim, pois à compra já compreendo.


Socorram os meus deuses que lutam contra um demente.




Nenhum comentário: