quarta-feira, 20 de outubro de 2010

1995



Só a escola renovará o mundo.







17 de Janeiro


Reposição de "Homo" na sala grande do Teatro da Trindade. Finalmente senti o que fazia em palco: levei dez dias a reencontrar a personagem.






22 de Janeiro


Apodera-se-me de novo o desespero do quem nada tem a perder.


Actuar, cuja gosto é recente, enche-me de uma fúria que não consigo explicar. Por um lado o público exige algo, por outro estou disposto a dar muito mais e esta diferença - que faz o acontecimento - escandaliza-o e fascina-o.


Dói-me a ideia de que já não consiga viver sem um palco. Todavia ele não me esgota.






Sem dia marcado, em Janeiro


Teatro da Trindade, minutos antes de entrar em palco:


O facto das minhas actuações terem sido unânimemente aplaudidas tem-me convencido de que sou capaz de actuar. Ou, pior, tem-me posto na situação de querer igualar "aquela" actuação que escolhi como "modelo" quando, afinal, cada qual vale por si e nunca se assemelha às demais. Também o facto de ver frequentemente a minha foto na cidade, mercê deste trabalho, igualmente me constrange como se tivesse que actuar "à altura".


O que acontece em cena ultrapassa-me, isto é, não depende exclusivamente de mim. Face a isso só me resta preparar-me e, depois, entregar-me à personagem, da mesma forma que um convicto da sua crença se entrega à fogueira que o castiga. Com fé, procurando que ela atenue as chamas. Ou que as converta, diluindo-as nele.


Só acontece qualquer coisa em cena quando saio dela outro que não o que primeiro a pisou.


Entendo a vida artística como uma vida entregue à religião na sua expressão artística. Artista deverá ser sinónino de alguém junto de quem nos podemos acolher, sem temer pela segurança e bens.






Paris, 30 de Janeiro


Louise diz-se tomada pelo meu corpo e que lhe dói libertar-se. Que não quero fazer concessões. A concessão de ficar a viver em Paris...






Lisboa, 25 de Fevereiro


Já não sei escrever aqui.


Perdi-me no mundo da gestualidade. Sinto-me expressão mas é só para fora. Dentro não há nada. Aliás, nem sei que faça. Actuar - que percebi poder ser um prazer - acabou. Vontade de mais? Se acontecer. Ou seja, a energia para que aconteça é nula. Ao fim e ao cabo resto-me.


A tal ponto não sou que neste entretanto em que não escrevo, não actuo, não enceno, pairo como se não fosse. Potência, apenas.


Passeia-se na rua na remota esperança do encontro que não existe, passa-se os dias como desempregado subitamente esquecido da profissão.


Dormir.


Ou não existir.


Um dia este des-ser será tão grande que poremos as coisas em acordo. Mas olho-me, aprecio-me e, por enquanto, ainda suporto.


Escreve rapaz, escreve senão nem sabes para que és! E enquanto o fazes sempre ganhas a ilusão de ser.






23 de Março


Repasso este diário.


Onde tenho andado?


Dir-se-ia que fora de mim, desencontrado, como se a realidade fosse outra. Deixei de me pensar, os problemas exteriores tomam-me (estive dois meses e meio sem emprego, felizmente arranjei) e no entretanto escrevi um argumento. Ainda invento! Mas já não me sinto. Sou um depósito de possibilidades inventivas, elas saem-me, enfim, sem que dê por isso. A quantidade de interesses de que me quis construir, levam também a que me esqueça. Renunciei tanto que já me sinto melhor sem dinheiro do que com ele! Formou-se-me, pois, uma tal capacidade de afastamento que pairo numa soberana indiferença.


Neste momento faço:


- revisão deste diário


- ministro uma oficina de teatro para adultos


- enceno uma peça com adolescentes numa escola secundária






Sem dia marcado em Março


Este diário já me repugna. Como se o próprio pegar de caneta me impossibilitasse - interrompem-me... Tento repôr o pensamento - Pego então na caneta e quase custa pô-la em posição de escrita, uma grande impotência, a vontade liquefaz-se e a custo sigo a linha. Ou que esta se me segregue por uma estreita abertura e seja eu um limão duro de espremer mas aparentemente sumarento.


Voltar ao meu tempo livre. Onde foi isso? Lá atrás, sem dúvida, lá atrás...










11 de Abril


A voz interior, à medida que se afina, torna-se mais profunda. Dou-lhe toda a atenção senão causa-me dificuldades e, na melhor das hipóteses, perdas de tempo. Ela quer que me imponha, e devo estar à sua altura. Resignemo-nos a ser seu escravo.






Segunda vez na vida que se me esgota o papel e, por atrazo de pagamentos, ando sem meios para comprá-lo.


Farto de aturar incompetentes e ignorantes de má-fé.






29 de Abril


Acentua-se a sensação de vertigem, de desaire acerca da vida. Um ordenador avariado não teria organizado maior descalabro.






5 de Maio


Como não quero transformar a minha actividade num produzir de mercadoria para satisfazer este ou aquele público, senhorio ou entidade, decidi passar à clandestinidade. Isto é, vou ganhar dinheiro com outra coisa - provavelmente voltar a dar aulas - e preservar o meu fazer estético, de modo a que ele seja livre da obediência.


Arte é luxo.










6 de Maio


Se há grandeza em investigar o humano, os seus abismos, pináculos e... pocinhos, não a há menos em inventariar as formas possíveis da sobrevivencia colectiva. Por vezes, há mesmo que olhar com prioridade as últimas, sob pena de não admirarmos nenhumas.






7 de Maio


Enquanto à mesa a escrever lembro Séneca que, nas "Cartas a Lucílio", refere o ruído da turba no circo. No que me respeita trata-se, por um lado, dos foguetes atirados pela passagem da procissão de Nossa Senhora da Saúde e, por outro, de umas tantas claques de futebol a caminho do estádio. Mas o cortejo passava-me à porta e desci a vê-lo de perto: gente gasta pelo trabalho, sem luz e em vias de desaparição, imigrantes camponeses que, ao contrário do que pensavam, a capital não enriqueceu. Ainda por cima perderam a sabedoria que os pés nus na terra lhes oferecia. Resta o desfile na procissão, em cata do favor da deusa, ou agradecendo mesmo assim o obtido...


Mas também o senhor presidente da câmara. Muito fino, muito pálido e correcto. Mais a esposa. E outros senhores também de fatinho azul. Todos atrás de Santo António. E cravos azuis e brancos a rodeá-lo. Flores: o mais bonito do cortejo. E música. E cavalos: igualmente bem arreados e com coisas horrorosas na boca para servirem o deus-homem.


Mas o mais feio, o mais tenebroso na sua máscara cerrada e descaída de quem não abre mão do poder ou o conseguiu, sabe-se lá à custa de que sacrifício, era um Tal debaixo do páleo, ornamentado com as vestes da devida hierarquia: o bispo? O cardeal? Alguém em todo o caso de serviço ao dia e que teve que desfilar mostrando a sua azia, o seu rictus de contrariedade, o amargo de boca e desgosto por... Por pertencer à divindade? Que fazia um homem de rosto tão fechado no que devia ser plenitude e aceitação?


Desfilava?










20 de Maio


Mal.


Uma tarde conseguida, um semana com contratos e afinal... o vazio, o nada. E este papel a quem se fala mas não responde.


Para quê isto?


Apaixonar-me sei lá por quem, entregar-me sem sentir, para evitar esta solidão física de não haver uma boca por beijar?


Cansaço.


Não sei até onde irei nisto.


Devo sair mais vezes.


Um bichinho verde passeia-se nas minhas folhas, nesta folha onde escrevo e o seu microscópico deambular pela minha caligrafia, só, na imensidade da folha - ponho-lhe o dedo à frente e ele sensatamente desvia-se - faz-me pensar que a minha solidão, afinal... Mas ele não a sente, não fabrica cultura.


Tenho vivido a solidão como opção que permite, com pouca despesa - que faria se tivesse filhos, etc? - oferecer-me à escrita. Mas por vezes pesa.


A minha "invejável" vida - escrever, pensar, ócio - custa uma tal renúncia que pergunto se teríeis a coragem de, primeiro conquistá-la, e depois, vivê-la!


Já fiz n telefonemas para falar com gente - sempre dentro das boas normas educativas quando o que apetece é romper em pranto, bater com a cabeça, os pés e o corpo todo, como as crianças quando se irritam ou o mundo as abandona - e afinal...


Outro telefonema.


"Não está"


Acalma-te, pequeno... O cansaço não te permite escrever, por isso sentes tanto o momento.


(Melhor findar aqui a escrita)






Sem dia marcado, em Maio


Cacilhas.


Tem um boné "Chicago" e olhos muito belos. Encosta-se à parede onde, do lado de dentro, à mesa da pastelaria, eu o vejo. Nesta uma família lancha e as conversas cruzam-se entre os de pé, ao balcão, e os outros, os sentados. No cais em frente um barco atraca e solta a sua carga de gente: lenta porque não vai a caminho do trabalho.


Domingo.


Ele - observo-o - treme das mãos e imagino-o carente de droga. A mãe vende flores que dispõe num banco. Falam. Sorriem. Talvez seja o garoto que ela protege.


Do outro lado do largo dois adolescentes procuram quem os alugue. E um garoto de dez/onde anos olha-me, insolente, enquanto a madrinha se fecha no exíguo WC público. Uma família desembarca do automóvel e olha-o. Desconsertou-se. A madrinha do miúdo desencaixa-se do WC e luta contra a porta que teima em não fechar. Já leva pela mão o garoto e este, num último olhar, promete assassinar-me um dia.


O barco voltou a partir e não me levou? Irei no próximo? "Chicago" também foi embora.






Sem dia marcado em Junho


Não escrevo há tanto que fiquei algures num lago que não escôa e onde os peixes já não respiram.


Socorro! - grito - e eles, os que me convidam, brindam, e querem para centro da sua mesa, não entendem. Socorro! - grito - e tenho de ser o meu próprio enfermeiro senão destroem-me enquanto me enaltecem a vida.


Cansado de passar entre mesas, convivas, plataformas, inter-faces, correr nas auto-estradas, cansado das conversas que não me aceleram ou de parar nos intervalos que só eu frequento. A música, o baile, o vai-vem do ir para tornar a vir, mais o terror das mortes bem camufladas: eu vivo? Ou apenas correctamente giro esta forma de respirar dizendo bom-dia, boa tarde, boa-noite, bom...?






8 de Julho


Trabalho mascarado de "Robôtcop" na Feira Popular e, súbito, as crianças desejam-me. "És muito fixe!" - diz-me um garoto e outro - o Ezequiel - dá-me a sua mão. Toco-a como se ela fosse cristal do mais frágil. E é-o.


As mãos e os olhares sem véu das crianças que me cumprimentaram, passaram-me tanta energia que, ao despir o fato cujo porte me tornou no seu ídolo, pergunto-me como poderei manter aquele amor.


As crianças, meu deus!


Até a expressáo se me treme!






Ps. Na experiência mais humilde - encarnar um robôt numa feira sem sequer um anúncio a dizer "fulano de Tal a fazer de X " - encontrei a minha noite de cena mais fabulosa. Ser amado pelo mundo infantil!


"És muito fixe!" - repetia embevecido o Tiago dos seus cinco anos de altura.






14 de Julho


Isto está a obrigar-me - começou com um desfile que encenei para uma festa e ameaça continuar com um espectáculo para a produtora X - a vender-me aquém do que sei fazer. Ou seja, ando a assumir espectáculos sem condições. Devo parar. Lavarei pratos. Quero Arte e não "artinha"






Sem dia marcado, em Julho


o mundo obriga a relações perversas, indirectas, desajeitadas mas, também, a umas tantas divinas.


Vontade de editar mercê da dificuldades que sinto nisto e para que, recebendo dinheiro da escrita, me consagre a ela inteiramente. Também poderei lavar pratos mas... duas ou quatro horas diárias quanto renderá? E porque devo ganhar dinheiro com os manuscritos? Vejamos: se escrever e ganhar dinheiro, o tempo a obter dinheiro é passado a escrever...






Depois de ler o texto (não fosse eu dramaturgo e faria alguma coisa com "aquilo"?!) tive a seguinte conversa com o autor que me contratou para encená-lo:


Eu - Olhe que o seu texto em teatro, enfim, não sei se vai reconhecê-lo...


Ele - Não me diga, veja lá!


Eu - Bem, você sabe, a encenação...


E o homem dá-me a impressáo de querer tudo menos uma encenação. Enfim, deseja vender o produto! Ora, sendo assim como não passar à clandestinidade? O contrário é fazer arte para gáudio dos consumidores em vez de para me salvar.


Em arte cada concessão tem que ser ganha pela própria arte.


Neste momento é-me claro que desejo pôr um letreiro na testa "não se vende" para que nem me perguntem o preço.


Resistir.






O projecto de alcançar leitores e viver da escrita parece-me louco mas quase sucumbo quando me dizem que é impossivel.


E todavia sinto-me vazio de interesse.


Loucura? Seja! Limito-me ao que devo e a ser cego ao mais.






6 de Agosto


Domingo em Lisboa


África vinga-se da pretensão europeia de Portugal e invade-o...


Agosto, céu enevoado, o calor húmido e a falta de dinheiro empurram os pobres à indolência e deambulam pelas ruas da "baixa" como lagartos que mal se arrastam. Os olhares vagos, os passos titubeantes (o mundo capitalista para um sem-nada é mero cenário) as conversas moles e a instrução nula. No entretanto o turista, o da europa rica ou da riscada América, fotografa obssessivamente no intervalo do seu hotel de muitas estrelas.


Lisboa em domingo de Agosto, retrato de um país devassado pela febre do ouro, em risco de perder o que tinha.


Ou um Portugal empacotado a debater-se no breu imigrante.






Sexo para mim integra-se cada vez mais numa relação consistente e a minha gratificação, quando hoje ajudei o prostituto Sérgio que me abordou na rua, foi exclusivamente essa mesma ajuda.


Ps. Do meu varandim vejo, pelas nove horas da manhã, meia dúzia de bons cidadãos num caixote de entulho a apanharem grinaldas que uma loja deitou fora. Por um lado procuram flores (artificiais, enfim!) mas por outro... no entulho? Pobre classe média!


Dizia um dia o meu prestamista de serviço, enquanto me avaliava a eterna máquina de escrever:


- A classe média é como a sardinha. Ao menor temporal dá à costa.










18 de Agosto


Encontrei um jovem na rua - o Sérgio - que se me quis vender - disse-lhe que não comprava pessoas - e em que, em consequência, me contou belas e tristes histórias, as quais acabei por adquirir. Todos os dias - durante sete dias - me narrou uma diferente e paguei-lha. Acreditei que contribuía para o início de uma carreira, "Sou pintor mas não tenho as ferramentas" e afinal ajudei-o a comprar heroína.


Quem não se alimenta de sonho?






Diferença, diria fundamental, entre os seres: uns assumem cada um dos seus desejos e os outros... os outros tornam-se massa.






Sem dia marcado em Agosto


Atiçados pela pobreza tentamos a todo o custo salvarmo-nos da miséria moral, sabendo que, abaixo de um certo nível, não há gentileza que resista e que os pobres são obrigatoriamente "feios, porcos e maus",


Considerar-me-ei o homem mais desgraçado se, no meio da maior penúria, não fundar uma associação de ajuda aos que ainda têm menos. Enquanto assim pensar, considero-me rico.






Tudo treme.


O que era adaptado e nem se dava conta, torna-se notado e já parece sobresselente. A incomodidade toma-me e sou áparte de mim mesmo, qualquer coisa que não encontra lugar na prateleira e cai como puz de um furúnculo. A mais.


Em redor o mundo desorganiza-se e não encontro a casa, o sossego, o bem-estar, a pílula que a todo o transe procuro.


Desfaço-me. Desfeio-me. "Des" no que esta partícula tem de anti, contra e não. Enquanto isto encosto-me a um canto, a uma escrita que me dê de novo a tábua de salvação






Escrevo com raiva, leio-me com ódio.






23 de Setembro


A literatura sugere, o teatro mostra


Entreguei ontem numa editora o meu último escrito. Depois a sensação de nada, de coisa alguma, de perca no mar dos objectos, na enxurrada da vida.


Comecei a dar aulas numa escola secundária. Escrever e estar à mercê de contratos que aparecessem para encenar ou actuar era demasiado instável e acabava por não permitir a escrita. Agora tenho uma catrefa de gaiatos e gaiatas entre os quinze e os dezoito anos e gosto deles. Acho que me reetribuem. A vida cada vez me parece menos interessante (na sua forma humana) e encaro-a como uma missão. Desejo terminá-la o mais depressa possível. No entanto, em obediência à forma como a encaro, devo esgotar o meu fazer aqui. Não partir nem antes nem depois.






Que descalabro! No partido y, o tal que queria modernizar a esquerda, decorreram seis meses antes que me chamassem para a "sessão de apresentação de novos militantes" e, agora, de quando em quando, recebo uma carta para votar no senhor X...






6 de Outubro


Hoje a realidade mete-me ainda mais nojo do que habitualmente, é quase impossivel viver nela, senti-la em volta. Repugna.


Hoje a realidade não tem anestesia e é uma injecção que tomo sentindo bem a agulha pela carne dentro, apesar do esforço da enfermeira sacudindo-me o corpo para que não perceba o frio do metal em mim. E transporto-a, como um touro a farpa: enraivecido e impotente para me ver livre dela. E ponho-me ao Sol para que ele a derreta. Ou aqueça.


Nem consigo escrever, estou além da expressão e ela inquieta-me, tal como o matraquear e carregar destas teclas que me importunam e oprimem. Apetece chorar mas de um choro sem remédio, sem consolação, um choro que sabe que depois de se esvaziar não vai sentir-se melhor e tudo voltará ao mesmo.


Outrora sem futuro, agora sem presente. Não respiro, o ar não entra, ou entra e é tão real, tão evidente, que sufoca e tenho vontade de me intoxicar, para não sentir isto, sentir outra coisa, ou mesmo nenhuma.


Vou á rua comprar uma cigarrilha, deitar fora este excesso de vida, envenená-lo, suicidar-me um pouco já que não pode ser de todo, pois marquei um encontro algures.


Não. Não vou fumar. Fico a sentir isto tudo, como um réptil ao sol, e que passe. Se não passar...






21 de Outubro


À medida que os anos avançam o pobre, face ao desperdício e iniquidade gerais, sente a sua condição cada vez mais violenta. A pobreza tolhe. De uma paralisia que por fim trava mesmo a imaginação.


Ofereci a Tv. Prefiro calcular o que vai pelo mundo partindo do ouvido do que do visto. Este sacia-me a necessidade de deslocação e, afinal, alguém viu por mim.


Ultimamente tenho tido cefaleias, talvez precise de ir ao oftalmo. Como o tempo é escasso! Farei alguma coisa? Há três semanas que mal ligo o telefone para que não me interrompam vacuidades bem intencionadas. E dou comigo a perguntar-me o que quero. Ser rico? Ter poder? Escrever bem? A proximidade da morte faz vir ao de cima a questão da utilidade da vida, o que nela projectamos. Não consigo erradicar a sensação de falha no meu percurso, como se tivesse tomado decisões erradas, seguido caminhos incorrectos, desperdiçado oportunidades. Desastre. E escrevo-o. E sobrevivo. Aliás, já nem sei como escrevo. Desde que acabei o meu último escrito nada comecei de novo. Arrasto-me e todavia não findou o meu trabalho nisto, o meu falhanço não se concluíu ainda. Artista? Ou palerma?






São Martinho, 29 de Outubro


Eles são gentilmente monstruosos, ensalivam e emporcalham tudo.


Faz isto, toma aquilo, já experimentou aqueloutro? - tudo numa voz que se diria do mais puro interesse quando, afinal, querem colonizar. São maus, asquerosos, assassinos de individualidades. Que força não é necessária para resistir anos e anos a Isto e ainda dizer "eu sou!" Cobardes, porque se lhes dissermos "Mata! Toma este cutelo e esfaqueia! Toma a faca e retalha!" logo gritam "Que pavor!"


Na verdade, concebem os assassinios através das boas maneiras e das falas mansas e, em última caso, chamam em socorro uns tantos psis: são sensíveis, eles! E civilizados.






30 de Outubro


Reuniões chatas e hipócritas para avaliação do comportamento dos alunos nas quais ninguém crê no que diz ou no respectivo projecto. E cada qual a valorizar o seu método de ensino como compensação para o pouco amor recebido na aula.






Alturas em que não apetece perceber nem ser compreensivo. Apenas uma bomba que expluda e nada mais.






11 de Novembro


Café num dia curto que o dinheiro não dá para maior. Conversas que não arriscam nem buscam o mistério ou os excitantes silencios. Mesmo o "croissant" que me colocam na mesa é rotundo e recheado de condimentada sensatez. Em redor jovens fumam na indolência de quem sabe que, daí a algum tempo, repetirão o gesto de tirar o cigarro, acendê-lo e aspirá-lo para voltarem ao mesmo. Os fumadores mais velhos observam satisfeitos: têm quem os imite.


Café curto na pastelaria enfeitada de roupa lavada e sopa de nabiças, por sinal saborosa, com os clientes a olharem-me, barbudo e colorido como um pássaro tropical, cujas asas ainda não desbotaram na lixívia do dia a dia. Olho uma planta, tão deslocada como eu neste ambiente pequenino, enquanto na rádio uma voz canta "o grande amor d' amanhã"






26 de Dezembro


Cantar, actuar, pintar - ou a galinha da vizinha - tudo me parece mais capaz de criar felicidade do que a arte que escolhi. A escrita amordaça-me nas suas palavras prenhes de significados indesejados, no seu espartilho de vocábulos-fetiche a que é imperioso fugir.


A escrita, diria, é uma chatisse. E depois é solitária. Rouba-nos ao mundo, esvazia-nos e deixa nada.






De novo idiota. No meio de tanta conversa, de tanta gente que fala e desfala, perco-me no paleio geral e deixo de me ouvir. E sem a minha música bailo sem saber onde ponho os pés.


Não sou de gente, não sou de trazer pela mão para mostrar no dia dos prodígios.


Deixem-me, deixem-me ir ao fundo do breu que me ascende, e esclarece, e não me chamem para ir além ou acolá, o meu préstimo no reino das coisas é nenhum, acabo sempre por partir a porcelana, e sempre na pior altura, quando nem mesmo há lugar a um pedido de desculpas, pois o desastre é o comum.


Escrever só interessa na destruição deste que sou, na ressureição da palavra obrigando-a a desfazer-se do que significa, travestindo-se doutra.






Desliguei o telefone, juro que ninguém mais me há-de consumir e eis-me meu, usufruto da minha pessoa, escrevendo-me.


Há tanto não estava só.


Quero isto, esta solidão onde finalmente me escorro em tinta, palavra escrita e, por luzes e brilhos submersos, consigo-me a voz, negra e escura, escura e espessa, e também fria. Só, aqui, nesta dimensão onde o fosso entre mim e os outros se infinda, alcanço finalmente existência. Isso o que outrora procurava na forma de vestir diferente, num pôr outro que repelia todos os alguéns.


Quero a ira, a guilhotina lá onde eu e os outros ainda comunicam. De mim ao resto apenas silêncio e absoluto. Vazio. E que ceguem, sejam inúteis todas as tentativas de comunicação. Fazem-nos "escritores" e roubam-nos as palavras. Encomendam-nos histórias e traem-nos a imaginação. Aqui tudo se desvai, tresvai, descose. Resistir é cerrar os olhos, bloquear os ouvidos e tirar o açaimo da boca. Não ter profissão, não estar, não fazer parte da lista telefónica, não ir. Ou andar lá enquanto os outros lá não andam. Desaparecer antes que nos descubram.






Sem dia marcado, em Novembro


Novembro (ia a pôr Outubro) de 95 (com vontade de anotar 96)


Engano-me nas datas, troco os dias, nunca sei a idade e habitualmente acrescento-me um ano, convencido de que o tenho, o tempo é uma extensão onde não encontro marcas e, todavia, sou de uma pontualidade exasperante à qual, em regra, os outros não correspondem.


Na verdade chego a horas mas, em mim, é outro ano, outro tempo, outra galáxia.






Se tivera de fazer tudo do nada, não sei se conseguiria. Se não houvesse herdado o hábito do domínio, a facilidade do senhorio, estaria aqui onde estou?


Por isso encontro-me incapacitado para julgar os que, nascidos no despojo, despojados morrem. Que sei da canga de gerações e gerações de servidão?






O escritor é um mata-borrão: absorve.


Depois transforma-se em homem e valoriza.






Postal não enviado


Teresa,


Só vejo verdura. Andei nem uma hora depois de Lisboa e eis-me a milhares de kilómetros da Rua Augusta. Afinal o paraíso era perto.






Esta cidadezinha pequeno-burguesa enformigada de gente que não ousa o impossível, é a boca de lobo que nos degola sem que nos apercebamos das suas mandibulas. Os mini-pratos, os obrigadinhos, os adeusinhos...


Tudo pequenino para não assustar.






No metro, a hoste trabalhadora lisboeta quando sai do trabalho não vai para casa: arrasta-se. A massa francesa, por exemplo, no regresso do labor, sabe que a espera a gratificação: um bom apartamento, o automóvel, o campo ao fim de semana.






Só a escola renovará o mundo.


A educação deve ser lúdica. Sumerhill e outras experiências tinham razão. Não sei para onde vamos mas podemos estar a construir um mundo feéricamente desagradável. Porém o hábito funciona e o passado será sempre desenxaibido aos olhos da "actualidade". O presente coloniza o passado. Ninguém, por mais que inveje outro, gostaria de deixar a sua personalidade. Assim as sociedades.


A minha fragilidade pensante é total.


Jantar, saída, encontro de muita gente. E depois? A sociedade artística. Dos imbecis que necessitam de se expressar senão morrem ou dos que não querem andar à cadência do fast-food. Não sei quem sou. Sinto-me ridículo. E na rua os miúdos da Escola gritam "Olh'ó Sr. Dr.!" Que comédia! Tragi-, é claro. E eu? O ensino é um sacerdócio na medida em que o professor deve viver em acordo com as suas teorias. Só assim é digno de respeito. O pedagogo é um modelo tal como a vedeta rock.






Louise,


Je crains ne pas reussir la divinité.






Sem dia nem mês marcados


Paris


Uma casa de banho pública, na Madeleine. Portas debruadas a dourado, mosaicos de excelente gosto. Uma empregada atende os aflitos. Mas o sítio é tão fino que fica mal sentir necessidades. Creio mesmo que os mais civilizados, depois do gentil cumprimento à recepcionista, sairão, de imediato, esquecidos do que lá os levara. Farão na rua, encostados a um tapume, pressionados pela extrema aflição.






Sou um destroço.


Os meus escritos são tentativas de argamassa constantemente em ruínas.






Não sair. Não deixar que me cumprimentem. Não deixar que me funcionalizem.






O acto artístico justifica-se unicamente se formos incapazes de deixar de fazê-lo. Ele há tanta profissão!






Não quero mergulhar na escrita para esquecer o desconforto da vida.


Hoje quero lembrar tudo.


Preferivel viver entre a lucidez e o desespero que no engano castrador.






Não escrevo aqui há muito. Menos dado a intimidades? Talvez a noção de que o tempo se escapa me deixe pouco disponível para grandes reflexões. No fundo a vida seguiu o rumo que lhe determinei e, áparte o ganhar dinheiro com um saber teatral, o resto corre normal: escrevo.

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